Quando cheguei à Portoalegrense,
naquela quarta-feira à tarde, encontrei tudo aberto. Portão, porta, janelas, uma
coisa meio incomum. O afável guardador de carros ainda não tinha aparecido e pelo
vão da grade verde, corrida para o lado, passaria com folga um corpo largo como
o meu. Entrei. Queria tratar de uma reserva com o seu Antoninho.
Ninguém pilotava o caixa, nem
os simpáticos garçons voejavam apressados, como de costume. Estava tudo vazio e
silencioso. Junto ao balcão, em frente ao posto onde Cris, a loira sorridente, se posicionava
para organizar as comandas e os pedidos, havia um saco plástico
semi-aberto, que não escondia o seu atraente conteúdo: picanhas, entrecôtes, vazios, costelas, maminhas.
Abandonado. Sozinho. O ambiente todo, em silêncio absoluto, velava por aquele
precioso volume.
Avaliei que os pequenos
invólucros ali reunidos, da excepcional carne do seu Antoninho – a que ele
costuma assar, bem entendido! -, deviam pesar ao menos uns cinquenta ou
sessenta quilos. Para me certificar, firmei as mãos nas beiradas do sacolão e
consegui erguê-lo do piso.
Baixou em mim um não sei quê. Sem
pensar muito, dei de mão no tesouro encontrado e o carreguei porta afora, aos
arrancos. Apressado, abri o porta-malas da camionete e acomodei lá o meu butim.
Dei a partida no carro e me fui, seguro de não ter sido visto por ninguém. Havia
cometido um crime perfeito.
Dois quarteirões adiante, meu
impulso criminoso começou a transformar-se em remorso. Como pude fazer isso com
o seu Antoninho, flor de pessoa? Ele sempre me tratou tão bem. E aonde eu iria
agora acomodar tanta carne, se nem de um freezer pequeno eu dispunha? Bem que a
patroa andava insistindo comigo: que nos fazia falta um freezer, que os seus braços
doíam, que ela já estava cheia de tanto ir ao supermercado, e bibibi e bobobó.
Era o caso de fazer um
churrascão, convidar os amigos, dar ao meu crime abominável um caráter mais
Robin Hood. Com-par-ti-lhar. Mas quantos dos meus convidados estariam também
entre os clientes mais assíduos da Portoalegrense e seriam sabedores do assalto?
Além do mais, eles nunca tinham sido alvo de tamanha generosidade de minha
parte: um churrasco boca livre, só com carne de primeira. Ligariam lé com cré,
de saída, é claro que iriam desconfiar. Pior, nunca me perdoariam. Já dava para
ouvir alguns deles me recriminando: como foste roubar as carnes do seu
Antoninho, aquela flor de pessoa?
Sem convidar os amigos, a quem ofereceria o
churrasco? Aos vizinhos do prédio? Lá iria eu, de porta em porta: alô, dona
Lúcia, seu Alberto, meu prezado capitão, professor Antunes, doutor Barbosinha,
que tal um churras? Alô, gatona do
oitavo, dona Rosa, seu Joca, meu prestimoso zelador Osvaldo, seu Francisco
Antônio, alguém sabe o nome da morena aquela que vende produtos da Natura? E do
solteirão do sexto? Há tanto tempo que moramos perto e nunca comemos juntos um
churrascão! Pois venham todos, eu banco. Precisamos estreitar os laços, é
essencial ter boas relações de vizinhança nestes tempos bicudos.
Sei, sei. Até já posso ver a cara amuada do Barbosinha,
querendo antecipar o horário, o desconforto do solteirão antipático, dona Rosa
se lançando para mim, a morena aproveitando a ocasião para vender os seus
cremes e xampus, seu Alberto sabe-tudo dando aulas sobre como cortar melhor as
carnes e a temperatura mais adequada para a cerveja, Otacílio insistindo com o
tema da piscina. Não, nem pensar! Churrasco de condomínio, não!
Nem havia chegado a minha casa e já tratava de
dar a meia volta: o certo era devolver tudo. Pedir desculpas para o seu
Antoninho, dizer que passei por um lapso de sentidos, um desvario momentâneo,
um impulso crímino-salivoso. Que eu havia sofrido uma compreensível
desorientação de caráter, com origem na memória suculenta de tantos e tantos
assados gloriosos devorados com gosto na bendita e santa Portoalegrense, ao
longo de mais de trinta anos. Ele haveria de entender. Era flor de pessoa.
Quando estacionei outra vez, o portão verde
seguia entreaberto. Desci da camionete e me dirigi, convicto, para o interior
da churrascaria. Olhei para o salão arejado, acarinhei as paredes forradas por
lambris que abafavam a gritaria dos fregueses, corri os dedos pelas garrafas de
vinho perfiladas, afaguei a primeira mesa, com sua imaculada toalhinha amarela.
Vi que o relógio de parede marcava cinco horas e que a churrasqueira, pintada
de fumo negro e momentaneamente muda, tinha um descanso merecido de suas
cotidianas batalhas.
Perguntei pelo seu Antoninho ao
funcionário que veio ao meu encontro, um faxineiro, talvez. Saiu, ele disse,
foi até a polícia registrar um assalto que teve aqui. Roubaram todas as carnes.
Pode uma coisa dessas? Mas que barbaridade, eu disse, o que é que eu vou fazer
agora? Volta mais tarde, ele disse, sem entender a extensão do meu problema. Logo,
logo, ele aparece.
Retornei meio tonto para a
camionete. Meu crime estava agora consolidado, não tinha mais como voltar atrás
sem ter que me explicar com a polícia, responder a um inquérito e tomar o rumo
do Presídio Central. Adeus, churrascos da Portoalegrense! Como fui agir dessa
maneira imbecil, logo com o seu Antoninho, flor de pessoa?
Angustiado, tomei o caminho da
Avenida São Pedro, com o estômago revirado, uma ansiedade me roendo o cérebro, uma dorzinha latejante
começando a batucar nas têmporas. E, ainda por cima, tinha o diabo daquele carro
buzinando nas minhas costas, sem parar, sem parar, sem parar. Buzinava como um
doido, não parava nunca. E o estranho é que a maldita buzina se parecia, cada
vez mais, com o barulho do meu despertador.
Nunca foi tão prazeroso acordar
com a estridência insistente de um relógio.
Pensando bem, vou alertar o seu
Antoninho para os riscos de assalto. A cidade está um perigo.
Com meu crime esquecido, voltarei
a almoçar na Portoalegrense no próximo sábado: caipirinha, pão de queijo assado
e linguiça picante, um bom pedaço de vazio, polenta frita, salada mista, suco
de laranja e cerveja bem gelada. Às vezes, é preciso ter a coragem de não mudar.
- Miguel da Costa Franco -
- Miguel da Costa Franco -
Só tu mesmo pra acreditar e te angustiar com a possibilidade de teres roubado algo, ainda mais do Seu Antoninho!...
ResponderExcluirJá comeste aquelas carnes?
ResponderExcluir