– Dona Gladys brigou comigo, disse que ia me
demitir, que já correram muitos dias do grosso da enchente e eu ainda não tinha
voltado pra trabalhar. Mas como é, vizinha, que eu ia atravessar aquele tantão
de água do Gravataí, que barrava a saída de Cachoeirinha? Pedindo carona no
bote d’um socorrista? Não dava, não era certo. Pior, não era é justo. Por causa
do rio, eu tive que sair da minha casa e me mudar pro sítio da minha sogra, em
Morungava. Eu não ia com a cara da mãe do Xexéu, meu marido, nem ela com a
minha. Ela me achava muito fazida e faladeira. Dizia que eu não era de
confiança, porque tinha me enrabichado pelo Xexéu e largado sem dó o Francisco
José, que me trouxe lá da Paraíba quando veio trabalhar numa fábrica daqui. Eu
dizia que ela era muito enxerida e mandona. Que não tinha direito de se meter
na minha vida. Vou lhe dizer uma coisa, vizinha, eu mudei. Tive que mudar.
Aprendi a dar valor a ela. Deus a abençoe! Uma santa criatura, a bandida!
Minhas coisas, que eu juntei por trinta anos, ficaram tudo pra trás e ela me
socorreu como pôde. Não poupou nada, nada, nada. Chorei de soluçar. Juntou os
miúdos que tinha e até calcinha e sutiã ela me deu. Mas acabei me desviando do
assunto. Eu tava falando era da patroa.
A Dona Gladys insistia pra eu voltar, que tava sem água desde o começo do mês,
que já era dia vinte e o apartamento tava um lixo, tinha pilhas de louça suja
na cozinha, roupa usada que não acabava mais e os quatro banheiros fediam como
toaletes de rodoviária. Ela falava assim, toda chiando, toalétiiis. Vê se pode! Chamar as privadas de toalétiiis. Disse também que tava agora sem luz e sem elevador,
internet falhando, que tudo por lá tava dando xabu e que precisava de alguém
pra buscar água no caminhão-pipa do DMAE estacionado no Parcão ou no outro, que
tinha na Praça Júlio. Aí, eu lembrei da minha infância lá no sertão, me
encorajei e disse para ela: Dona Gladys
do céu, a senhora me perdoe, mas isso a senhora mesmo pode fazer, não pode? Eu
me criei no fundão da Paraíba. Lá todo mundo – velho, moço, homem, mulher –
buscava água nas cacimbas desde criancinha. Era divertido. O sofrimento era
grande no início, não vou lhe mentir, mas a gente era feliz. Muito apanhei para
buscar a água do café da manhã, até me acostumar com aquilo e ver que era bom.
Criança é especialista em transformar sofrimento em diversão. Agora de longe,
eu até sinto saudades. Quando tinha de carregar água, ainda era bom. Buscar
lenha ou gás é que era pior. Por que a senhora não pede pro Tiaguinho ou pra
Taís buscarem água pra vocês? A Dona Gladys não dizia uma palavra, vizinha.
Parece que emudeceu. Quando muito soltava um ‘ora, ora...’. Lembrando das crias dela, altas e fortonas,
eu não pude deixar de pensar que eu acabei não crescendo muito, fiquei assim
meio pitoca, meio atarracada, de tanto peso que carreguei na minha cabeça. Mas
sempre agradeci muito a Deus por ter aquela água, mesmo que, às vezes, ela fosse
meio salgada ou tivesse gosto de barro ou ferrugem. Graças ao nosso Lulinha,
que a Dona Gladys e o Tiaguinho odeiam e vivem falando mal, minha família
escapou dessa peia. Então eu disse pra patroa, e lhe juro, vizinha, que não foi
pra atossicar: o meu painho falava que aquele serviço duro ensinava a ter
disciplina, Dona Gladys, a respeitar os outros, não lavar os pés onde o povo
pega água de beber. Quando a gente quebrava a cabaça ou o pote, a mãe dava
bronca, mandava retomar a trilha e buscar tudinho outra vez, até fazer certo.
Aprendi com eles, daquele jeito, valores que hoje já se perderam por aí e não
se acham mais. Foi isso, ter de buscar água nos barreiros e nas cacimbas pra
sobreviver, que fez da gente cidadãos de bem. Então a Dona Gladys desligou o
celular. Ou teve um troço ou foi a ligação que caiu. Tudo por lá tava
funcionando mal, né mesmo? Por via das dúvidas, pra patroa não pensar que eu
tava fugindo da conversa, foi minha vez de ligar pra ela. Já saí falando: Oi,
caiu a ligação, né? O que é que eu tava dizendo? Ah... Eu tava lembrando das
broncas do painho e da mãinha. Vou lhe ensinar umas coisas, Dona Gladys. Me
escute. Ela tentou retrucar e eu cortei: não, espere, me escute, mulher. É pro
seu bem. Primeiro: não dá pra ter preguiça, visse?
Segundo: vai doer a cabeça? Vai. Vai doer o pescoço? Vai. Tome cuidado ao
levantar os baldes pra não machucar a coluna. Se agache um pouco, dobre os
joelhos que ajuda. Melhor não ir de salto alto pra não tropicar. Pode botar
umas ramagens de folhas por cima do balde pra não chegar em casa com ele pela
metade. Melhor também ir de roupa velha e de sutiã, porque vai molhar a blusa.
