Tratava-se de ganhar a vida.
Tratava-se, simplesmente, de suportar ganhar a vida daquela maneira.
Queria acreditar que o salário compensava.
Tinha feito a escolha errada lá trás, fizera
muitas escolhas erradas - o curso, a desistência prematura do mestrado, o
destino que havia escolhido para exercer a profissão. Sempre fizera escolhas tortas e muitos me
criticavam por isso. Mas agora eu era independente, como sempre quisera ser. Ninguém
mais podia meter o bedelho em minha vida.
Havia o supervisor, claro, que me passava
serviços como aquele. Tinha o gerente administrativo, sempre me aporrinhando
com as prestações de contas. Precisava suportar as investidas do todo-poderoso gerente
geral a insistir que eu participasse do malfadado Clube do Copinho, dos
literatos de botequim. Eu não era um poeta, afinal?
Havia que conviver com o escárnio do João
Nelson, que percebia esse mal-estar a acompanhar-me naquela vida funcional
iniciada sob o signo do despreparo. Eu era um agrônomo recém-formado, urbanoide
e – suprema heresia – com
pouca prática nas lides rurais. João Nelson testemunhara minha inexperiência
naquilo que, para ele, fiscal das antigas, era trivial: as estimativas de
produção em lavouras ainda em flor, as distâncias medidas a passo ou pelo olho
arguto, a identificação expedita de pragas e doenças, que eu, de meu lado,
precisava pesquisar nos compêndios apropriados.
Ria-se prazerosamente de minhas tentativas desavergonhadas de fugir das
perguntas embaraçosas sobre plantas que mal conhecia ou produtos químicos cujas
propriedades me dava desgosto decorar: carbendazim, parathion, atrazina,
glifosato, malathion... A agronomia, que um dia me soara poética e naturalista,
virara uma filial da botica do inferno, com suas maléficas poções e suas práticas
antinaturais.
Eu era virgem de brutalidades e
sanguinolências, mas ainda não estava certo de ter dado um passo em falso,
ainda que a vida no interior se revelasse uma coleção cotidiana de crueldades:
a garbosa ema morta a tiros por comer algumas vagens de soja, o sumiço das
espécies que engordavam as passarinhadas, a mortandade de peixes nos riachos
após a lavagem dos baldes de biocidas... Havia, para compensar, a beleza dos
trigais maduros, o ar puro em abundância, as fainas comunitárias dos
bataticultores, a geada branquicenta transmutando-se em névoa úmida e
extraviando-se pelos baixios com a imponência do sol, a alegria das colheitas
bem-sucedidas.
No período da faculdade, infelizmente mais
teórica do que prática – ainda me lembrava das cartolinas sebosas e caricatas do
professor de Plantas de Lavoura – eu estivera mais entretido com o universo paz e amor do Berlim-Bonfim, com bares e
danceterias, com Neis Lisboas e Bebetos Alves, com Vende-se sonhos, Utopias,
Cem modos e Bixos da seda, do que com tubérculos e feijões, suínos e aves, cereais
e soja, a santa soja, que o diabo a carregue, tudo o que restava agora para ver
ali naquele fundão em que eu me metera.
Ligar o limpador de parabrisa a seco fora
mais um erro meu. Os múltiplos arcos de terra riscando em filetes a superfície
chapada do vidro do fusca prometiam fixar-se a ele como marcas duradouras.
Esquecera-me de encher a cumbuca do líquido de limpeza e agora pagava por isso.
Era imperativo enxergar algo do caminho à frente para não me perder pelas
veredas da estradinha de terra e afundar-me de vez em algum valão.
A faixa estreita e avermelhada estava seca e
poeirenta. Escolhera o dia da visita ao Rincão dos Krause por orientação do
João Nelson, pois do contrário haveria de enfrentar, sem experiência alguma, a
lisura pastosa e tresloucada da argila do planalto. Fora esse o argumento que
ele usara.
Cogitava agora, sentindo o pedaço de
morcilha fresca ricocheteando em minhas entranhas e esforçando-se para sair numa
golfada incontível a cada curva da estrada – já sentira por duas vezes o gosto
amargo da bile pelos cantos da boca –, que João Nelson me sacaneara. Ele devia saber com antecedência daquela cerimônia
macabra que eu acabara de assistir.
“Estão no galpão”, dissera o menino
remelento.
Eu havia descido do carro e ido direto para
lá, ainda que os gritos desesperados que brotavam do interior do amontoado
claudicante de tábuas me sugerissem fugir. À medida do avanço de meus passos, a
gritaria foi cedendo, cedendo, até transmutar-se no ruído viscoso do gorgolejar
de uma cachoeira de sangue sobre uma bacia larga de alumínio, respingando com
abundância o piso de cimento alisado para alegria dos cães. O que sobrava da
dignidade ferida do animal abatido era um fraco ronco de asmático, que logo se
perdeu na algaravia dos familiares embrutecidos do Krause, a saquear com
agilidade o ventre do desventrado.
“Entra, criatura”, disse o homem, quando me
viu retido à porta. Estava debruçado sobre o imenso porco aberto do queixo ao
rabo por um talho profundo, que expunha tripas, ossos do costilhar e vísceras
ainda pulsantes, os membros em cruz sujos de barro desabados para os lados da
mesa de tábuas nuas revestida de linóleo com estampas de moranguinho.
Tudo ali fedia aos enjoativos eflúvios de
pelo chamuscado e sangue. A camiseta que vestia o Krause, com logotipo da
Massey Ferguson, a mesma marca do trator que eu precisava vistoriar, estava rubra.
Suas mãos – uma a me acenar, convidativa, e a outra apontando ameaçadora para
mim a faca carneadeira – se revestiam de umas nojentas luvas coloradas,
pontilhadas de coágulos escuros. Foi com estas mãos asquerosas que ele
providenciou um talho na morcilha que estava sobre o balcão e jogou para mim o
naco – um cilindro globoso de embutido feito com o sangue ainda quente do
porco. “Prova essa delícia, tá fresquinha”, disse, enquanto eu limpava a nódoa amarronzada
que a coisa deixara na minha camisa, à altura do peito. E não parou de olhar
para mim – um pacóvio desejoso de ser aceito – enquanto não me viu dar uma mordiscada e
engolir contrariado esse mesmo pedacinho de tripa e sangue que agora me voltava
em engulhos em meio ao pó da estrada.
Por sorte, havia os cachorros famintos, e o velho
Krause precisou sair para dar uma mijada.
O trator a ser vistoriado, sonolento, me
olhava de soslaio dispensando os protocolos, também vermelho brilhante, desde
os fundos do barracão.
-Miguel da Costa Franco -
Texto publicado na
Revista Sepé nº 9, de 31/03/23
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