Foi quando eu estava na escola primária que tive as noções mais
concretas do que seria uma escala de avaliação. Com certeza, os mesmos
critérios já circundavam o meu pobre cérebro de forma mais vaga, ainda no
ambiente familiar, aplicados a cada situação do dia a dia. Mas, no mundo
escolar, as tábuas de aferição do aprendizado ganharam contornos matemáticos
bem precisos. Era uma medição simples, como se usava para peso e altura, tamanho
do sapato e das roupas ou circunferência da cabeça para bem acomodar o boné.
Na bagagem do conhecimento, levar nota dois, três ou quatro podia ser caso de internação. Representaria, ao menos, o corte do cineminha dominical, das brincadeiras no campinho ou das visitas aos amigos. As notas pouco acima de seis ainda suscitavam olhares de comiseração. O bom ânimo renascia quando despontavam os setes ou os oitos no boletim, mas apenas os noves mereciam aplausos, em especial quando sucedidos de algum número acima de cinco após a vírgula. Em verdade, o esperado, inequivocamente, era o dez. E fim.
No correr da vida, abrandar esta escala de valores para aferir aprendizados tornou-se fundamental. Consegui ser razoavelmente feliz, com triunfos e tombos passando a ser medidos por regras menos rigorosas. Afinal, é razoável que o arroz fique meio empapado de vez em quando, que o efeito do desodorante vença pela metade da tarde, nos dias mais quentes, ou algum resquício indesejado de refeições resista no interior do vaso sanitário após o acionamento da descarga, se a campainha da porta te atropelou justo no início do processo. É normal. A vida é pródiga em apresentar esses percalços. Se não tratamos de amenizar as expectativas, o viver torna-se infernal. Acho que é meio óbvio que ninguém deixa um capitão (de onde terá saído esta metáfora?) boiando na privada sem um bom motivo exterior: a falta d’água, ou uma pane no mecanismo, ou um atropelo qualquer, como a pressa em atender a campainha. Aprendi que o bom senso subverte a fixação de dar notas para tudo.
Mas aí veio a Judite, e a Judite nunca perdoa:
- Abelardo, não deu descarga de novo!
- Eu dei, Judite.
Sei que seria injusto atribuir também ao coronavírus, que nos forçou à prisão domiciliar, a responsabilidade por esta impaciência. Olhando bem, a coisa já devia ser um pouco assim antes da pandemia. Ou muito assim. (Qual a escala que devo usar aqui, afinal? Estou perdido.) O fato é que o maldito vírus deixou-nos mais meticulosos. Por que ela não aperta outra vez o botão da descarga, e pronto, sem vir com admoestações redundantes para cima de um sexagenário assustado do grupo de risco?
A maravilha das maravilhas foi a descoberta da máquina de lavar. Primeiro, veio a de roupas, item fundamental, junto com o fogão e a geladeira, do primeiro lote de eletrodomésticos adquiridos pela classe média. Depois, a lava-pratos, a sacrossanta máquina de lavar a nossa inesgotável louça suja.
Comprei a minha primeira Enxuta lá pelos anos 80. Essa era a marca do artefato salvador. E várias outras se sucederam: Cônsul, Brastemp, Eletrolux, Panasonic, o que seja. Não me ligo muito nesse negócio de branding. Posso até estar errando a marca de alguma. Não é isso o que importa. Para mim, lava-louça é lava-louça, e ponto. Sou meio comunista, como se diria hoje em dia neste Brasil tão doido, onde poucos sabem mesmo de que se trata o comunismo. Sim, comunista, segundo a visão terraplanista em voga. Odeio ter tantas opções quase iguais na hora de comprar um aparelho qualquer. Já estou de saco cheio deste capitalismo imbecil e suicida, que leva flores cultivadas na Holanda, numa sopa química e poluente, para serem vendidas do outro lado do mundo, na Tailândia ou Bangladesh. E faz transitar pela distante China, em algum ponto do processo, quase todo bem de natureza industrial.
Mas isto é outra história. O importante aqui é que administro este artefato lavador benfazejo há quase quarenta anos e isto fez de mim uma pessoa melhor, infinitamente mais feliz. Um cidadão nota sete ou oito. Vá lá, nota oito, não vamos exagerar na modéstia. É que máquinas de lavar-louça não são perfeitas. Não são. Nã-nã-nã-ni-não. Sempre resta uma gosminha aqui ou ali, um resíduo de borra de café numa xícara mais funda, uma borda mal lavada numa travessa, um prato que é reprovado no ENEM domiciliar.
Há formas sabidas e ressabidas de driblar estes desconfortos: uma pré-limpeza dos restos mais grosseiros e uma esfregadinha com esponja aqui ou ali são sempre bem-vindas. Com quatro décadas de estrada – ou lavação de louça, no caso – isto é conhecimento já sedimentado. Absorvido. Incorporado. Aprendi também a ser mais tolerante. Na pior das hipóteses, a sujinha vai para a máquina de novo. Volta ao início do processo. Sem chilique.
Além da fiscalização permanente da Judite, o que mudou com a chegada da pandemia, foi a frequência de uso da lavadora. Ao menos duas vezes por dia, vejo-me a recheá-la com copos e pratos, talheres e potes, panelas pequenas e frigideiras, conchas, escumadeiras, vasilhas, descascadores e o escambau. Ateu convicto, eu tenho rezado todo o santo dia para que ela resista e não quebre em meio a estes tempos de isolamento social tão necessário.
Mas... E a Judite?
A Judite, coitada, ainda é uma escrava da nota dez.
- Olha, Abelardo, nestes potinhos tem que passar uma esponja antes...
- Quando eu acho que precisa, eu passo, Judite.
- Se não, a máquina não limpa.
- Nesse aí, eu passei.
- Fica cheio de gruminhos...
- Eu passei, Judite. Uso estas máquinas há quarenta anos... Sei como se faz.
Poupando-se de apenas devolver o item mal lavado à pilha de louça suja, ela volta à carga, sempre professoral:
- Se passou, passou pouco, Abelardo.
Respira, cidadão nota oito. Respira. Deve sofrer muito, a pobre Judite.
- Miguel da Costa Franco -
Ótimo.
ResponderExcluirGracias, Sérgio, sempre gentil.
ExcluirAdorei. Somos todas Judite. Juntas, venceremos e vocês chegarão ao 9, 10 impossível, sempre tem uma manchinha que poderia ter sido removida.
ResponderExcluirPelo direito aos gruminhos redentores da felicidade possível! Gracias, Adelina.
ExcluirMaravilhoso!!
ResponderExcluirObrigado, caro desconhecido.
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