Lucinha e Jairo estavam
casados há sete anos. Para o poeta Vinicius de Moraes, cujos inúmeros
casamentos nunca haviam chegado a tal marca, estaria o casal curtindo o que ele
chamaria de suas bodas de tédio.
Foi por essa época –
talvez uns seis meses antes - que Jairo observara em Lucinha um novo hábito:
fazia sempre um ruído suave e afirmativo, traduzível para a escrita
como “oooo-uuuun-í”, quando se sentia satisfeita após o jantar.
Como rotina, o casal
sentava frente a frente para comer, com a farta miscelânea de comidas que
costumava compor a mesa da família distribuída em potes de plástico, travessas
ou panelas entre os dois. E, em geral, comiam em silêncio (os filhos preferiam
comer junto à tevê, hábito que a dupla nunca conseguiu dissipar).
Vez ou outra trocavam
comentários sobre os afazeres do dia. Ela lhe perguntava o que fizera à tarde,
e ele respondia bobagens como “o de sempre”, ou “nada de especial” ou apenas
dava de ombros, como quem diz “isso importa?”.
E assim ficavam os dois jantando
silenciosamente até sobrevir o tal “oooo-uuuun-í”. Ela então se
levantava, começava a recolher os pratos sujos, despejando os restos de comida
na pequena lixeira sobre a pia, enquanto João guardava os potes na geladeira.
Para ele, o som emitido diariamente por Lucinha após a refeição representava uma espécie de final feliz. Como se
ela demonstrasse satisfação por sentir-se farta de um bom manjar e, com aquele
sibilo original, encerrasse em êxtase um momento particular de prazer.
Por vezes, nos dias em
que estava meio irritado, parecia a Jairo que aquele “oooo-uuun-í” – semelhante
ao ruído de um programa de seu computador – era, em verdade, a
representação de uma enferrujada dobradiça de porta se fechando naquele
estômago feminino já tão acostumado a sofrer gastrites recorrentes.
Mas preferia pensar na
versão mais simpática, na qual o sibilo de Lucinha mostrava apenas prazer.
Lembrando do programa do computador, Jairo brincava com ela:
- Conectou?
Ela sorria, embora
achasse a piada tão sem graça quanto repetitiva e enfadonha. Lucinha era um
doce de pessoa. Todo o mundo dizia para Jairo: "Como conseguiste
arrumar uma mulher tão boa?".
Por um lado, Jairo ficava
feliz. Mas, por outro, percebia a maldade do comentário. Todos achavam que no
fundo, no fundo, ele não a merecia. Tão casmurro! Tão bronco! Tão antissocial!
E ela tão amistosa com todos, tão querida, tão atenciosa, tão... fofa! E com
ele também, ora essa. Por isso ele tinha certeza que ela o amava.
- Ela me ama – respondia.
E seguiam seu caminho
rumo à velhice ainda distante, mas irremediavelmente mais próxima a cada dia.
- Oooo-uuuun-í!
- Conectou?
Risada.
- Oooo-uuuun-í!
- Conectou?
Risada.
- Oooo-uuuun-í!
- Conectou?
Pequenos movimento de canto de boca.
- Oooo-uuuun-í!
- Conectou?
Rápida mirada para o
teto.
- Oooo-uuuun-í!
- Conectou?
Longo suspiro de Lucinha.
- Jairo, você pode
recolher tudo hoje? Preciso ir um instantinho lá dentro...
- Claro, Lucinha, deixa
tudo aqui comigo.
Jairo tratou de arrumar a
cozinha. Recolheu os pratos e os copos, colocou-os na máquina de lavar. Ouviu Lucinha cantando lá no quarto e ficou feliz: de longe, não desafinava muito.
Distribuiu a comida em potes apropriados e guardou-os na geladeira. Passou a
migalheira na toalha e, sem dar-se por satisfeito, sacudiu-a na janela. Lavou
algumas panelas, acionou a máquina de lavar e, então, ouviu Lucinha dizer lá da
sala:
- Tô saindo.
Ainda pôde ver Lucinha
pelo vão da porta de saída, carregada de malas e mochilas. Desesperou-se. Para
onde estava indo, assim, sem lhe dizer nada? Estava sendo abandonado? Não, não
podia ser.
Jairo, coitado, sempre
esperançoso... Correu até ela, atrapalhou-se com a maçaneta – um dia
teria que consertá-la, Lucinha já lhe pedira tantas vezes! – e então ribombou do
outro lado da porta o mais sonoro “oooo-uuuun-í” que já ouvira.
- Miguel da Costa Franco -
Beleza, Miguel re voltando, boas leituras. Agradecido!
ResponderExcluirOooo-uuuun-í!
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