Texto publicado no Pasquim Sul, em 21.05.87
A horta vizinha ao fórum
explodia em couves e cenouras e isto trouxe ao Doutor Orestes, que a espreitava
embevecido da janela, uma saudade salivosa dos quentíssimos pucheros da
fronteira distante, onde nascera. Imaginou as borbulhas de graxa libertando-se
dos granitos de peito em suspensão, os nacos de linguiça, as batatas-doce
cozidas, o rebolar de odalisca das verduras fervilhando, sentiu o cheiro do
quitute a invadir-lhe o escritório e babou. Olhou o relógio mecanicamente,
embora já soubesse pelo oco da barriga que deviam faltar uns quinze minutos
para o meio-dia. A manhã fora calma. A cidade era pequena e quase não acontecia
nada.
Sentou-se em frente à
velha Remington-Rand, que tivera de comprar quando assumira o posto, e
datilografou a palavra fome. Depois, puchero, putiero, pucheiro, puteiro. Então
ouviu as batidas tímidas na porta. Puxou a folha da máquina e rasgou-a. Jogou-a
no lixo enquanto gritava:
- Entre.
Uma mulher robusta, de
braços fortes e peitos incontrolavelmente irritados dentro de um opressivo
sutiã de espuma, entrou encabulada e sussurrou:
- `Dia, Doutor.
- Bom dia, senhora -
respondeu, imaginando como conseguira ela bater tão suavemente à porta com
aquela mão de lenhadora. - Em que posso servi-la?
Gostava de tratar bem aos
humildes, por isso dedicara-se ao serviço público. Era de outros tempos, o
Doutor Orestes.
- Eu queria me apartar do
meu marido, doutor - falou decidida a colonona.
O promotor olhou-a
silencioso, percebendo o vigor da decisão e pensou nos pães de forno que ela
provavelmente fazia tão bem.
- Continue - balbuciou.
- Ele anda me traindo, eu
sei.
O peitoral armou um
suspiro mas ela o cortou. O promotor não disse nada.
- E logo com aquela
porca! - completou ela.
- Tem certeza do que
quer, senhora? Quer mesmo formalizar uma denúncia? - perguntou, paternalmente,
lembrando-se das inúmeras denúncias semelhantes que a posterior reabilitação
amorosa do denunciado levavam ao saturado arquivo da repartição.
- Sim. Ponha aí -
enfatizou, sacudindo o dedo esticado para a folha branca à espera na máquina de
escrever.. - Meu marido tem um caso com a porca preta.
O promotor fez cara de
espanto. A dona prosseguiu:
- Verdade. Eu confirmei.
Andava desconfiada há horas porque a danada seguia ele por tudo. Por esses dias
pariu: nove bichinhos com a cara do pai.
O homem engoliu
profissionalmente o riso. A pobre mulher, trocada pela porca preta, tinha os
olhos raivosamente arregalados. O promotor lembrou-se do coronel de Soledade,
de quem um dia separou-se a mulher por que o marido passava as noites no
estábulo.
- Prefiro a douradilha,
doutor - dissera-lhe, então, o coronel.
A coisa agora se repetia.
Foi aberto o inquérito e notificada a polícia. O Doutor Orestes telefonou para
o delegado e, matreiro, pediu seu empenho pessoal no caso.
O delegado, cria do
distrito de Relvado, e que do mundo mais além de Encantado conhecia apenas
Muçum, foi ao local recolher provas do adultério e apresentou depois um
relatório, que terminava assim: " ... e analisando a leitoada nascida em
19 de novembro p.p.. constatei, conforme denunciado, que todos os leitões
efetivamente têm cara de gente".
Tratava-se, pois, do
primeiro barranqueio com atestado da perícia técnica.
Uns dias mais e a visita
da colonona repetiu-se. Num embrulho, trazia um rolo de linguiça fresca.
- Tá resolvido o causo,
doutor. Matemo a porca. Vim lhe agradecer. Tó pro senhor - e estendeu o
presente.
Em casa, o Doutor Orestes
pediu à esposa:
- Taca num puchero,
velha. É bom que ferva bastante.
- Miguel da Costa Franco -
- Miguel da Costa Franco -
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