sábado, 1 de abril de 2023

Histórias tipo garden


   Todos os sinais são de que a obra está terminando e, em breve, o novo edifício fronteiro a minha sacada será o lar desejado e protegido de muitas famílias bem postas na vida.

   Até agora foram elogiáveis os cuidados com a proteção dos trabalhadores na construção do Village Garden, mas hoje, no oitavo andar, um pintor perigosamente debruçado sobre o frágil parapeito da mureta de vidro dá retoques na pintura do beiral, mostrando com seu desleixo quanto à segurança a urgência da encomenda que recebeu do seu mestre. Se a engenheira o visse, moeria seus ovos no misturador de argamassa.

   No sexto pavimento, um operário varre o piso de cimento nu, pois é assim, com essa impudicícia, que se entregam hoje os edifícios de apartamentos: sem bancadas na cozinha ou nos banheiros, sem revestimentos de azulejos ou parquês, sem bicos de luz ou artefatos de metal e outros adereços decorativos. No quinto andar, três trabalhadores recostados nas paredes da sala fumam seus cigarros, livres de capatazes, e se divertem muito, pois se vê que riem à farta. No segundo, é frenético o ritmo dos pintores de paredes.

   São onze e quarenta. Já se percebe o movimento ansioso em torno de marmitas e quentinhas embaladas em isopor na área dos alojamentos – uma série de contêineres enfileirados no térreo – usurpando um espaço público pertencente à escola vizinha que, espero, receba alguns benefícios em troca de sua generosidade com a construtora.

   Para completar o quadro indicativo de que logo teremos mais uma grande leva de moradores a transitarem pelo quarteirão, engrossando as filas no comércio do bairro, um homem jovem, com seus trajes neutros de corretor imobiliário, mostra a um casal bem vestido e sua filha, essa nem tanto, a unidade do quarto piso, despudoradamente inacabada como todas as demais. Posso ouvi-lo em imaginação, como forma de justificar o alto preço do bem, a exaltar o capricho da pobre arquitetura de vidro, concreto bruto e metal e a modernidade das unidades tipo garden, eis que todos os apartamentos são voltados para um triste canteirinho de mudas em franco sofrimento com o calor infernal desse verão.

   O quadrilátero repolhudo de touceiras descabeladas é o único espaço verde, para além do gramadinho lateral à entrada do prédio, que restou para justificar o qualificativo valorizador dos imóveis: os tais apartamentos tipo garden. Cinicamente, já que a ocupação do terreno foi quase total, os placares à frente do edifício garantem – com toda a confiança que se pode atribuir ao marketing – vista eterna para o verde. Do terreno ao lado.

   Eu que estive aqui desde o início da obra, torcendo egoisticamente – confesso! – para que não vingasse, sou testemunha de que, naquela área, vicejava um bom pedaço de mata nativa, pois jamais se concretizou, por descaso ou falta de destinação de verbas, o sonho da escola pública vizinha de completar seu parque esportivo. Minha praga prosperou por alguns anos. Os instáveis governos que sucederam ao golpe contra Dilma, o último deles responsável pela péssima gestão da pandemia do Coronavírus e outros descalabros, frearam todos os investimentos. A obra atrasou bem uns cinco anos.

   Quando retomado o projeto, restou à escola ceder parte da sua gleba – também impiedosamente desmatada – para a instalação das áreas administrativas e de repouso dos operários, pois o prédio em si ocuparia o terreno inteiro. Os chiques apartamentos duplex do desenho original foram substituídos, num projeto mais vendável, por unidades mais simples, de um piso só, pois todos nós empobrecemos no período. E reservou-se aquele pobre retângulo verde para garantir o qualificativo ilustre: garden.

   Assim, tenho agora ereto na vizinhança o Village Garden e percebo que se aproxima velozmente o desejado fim das obras, da poeira e do barulho, embora tenha assistido essa incômoda ereção, com o ar desconfiado do parceiro compreensivo que reconhece as fragilidades envolvidas no processo.

   O homenzinho de vestes anódinas, mascando sem modos o seu chiclete, agora estende o braço em direção ao arvoredo do terreno da escola, possivelmente a gabar-se da vista aberta para o poente. Tenho ganas de gritar para o jovem casal e sua filha rechonchuda a inspecionar a unidade 401 que o apartamento será um forno nas tardes de sol. Que tenham cuidado ao furar as paredes de gesso cartonado para pendurar seus quadros e evitem pousar vasos robustos nas sacadas. Que desconfiem da firmeza das placas de vidro na fachada lateral, que sejam parcimoniosos no uso das persianas visivelmente frágeis e cogitem proteger-se de vazamentos pelas aberturas de alumínio nas chuvaradas fronteiras. Mas estou longe o suficiente para ser inofensivo. O jovem loquaz há de vencer minha rabugice, o capitalismo tem muitas artimanhas.

   Resta-me torcer para que não caia do andaime o pintor descuidado do oitavo andar, sentimento que por certo me aproxima de seus companheiros de trabalho, por identificação, e do esforçado corretor de imóveis, a quem a queda do operário, naquele momento, poria também por terra – e não muito mais que isso – o seu exaustivo exercício de convencimento do casal de clientes.

   Em breve, um efusivo pipocar de histórias invadirá meu ângulo de visão. Não perderei privacidade e minha vista é privilegiada. Olho-os de cima e de través. Terei espetáculos cotidianos para assistir da janela. Tramas confusas, mancas, fragmentadas, mas ainda assim elas todas armazenáveis na dispensa da ficção, esse ambiente sempre tão espaçoso e ávido por ser preenchido e mobiliado. Especularei com gosto por essas vidas lindeiras, compondo histórias tipo garden. Acho até que vou comprar uma luneta para facilitar as coisas. Mas quero que fiquem tranquilos os potenciais compradores do Village! Prometo, como esforçado ficcionista, não dar nome reconhecível aos bois. 

- Miguel da Costa Franco - 

Texto publicado na Revista Sepé nº 9, de 31/03/23

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