Mais crescidinhas, eu e as minhas primas, a gente abusava disso pra arrumar
namorado, mas a senhora não tá mais pra essas coisas, né não, Dona Gladys? Ou
ainda tá? Vizinha, eu nem acredito que falei isso pra ela. Acho que ando meio
abestada das ideias. E não parei, segui aconselhando. Coloca uma rudia na
cabeça, Dona Gladys, pra assentar melhor o balde. Ela perguntou ‘o que é rudia?’.
Eu toquei em frente, vizinha. Não sabe o que é? Pode botar uma trunfa colorida
dessas das suas. Aquelas que imitam as africanas. Rudia é como uma rodinha de
pano, uma almofadinha de proteção pra amansar o contato com a lata, entendeu?
Ela disse que era só o que faltava sair pela Vinte e Quatro de lata d’água na
cabeça. Eu sugeri então que ela levasse alguns galões de cinco litros que eu
tinha guardado depois da cheia anterior, de novembro, os que ela comprava no
Zaffari porque a água da pena tinha ficado com gosto ruim. Disse pra ela botar
os galões num pau qualquer pra carregar nos ombros. Podia ser um cabo de
vassoura ou do rodo, ou uma daquelas taquaras secas que tinha no vaso grande do
canto da sala. Que ajudava a diminuir a dor nas costas, mas que era bom
proteger os ombros do roça-roça da madeira. Na Paraíba, a gente também usava os
jumentos pra carregar, mas ali no Moinhos de Vento não tinha disso, não. A
menos que resolvessem criar um par de jegues no pátio do edifício e botassem
uns cochos numa vaga da garagem pra alimentar os bichos. Ela não gostou, só
imagino o tamanho dos beiços. Ficou dizendo que era só o que faltava ter de
copiar o povo do sertão. Perguntou se eu estava me divertindo com a desgraça
alheia. Eu perdi a paciência, vizinha. Não consegui esconder minha irritação.
Och, Dona Gladys, och... Tenho muito orgulho de ter nascido sertaneja e tenho
muito pra lhe ensinar, visse? De mais
a mais, se tem alguém desgraçada aqui, sem casa e sem mobília, essa sou eu, né
não? Ela mudou de assunto, nunca quer saber dos meus problemas. Disse que a
pouca água que viu o dentista do 802 pegar nos caminhões tava sempre meio
amarela, meio fedida, meio turva. Meio, meio e mais meio... Eu nunca tinha
visto três metades de uma coisa só. Tive que respirar fundo. Ô, mulher exagerada!
Dona Gladys, Dona Gladys... É água de caminhão-pipa, mas é água da hidráulica,
água tratada. Água de caminhão é ouro, Dona Gladys. Quem bebeu água de barreiro
sabe. A senhora não vai ficar disputando ela com os bois, os cabritos ou as
rãs. Ela não tem cagada de bicho nem baba de sapo dentro. Ninguém lavou os pés
nela antes, nem esfregou os sovacos ou as partes. Não carece de coar num pano
as impurezas. A senhora não vai caminhar quilômetros no sol da caatinga pra
buscar, como a gente fazia. São só umas seis quadras até o Parcão ou a Praça
Júlio. Se faltar água na pipa, não vai ficar disputando a pouca sombra d’um
mandacaru esperando a cacimba brotar água de novo. É só consultar os anúncios
na rádio ou no jornal e ver direitinho o horário que o caminhão passa. E nem
vai ter de trabalhar na roça depois que voltar pra casa carregando as bambonas.
Ah! Vizinha, como ela se irritou! Disse que, das duas, uma: ou eu era muito
abusada ou tava ficando abobada da enchente. Que queria me ver no apartamento
da Santo Inácio na manhã seguinte, ‘ou tu já sabes’... Eu tratei de cortar a
madama, não era possível aquilo. Aquela mulher era muito aluada! Não vai dar,
Dona Gladys, tenha tento. Preciso dar jeito na minha vida antes, recuperar um
pouco do que perdi lá na minha casinha. Então ela quis terminar a conversa e me
disse, toda ouriçada: ‘Josineide, eu já falei o que queria e não estou
brincando’. Eu fiquei imaginando a boca
torcida e o nariz empinado. Não me aguentei, segui na minha toada e aproveitei
para dar uma ferroadinha naquela mulher folgada: na hora de dormir, Dona
Gladys, ponha um fraldão bem grosso, porque se a senhora mijar na cama de novo,
como daquela vez da bebedeira no casamento da sua sobrinha, não tem nenhuma
cachoeira aí por perto pra lavar o colchão, como a minha mãe fazia quando a
gente se afrouxava de noite. E tome jeito, rapariga: não deixe de pegar a água
do caminhão. Água é vida. Passe bem, Dona Gladys. Vizinha de Deus! Eu pagava os
tubos pra ver a patroa desfilando de rudia, salto alto e lata d’agua na cabeça
na calçada do Parcão.
– Miguel da Costa
Franco –
Muito bom, a gente vê a cena.
ResponderExcluirMaravi-lôso!!! Como sempre.
ResponderExcluirclaro como el agua de un río de montaña...
ResponderExcluirMaravilha, Miguel. Parabéns
ResponderExcluirEu tive o prazer de ver umas dondocas carregando água no Parcão
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