Acuado pela falta de perspectivas, sentindo-me um
covarde que abandona a luta em meio ao ataque do inimigo, consegui fugir com
meus familiares por Viamão, a única saída transitável da Porto Alegre inundada.
A enchente de maio havia atingido o seu ápice. As águas, que antes somente
ameaçavam as ilhas, o cais, a Orla e as áreas ribeirinhas, já começavam a
expulsar os moradores do Centro Histórico e dos bairros Menino Deus, Cidade
Baixa, Humaitá, Navegantes, São Geraldo, Floresta e Anchieta.
Quando escapamos da cidade, o temporal havia dado
uma trégua. O dia estava lindo. Viajamos em meio a campos verdes e
rebrilhantes, num cenário de filme publicitário. Acomodei-me em Torres, na
fronteira com Santa Catarina, triste e culpado, mas aos poucos fui achando uma idiotice
minha ter buscado refúgio de uma enchente violenta num apartamento situado às
margens de um rio caudaloso, como o Mampituba.
Desde o início da hecatombe, recebera mensagens
fraternas vindas da Argentina, da Flórida, da Nova Zelândia, do Rio, de São Paulo,
da Paraíba e do Rio Grande do Norte. Ofereceram-me abrigo em João Pessoa,
Ubatuba e Jaguariúna, mas eu não precisava. Morava no alto e sofria apenas pela
escassez de suprimentos e energia. Água potável, não tinha nem para um mate.
Muitos amigos pediram-me indicação de iniciativas
idôneas de enfrentamento ao desastre, que pudessem ser apoiadas à distância.
Procuravam ajudar, mandando bens ou dinheiro, num grande arco de solidariedade.
Coisa reconfortante, bonita de ver.
Também eu, desde o balneário que me acolheu,
tratei de buscar algo para fazer pelos flagelados. Pesquisei alternativas e
tomei as direções indicadas. Vesti um jaleco laranja bem limpinho, como o do
governador Eduardo Leite, e saí por aí, como mais um herói em defesa dos
cidadãos. Com minha família posta a salvo, era o que me tocava fazer.
O dia estava cinzento e a chuva voltara a cair. As
vias também em Torres começavam a ficar cheias d’água e o valão da rua do
supermercado subira ao nível do passeio.
No Centro de Assistência ao Pescador, que
concentrava a maioria das doações, eu poderia colaborar na triagem e despacho
de bens de todos os tipos – roupas, calçados, água, alimentos, itens de higiene
e limpeza, travesseiros, cobertores, colchões –, mas havia voluntários demais e
minha ajuda foi dispensada. No ginásio da Prefeitura, ao contrário, havia
doações de menos. Na paróquia católica, apenas canalizavam os itens doados para
o Centro de Assistência ao Pescador, onde não me queriam. Proprietários de um
parque aquático das cercanias estavam engarrafando água potável com o auxílio
de voluntários para enviar à região metropolitana, mas o lugar ficava a 60 km
de distância de onde eu me encontrava. Achei que seria um desperdício de
gasolina, que já ameaçava se tornar escassa, e considerei muito arriscado
viajar em meio ao aguaceiro. Era certo que eu acharia algo para fazer dentro
dos limites da cidade.
Voltei a andar pelas ruas de Torres, em busca de
opções. Encontrei um prédio de aspecto industrial, onde pessoas estendiam uma
faixa, pedindo auxílio. Estacionei o carro uma quadra adiante, driblei as poças
que minavam o caminho e perguntei, ainda sob chuva torrencial, se eu poderia
ajudar em algo. Receberam-me bem, pois recém estacionara ali ao lado uma enorme
carreta, atopetada de doações para descarregar e distribuir em veículos menores
com destino à capital. Trinta toneladas de água mineral, em fardos de seis
litros.
Coisa boa é água. Fazia muita falta na querida
Porto Alegre inundada de onde eu havia fugido, porque a enchente comprometera o
funcionamento das estações de tratamento. Era uma causa meritória.
Quando entrei no prédio, todos foram muito gentis,
aceitaram-me como um irmão, ficaram felizes com minha disposição para o
trabalho. Ofereceram-me água. Um sanduíche. Preocuparam-se em mostrar-me onde
colocar minha capa molhada, meu jaleco laranja e meus pertences. Ofereceram-me
uma camiseta vermelha, o uniforme dos voluntários, para não estragar as minhas
roupas, nem sujar meu lindo jaleco laranja, tão limpinho quanto o do
governador.
Eu não precisava. Disse que enviassem a camisa que
me ofereciam para os desabrigados. Quem vem da guerra pode avaliar melhor o
tamanho da necessidade. Ainda zumbiam em meus ouvidos as pás dos helicópteros
de resgate.
Um sujeito grande e barbudo quis saber se eu já
estivera ali antes, e eu admiti ser de fora da comunidade, um outsider, um
fugitivo ambiental. Ele disse que aquilo era o refúgio perfeito para mim.
Aproveitou para mostrar-me o brechó e o armazém solidário para atender famílias
carentes, que o pessoal tinha organizado. Ofereceu-me água outra vez. Eu acabei
aceitando, porque em Torres perdera sentido fazer racionamento. O barbudo disse
que, naquele espaço, todos eram bem-vindos, que eu ficasse à vontade.
