Texto publicado no Correio do Povo - caderno Letras e Livros, em 12.03.83, e na antologia "As melhores crônicas do 5º Concurso Sérgio Porto", onde foi distinguido com o 2º lugar
A poda dos ligustros que
cercam a praça sempre marcou a proximidade do inverno. Todos os anos, um
neurótico jardineiro municipal transforma dezenas de árvores, com frondosas e
alegres copas, em estranhos cubos desfolhados. Despersonalizadas e ofendidas,
as plantas escondem de nós a beleza de seu viço até a próxima primavera. Aceito
o protesto do arvoredo, embora saiba que ele não se dirige a mim. Por meu
turno, satisfaço-me em saber que neste ano o frio chegou antes do desbaste da
galharia. Surpreendido pelo desrespeito deste outono fujão, o jardineiro roeu
todas as suas unhas antes de poder roer a beleza da praça. É um consolo, embora
não conserte esta indisfarçável teimosia do homem em querer subjugar a
natureza; em tentar subvertê-la em respeito aos seus menores caprichos,
travestidos de importância e interesse.
O cinzento toma conta das
ruas, outrora salpicadas pelo colorido das roupas e das faces suarentas. O
cheiro irritante das naftalinas empesta as lojas e repartições públicas, invade
edifícios, supermercados e bares. São os jaquetões e as japonas, os sobretudos,
palas, ponchos e "campeiras", todos abandonando os armários e baús e
descolorindo a cidade. Os homens uniformizam-se e as ruas inundam-se de marrom,
marinho e preto. Cores frias para aquecer homens frios nos dias gélidos deste
inverno precoce.
Bonés, tocas e chapéus
cobrem carecas e cabeleiras, indiscriminadamente. Mãos nos bolsos, crispadas,
narizes vermelhos, fumegantes bocas de lábios partidos, joelhos trêmulos,...
Assim o inverno nos domina. Muda nossos hábitos e nosso ânimo. A natureza
golpeia-nos a cada esquina, com ventos gelados, carregados de rancor e umidade.
As cerrações matinais tornam-nos apreensivos e humildes e as névoas do
entardecer empurram-nos para a cela de nós mesmos, ensimesmados e tristes. Os
ganidos do arvoredo, a balançar-se, falam de almas penadas e cemitérios. O véu
branquicento das geadas asfixia nossas colheitas, na vã tentativa de dobrar-nos
pela fome.
Mas o homem sobrevive e
sai fortalecido da batalha. O castigo não diminui as suas forças nem seu
ímpeto. Pelo contrário. É, agora, mais terrível do que antes. Imbatível! E a
desforra nunca tarda. Rasgam-se coxilhas com arados e tratores, derrubam-se as
matas e queimam-se os campos, envenenam-se os rios, córregos e lagos e
dinamitam-se as montanhas. Empesta-se o ar, a terra e a água com a bestialidade
do homem.
Mas ele que se cuide! A
natureza em desacerto começa a perder o tino. E se antes contentava-se em
mandar-nos julho e agosto, já hoje não se comove em chover fora de época, em
secar fora de hora e apedrejar trigais maduros.
Cuidado! O revide vem aí!
O inverno começou em maio. Até quando podaremos os ligustros?- Miguel da Costa Franco -
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