As cheias nos afluentes haviam feito do Guaíba um mar agitado e traiçoeiro para quem tentava atravessá-lo num pequeno barco à vela, com o leme mal fixado por um único parafuso. Se perdesse o último pino e ficasse à deriva, amanheceria sabe lá Deus onde. Com um pouco de sorte, num fundão da Barra do Ribeiro ou, talvez, no meio da Lagoa dos Patos.
Em águas açoitadas por ventos cambiantes,
o veleiro frágil não havia suportado a pressão do canal, que o homem agora
teria de transpor outra vez para alcançar refúgio na náutica onde a mulher o
esperava.
Pobre dela! Imaginaria que a perda dos
parafusos era culpa sua, e não das forças da natureza, já que se propusera a
preparar sozinha o barco: acomodar a vela e distribuir os cordames; fixar no casco
mastro, leme e quilha; armar a retranca; garantir as amarrações das escotas e
adriças e os encaixes adequados. Pela primeira vez, manifestou alegria e
vontade de aprender, o que foi surpreendente, pois ela vivia às turras com o
esporte predileto dele. Conviviam num equilíbrio precário. Como a pá do leme,
também o seu casamento desgastado parecia estar preso por um só parafuso torto.
Ele havia tomado aquela atitude da
mulher como um reposicionamento, uma tentativa de conciliação. Nem fez uma
revisão mais acurada das amarras para não demonstrar desconfiança. Afinal, tudo
parecia a jeito.
Mas preocupar-se com ela, agora, era o
de menos. Ondas gigantes inesperadas no rio-lago, o leme estropiado e a noite
que caíra de súbito: era tudo em que ele pensava. O céu tinha nuvens carregadas,
prenúncio de tempestade. O cinzento das águas revoltas e a distância das luzes
da cidade forjavam um breu assustador. O vento zumbizava oscilante de norte a nordeste.
Às vezes, brotavam lufadas de sul ou sudeste fedendo a repolho cozido das
chaminés da fábrica de celulose, em rajadas difíceis de administrar com o barco
naquele estado.
O homem mantinha-se atento para não
esbarrar em galhos e troncos que desciam livres na corrente.
Uma mancha escura a bombordo, entre o veleiro
e a Usina do Gasômetro, marcava a posição da Ilha do Presídio, que tantas
figuras ilustres albergara nos tempos da ditadura. Ultrapassada a cadeia, sua única
referência para navegar seria o holofote que Ricardo, o administrador da casa
de barcos, plantara na beira da praia para orientar os retardatários. A noite havia
caído velozmente e tinha suprimido outras indicações visuais. A margem do rio
era apenas uma linha enegrecida de vegetação, pontuada de luzinhas fracas, dispersas
no mato.
Enquanto o navegante cruzava o canal,
temendo a trombada de alguma embarcação de maior porte, o braço que sustentava
o leme formigava e prenunciava cãibras. Mas era preciso dar sustentação à
presilha meio solta.
Demoraria mais de hora até conseguir
aportar.
O desejo maior do homem é que Ricardo
viesse buscá-lo no seu “gomão” a motor, mas talvez ele já não estivesse em
serviço. O normal era fazer um recorrido ao fim da tarde para rebocar os clientes
retidos pela calmaria ou menos acostumados com as artes da vela. Não era o caso.
Hoje havia bastante vento e ele - surpreendido, desta vez, em meio ao rio pelo
dano no engate do leme - já era reconhecido como um velejador cancheiro.
Não fosse a roupa molhada, o frio a lhe
gelar a alma e a incômoda posição – braço direito mergulhado na água sobraçando
a peça danificada -, o resto estava a contento. Ele resistia à correnteza e às
altas marolas, e conseguia manter o rumo aproximado de onde se fixava o luzeiro
da náutica. Atravessava. Vencia o canal. Talvez precisasse apenas uma ou duas
manobras de ajuste, que tentaria mais perto da margem, para o caso de perder o
último parafuso. Nadar mal era o seu fraco, ele sabia. A mulher não se cansava
de lembrar.
Decerto, não havia ocorrido a ela
reapertar a conexão do leme.
