terça-feira, 1 de agosto de 2017

As carnes do seu Antoninho e a coragem de não mudar



   Quando cheguei à Portoalegrense, naquela quarta-feira à tarde, encontrei tudo aberto. Portão, porta, janelas, uma coisa meio incomum. O afável guardador de carros ainda não tinha aparecido e pelo vão da grade verde, corrida para o lado, passaria com folga um corpo largo como o meu. Entrei. Queria tratar de uma reserva com o seu Antoninho.

   Ninguém pilotava o caixa, nem os simpáticos garçons voejavam apressados, como de costume. Estava tudo vazio e silencioso. Junto ao balcão, em frente ao posto onde Cris, a loira sorridente, se posicionava para organizar as comandas e os pedidos, havia um saco plástico semi-aberto, que não escondia o seu atraente conteúdo: picanhas, entrecôtes, vazios, costelas, maminhas. Abandonado. Sozinho. O ambiente todo, em silêncio absoluto, velava por aquele precioso volume.

   Avaliei que os pequenos invólucros ali reunidos, da excepcional carne do seu Antoninho – a que ele costuma assar, bem entendido! -, deviam pesar ao menos uns cinquenta ou sessenta quilos. Para me certificar, firmei as mãos nas beiradas do sacolão e consegui erguê-lo do piso.

   Baixou em mim um não sei quê. Sem pensar muito, dei de mão no tesouro encontrado e o carreguei porta afora, aos arrancos. Apressado, abri o porta-malas da camionete e acomodei lá o meu butim. Dei a partida no carro e me fui, seguro de não ter sido visto por ninguém. Havia cometido um crime perfeito.

   Dois quarteirões adiante, meu impulso criminoso começou a transformar-se em remorso. Como pude fazer isso com o seu Antoninho, flor de pessoa? Ele sempre me tratou tão bem. E aonde eu iria agora acomodar tanta carne, se nem de um freezer pequeno eu dispunha? Bem que a patroa andava insistindo comigo: que nos fazia falta um freezer, que os seus braços doíam, que ela já estava cheia de tanto ir ao supermercado, e bibibi e bobobó.

   Era o caso de fazer um churrascão, convidar os amigos, dar ao meu crime abominável um caráter mais Robin Hood. Com-par-ti-lhar. Mas quantos dos meus convidados estariam também entre os clientes mais assíduos da Portoalegrense e seriam sabedores do assalto? Além do mais, eles nunca tinham sido alvo de tamanha generosidade de minha parte: um churrasco boca livre, só com carne de primeira. Ligariam lé com cré, de saída, é claro que iriam desconfiar. Pior, nunca me perdoariam. Já dava para ouvir alguns deles me recriminando: como foste roubar as carnes do seu Antoninho, aquela flor de pessoa?

   Sem convidar os amigos, a quem ofereceria o churrasco? Aos vizinhos do prédio? Lá iria eu, de porta em porta: alô, dona Lúcia, seu Alberto, meu prezado capitão, professor Antunes, doutor Barbosinha, que tal um churras? Alô, gatona do oitavo, dona Rosa, seu Joca, meu prestimoso zelador Osvaldo, seu Francisco Antônio, alguém sabe o nome da morena aquela que vende produtos da Natura? E do solteirão do sexto? Há tanto tempo que moramos perto e nunca comemos juntos um churrascão! Pois venham todos, eu banco. Precisamos estreitar os laços, é essencial ter boas relações de vizinhança nestes tempos bicudos.

   Sei, sei. Até já posso ver a cara amuada do Barbosinha, querendo antecipar o horário, o desconforto do solteirão antipático, dona Rosa se lançando para mim, a morena aproveitando a ocasião para vender os seus cremes e xampus, seu Alberto sabe-tudo dando aulas sobre como cortar melhor as carnes e a temperatura mais adequada para a cerveja, Otacílio insistindo com o tema da piscina. Não, nem pensar! Churrasco de condomínio, não!

   Nem havia chegado a minha casa e já tratava de dar a meia volta: o certo era devolver tudo. Pedir desculpas para o seu Antoninho, dizer que passei por um lapso de sentidos, um desvario momentâneo, um impulso crímino-salivoso. Que eu havia sofrido uma compreensível desorientação de caráter, com origem na memória suculenta de tantos e tantos assados gloriosos devorados com gosto na bendita e santa Portoalegrense, ao longo de mais de trinta anos. Ele haveria de entender. Era flor de pessoa.

   Quando estacionei outra vez, o portão verde seguia entreaberto. Desci da camionete e me dirigi, convicto, para o interior da churrascaria. Olhei para o salão arejado, acarinhei as paredes forradas por lambris que abafavam a gritaria dos fregueses, corri os dedos pelas garrafas de vinho perfiladas, afaguei a primeira mesa, com sua imaculada toalhinha amarela. Vi que o relógio de parede marcava cinco horas e que a churrasqueira, pintada de fumo negro e momentaneamente muda, tinha um descanso merecido de suas cotidianas batalhas.

   Perguntei pelo seu Antoninho ao funcionário que veio ao meu encontro, um faxineiro, talvez. Saiu, ele disse, foi até a polícia registrar um assalto que teve aqui. Roubaram todas as carnes. Pode uma coisa dessas? Mas que barbaridade, eu disse, o que é que eu vou fazer agora? Volta mais tarde, ele disse, sem entender a extensão do meu problema. Logo, logo, ele aparece.

   Retornei meio tonto para a camionete. Meu crime estava agora consolidado, não tinha mais como voltar atrás sem ter que me explicar com a polícia, responder a um inquérito e tomar o rumo do Presídio Central. Adeus, churrascos da Portoalegrense! Como fui agir dessa maneira imbecil, logo com o seu Antoninho, flor de pessoa?

   Angustiado, tomei o caminho da Avenida São Pedro, com o estômago revirado, uma  ansiedade me roendo o cérebro, uma dorzinha latejante começando a batucar nas têmporas. E, ainda por cima, tinha o diabo daquele carro buzinando nas minhas costas, sem parar, sem parar, sem parar. Buzinava como um doido, não parava nunca. E o estranho é que a maldita buzina se parecia, cada vez mais, com o barulho do meu despertador.

   Nunca foi tão prazeroso acordar com a estridência insistente de um relógio.

   Pensando bem, vou alertar o seu Antoninho para os riscos de assalto. A cidade está um perigo.

   Com meu crime esquecido, voltarei a almoçar na Portoalegrense no próximo sábado: caipirinha, pão de queijo assado e linguiça picante, um bom pedaço de vazio, polenta frita, salada mista, suco de laranja e cerveja bem gelada. Às vezes, é preciso ter a coragem de não mudar.

                                                                              - Miguel da Costa Franco - 

2 comentários:

  1. Só tu mesmo pra acreditar e te angustiar com a possibilidade de teres roubado algo, ainda mais do Seu Antoninho!...

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  2. Já comeste aquelas carnes?

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