sábado, 1 de abril de 2023

Delícias da colônia

 

   Tratava-se de ganhar a vida.

   Tratava-se,  simplesmente,  de  suportar  ganhar  a  vida  daquela  maneira.

   Queria acreditar que o salário compensava.

  Tinha feito a escolha errada lá trás, fizera muitas escolhas erradas - o curso, a desistência prematura do mestrado, o destino que havia escolhido para exercer a profissão.  Sempre fizera escolhas tortas e muitos me criticavam por isso. Mas agora eu era independente, como sempre quisera ser. Ninguém mais podia meter o bedelho em minha vida.

   Havia o supervisor, claro, que me passava serviços como aquele. Tinha o gerente administrativo, sempre me aporrinhando com as prestações de contas. Precisava suportar as investidas do todo-poderoso gerente geral a insistir que eu participasse do malfadado Clube do Copinho, dos literatos de botequim. Eu não era um poeta, afinal?

   Havia que conviver com o escárnio do João Nelson, que percebia esse mal-estar a acompanhar-me naquela vida funcional iniciada sob o signo do despreparo. Eu era um agrônomo recém-formado, urbanoide e – suprema heresia com pouca prática nas lides rurais. João Nelson testemunhara minha inexperiência naquilo que, para ele, fiscal das antigas, era trivial: as estimativas de produção em lavouras ainda em flor, as distâncias medidas a passo ou pelo olho arguto, a identificação expedita de pragas e doenças, que eu, de meu lado, precisava pesquisar nos compêndios apropriados.  Ria-se prazerosamente de minhas tentativas desavergonhadas de fugir das perguntas embaraçosas sobre plantas que mal conhecia ou produtos químicos cujas propriedades me dava desgosto decorar: carbendazim, parathion, atrazina, glifosato, malathion... A agronomia, que um dia me soara poética e naturalista, virara uma filial da botica do inferno, com suas maléficas poções e suas práticas antinaturais.

   Eu era virgem de brutalidades e sanguinolências, mas ainda não estava certo de ter dado um passo em falso, ainda que a vida no interior se revelasse uma coleção cotidiana de crueldades: a garbosa ema morta a tiros por comer algumas vagens de soja, o sumiço das espécies que engordavam as passarinhadas, a mortandade de peixes nos riachos após a lavagem dos baldes de biocidas... Havia, para compensar, a beleza dos trigais maduros, o ar puro em abundância, as fainas comunitárias dos bataticultores, a geada branquicenta transmutando-se em névoa úmida e extraviando-se pelos baixios com a imponência do sol, a alegria das colheitas bem-sucedidas.

   No período da faculdade, infelizmente mais teórica do que prática – ainda me lembrava das cartolinas sebosas e caricatas do professor de Plantas de Lavoura – eu estivera mais entretido com o universo paz e amor do Berlim-Bonfim, com bares e danceterias, com Neis Lisboas e Bebetos Alves, com Vende-se sonhos, Utopias, Cem modos e Bixos da seda, do que com tubérculos e feijões, suínos e aves, cereais e soja, a santa soja, que o diabo a carregue, tudo o que restava agora para ver ali naquele fundão em que eu me metera.

   Ligar o limpador de parabrisa a seco fora mais um erro meu. Os múltiplos arcos de terra riscando em filetes a superfície chapada do vidro do fusca prometiam fixar-se a ele como marcas duradouras. Esquecera-me de encher a cumbuca do líquido de limpeza e agora pagava por isso. Era imperativo enxergar algo do caminho à frente para não me perder pelas veredas da estradinha de terra e afundar-me de vez em algum valão.

   A faixa estreita e avermelhada estava seca e poeirenta. Escolhera o dia da visita ao Rincão dos Krause por orientação do João Nelson, pois do contrário haveria de enfrentar, sem experiência alguma, a lisura pastosa e tresloucada da argila do planalto. Fora esse o argumento que ele usara.

   Cogitava agora, sentindo o pedaço de morcilha fresca ricocheteando em minhas entranhas e esforçando-se para sair numa golfada incontível a cada curva da estrada – já sentira por duas vezes o gosto amargo da bile pelos cantos da boca –, que João Nelson me sacaneara.  Ele devia saber com antecedência daquela cerimônia macabra que eu acabara de assistir.

   “Estão no galpão”, dissera o menino remelento.

   Eu havia descido do carro e ido direto para lá, ainda que os gritos desesperados que brotavam do interior do amontoado claudicante de tábuas me sugerissem fugir. À medida do avanço de meus passos, a gritaria foi cedendo, cedendo, até transmutar-se no ruído viscoso do gorgolejar de uma cachoeira de sangue sobre uma bacia larga de alumínio, respingando com abundância o piso de cimento alisado para alegria dos cães. O que sobrava da dignidade ferida do animal abatido era um fraco ronco de asmático, que logo se perdeu na algaravia dos familiares embrutecidos do Krause, a saquear com agilidade o ventre do desventrado.

   “Entra, criatura”, disse o homem, quando me viu retido à porta. Estava debruçado sobre o imenso porco aberto do queixo ao rabo por um talho profundo, que expunha tripas, ossos do costilhar e vísceras ainda pulsantes, os membros em cruz sujos de barro desabados para os lados da mesa de tábuas nuas revestida de linóleo com estampas de moranguinho. 

   Tudo ali fedia aos enjoativos eflúvios de pelo chamuscado e sangue. A camiseta que vestia o Krause, com logotipo da Massey Ferguson, a mesma marca do trator que eu precisava vistoriar, estava rubra. Suas mãos – uma a me acenar, convidativa, e a outra apontando ameaçadora para mim a faca carneadeira – se revestiam de umas nojentas luvas coloradas, pontilhadas de coágulos escuros. Foi com estas mãos asquerosas que ele providenciou um talho na morcilha que estava sobre o balcão e jogou para mim o naco – um cilindro globoso de embutido feito com o sangue ainda quente do porco. “Prova essa delícia, tá fresquinha”, disse, enquanto eu limpava a nódoa amarronzada que a coisa deixara na minha camisa, à altura do peito. E não parou de olhar para mim – um pacóvio desejoso de ser aceito enquanto não me viu dar uma mordiscada e engolir contrariado esse mesmo pedacinho de tripa e sangue que agora me voltava em engulhos em meio ao pó da estrada.

   Por sorte, havia os cachorros famintos, e o velho Krause precisou sair para dar uma mijada.

   O trator a ser vistoriado, sonolento, me olhava de soslaio dispensando os protocolos, também vermelho brilhante, desde os fundos do barracão.

 -Miguel da Costa Franco - 

Texto publicado na Revista Sepé nº 9, de 31/03/23


Nenhum comentário:

Postar um comentário