Sentado à proa, o fantasma do tio-avô -
morto ao tentar cruzar a nado o Camaquã -, pousava nele um olhar de desdém. Nenhum
parente ousara desafiar qualquer curso d’água depois do acontecido. Eram já
duas gerações de homens e mulheres acorrentados a terra, espantando com
negaceadas, rezas e “tesconjuros” o instinto aventureiro, só por receio de
repetir semelhante tragédia. Apenas o homem agora acossado pelo rio, primeiro
da família a tornar-se velejador, não havia se submetido ao medo.
Parecia que o espectro do tio-avô sentado
à proa viera para confortá-lo, para estar junto naquele momento difícil. Cantarolava
uma velha canção do seu tempo:
Você
sabe o que é ter um amor, meu senhor?
Ter
loucura por uma mulher
E
depois encontrar esse amor, meu senhor
Nos
braços de um tipo qualquer?
Quando o veleiro conseguiu esconder-se das
ondas atrás da Ilha do Presídio, o homem desligou-se da canção. O barco fazia
água e faltavam-lhe braços para esvaziá-lo. Calçou o cabo da vela no mordedor,
segurou com as pernas a cana do leme e usou a mão livre para devolver ao rio o
que lhe pertencia por direito. Aos poucos, o veleirinho ganhou leveza e reagiu,
cortando com mais gana as vagas sucessivas.
O tio-avô mostrou contrariedade,
como se quisesse companhia no nicho em que habitam os afogados.
- Não vai me levar! - bradou o
timoneiro, firmando os olhos no fantasma cantador que somente nesta hora triste
viera dar o ar da graça.
O outro fez um gesto vago, confiante.
Seguiu cantando, sarcástico:
Eu
não sei se o que trago no peito
É
ciúme, é despeito, amizade ou horror
Eu
só sei é que quando a vejo
Me
dá um desejo de morte ou de dor.
Desafiado pela palavra fatídica, o homem
resolveu cambar a estibordo para ajeitar o curso. Navegou a popa, instável e
veloz, por uns trezentos metros – quem saberia? - e repetiu a manobra, desta
vez para o outro lado, para buscar o rumo preciso do holofote. Na segunda
virada, o último parafuso desprendeu-se e ele ficou com o leme solto em suas
mãos. Estava à deriva.
Diante das gargalhadas do fantasma,
praguejou alto. Morrer não estava no programa.
Atirou para o meio da embarcação a peça
inútil, soltou a vela e moveu-se para diante, arrastando-se. Os braços cansados
teriam de remar. Desalojou o fantasma inconveniente e deitou-se na quina da proa,
trançando as pernas no mastro, de modo a alcançar as águas escuras do rio sem
risco de queda.
Com muito esforço, venceu a Ponta dos
Cachimbos e chegou numa área mais protegida do vento predominante. Descansou um
pouco, pois já estava perto da Pedra Redonda. Enrolou a vela no mastro para não
se rasgar e percorreu as últimas centenas de metros com remadas menos
vigorosas.
Quando aportou à náutica, o tio-avô
havia sumido. Ricardo o esperava aflito à beira d’água, ao contrário da mulher,
que se distraía jogando conversa fora com as amigas.
- Por que não me buscou? - protestou o quase-náufrago.
Ricardo ficou constrangido, baixou a
cabeça.
O homem esgotado e exausto voltou à
carga, exigiu mais atenção, lembrou ao administrador que essa era também a sua
função por ali: cuidar da segurança dos clientes. Alteou a voz, tomou um tom
mais rude. Tanto fez, exaltado, que Ricardo acabou vencendo a subserviência.
- Eu cheguei a preparar o gomão - ele
disse, mostrando o bote de borracha descansando junto à rampa. - Mas sua mulher
insistiu que eu não fosse, não precisava, disse que você adorava aventuras.
O homem silenciou.
Disfarçou o incômodo correndo as vistas
pelo rio encrespado e pela ilha maldita. Firmou o olhar lacrimoso nas luzes da
processadora de celulose, que também continuava fazendo sujeira, sem ninguém protestar.
Safara-se de boa. Agora era seguir em
frente.
Pegou nas mãos o leme roto e avaliou o
estrago.
- Vou precisar de um engate novo e de
parafusos - disse para o guarda-barcos.
Depois, desviou-se dele e arrastou suas
dores ladeira acima. O resto teria de resolver sozinho.
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