Eu fiquei. O clima era bom, descontraído. As pessoas
mostravam-se amistosas e estavam imbuídas de um espírito solidário que me
agradava. Esperavam pelo trabalho com bom humor e disposição, homens, mulheres,
jovens, crianças. Ajudar os necessitados motivava-os muito. A lama e a chuva
não importunavam os que se postavam lá fora para esvaziar a carreta. Dentro, os
outros articulavam-se numa corrente humana para fazer chegar a sequência de
fardos até os fundos do salão.
Quando os feixes de garrafas começaram a passar de
mão em mão pelo corredor adentro, alguém pediu que colocassem música. Uma moça
pôs-se a cantar uma espécie de lamento, outra ensaiou o “Sirvam nossas
façanhas”. Um insatisfeito pediu alguma coisa nova, diferente, e por pouco eu
não puxei um Zeca Baleiro: “Eu vi mamãe Oxum na cachoeira, sentada na beira do
rio, colhendo lírio, lirulê, colhendo lírio, lirulá...“. Teria sido um
desastre. Felizmente, antes de mim, o tipo magro que organizava a pilha de
fardos no interior do salão começou a recitar “Um fardinho incomoda muita
gente, dois fardinhos incomodam, incomodam muito mais...”. Todos rimos. E demos
sequência ao cantochão, enquanto empurrávamos as garrafas para diante. “Três
fardinhos incomodam muita gente; quatro fardinhos incomodam, incomodam,
incomodam, incomodam muito mais”.
Com ares de capitã do time, uma loira resolveu
interromper-nos, socorrendo-se de uma playlist do Spotify, que botou a soar em
alto volume, a partir de caixas de som instaladas perto do brechó. O ambiente
encheu-se de canções de gosto duvidoso, cujas letras me eram difíceis de
compreender, pois ecoavam nas paredes nuas do corredor. Percebi menções a Jesus
e aleluias, e só então vi que nas camisetas distribuídas aos voluntários estava
escrito “Angel’s Church”. Somente nesse momento percebi onde estava. Os hinos
de louvação a Deus confirmaram minhas suspeitas. Era um templo evangélico.
O barbudo, que vim a saber ser o pastor, puxou um
rock furioso e estimulante, cuja letra dizia: “O Coliseu não matou a igreja, o
leão não matou a igreja, o mal não venceu a igreja do Senhor”. Cantávamos com
alegria, empurrando os fardos de água pelo corredor, num balanço ritmado pela
louvação, enquanto o pastor mexia-se como um dançarino de rap. Vibrávamos a
cada novo pallet de fardos desfeito, quando tínhamos um instante de descanso.
Passadas duas horas de trabalho contínuo, um jovem
aproximou-se de mim e secou a minha testa suada e meus cabelos grisalhos com
uma toalha macia. Depois, pôs as mãos nos meus ombros e disse com olhos
afetuosos: “irmão, não se canse, temos uma longa jornada pela frente”.
Eu respondi, apaziguado, “estou bem, sei que a
batalha será dura”, mas fiquei pensando que há muito tempo ninguém se
preocupava de forma tão sincera com meu bem-estar. Mais tarde, com os ombros
reclamando pelo esforço repetitivo, eu me lembraria com simpatia daquele jovem
amável.
Quando terminamos a faina com o caminhão, uma moça
chamada Katielen pediu meu número de celular para incluir no cadastro dos
voluntários. Haveria mais trabalho nos próximos dias, pois aguardavam remessas
de doações de irmãos paulistas. Dei-lhe a informação que me pedia, torcendo
para que a carga por chegar fosse de fraldas ou de papel higiênico, itens bem
mais leves que as garrafas d’água que acabáramos de descarregar.
Katielen ficou contente. Agradeceu por minha
disponibilidade. “Glória a Deus”, disse.
Avaliei que seria bom se nossa sociedade fosse
sempre solidária e mobilizada e o poder público conseguisse atingir a mesma
agilidade e organização que a “Angel’s Church”. Temi pelo futuro do estado
laico, essa grande conquista civilizatória.
Dias depois, Katielen me convidaria por Whatsapp
para um culto no salão da igreja, o mesmo que havíamos usado como armazém.
Escreveu ainda que eu havia esquecido o meu jaleco laranja, aquele inútil
coletinho, que não me servira para nada. Sugeri que o doasse, também.
Naquela noite, sonhei que estava numa missa, mas o
pregador não era o sujeito barbudo e simpático e, sim, um engenheiro ambiental.
Vestia um terno escuro com riscado de motivos florais. Com as mesmas maneiras
doces do outro, defendia a ciência e o equilíbrio da natureza, a gestão
responsável dos equipamentos coletivos, a consideração pelos demais e a
solidariedade entre os homens. Quando deu por encerrada sua pregação, ele
fechou o powerpoint com gráficos hidrológicos e guardou seu laptop numa
pastinha preta. Estranhando o desfecho do culto, alguém perguntou quando iriam
louvar a Deus. O engenheiro-pastor deu um sorriso amoroso e disse apenas: “no
momento, não precisamos de deuses, somente dos homens e das mulheres”.
– Miguel da Costa Franco –
Texto integrante da coletânea “A grande
enchente – 2024”, publicado em e-book pela Boaventura Editora, e também publicado
na Revista (Parêntese), de 25 de maio, em plena enchente de 2024 - https://www.matinaljornalismo.com.br/parentese/cronica/um-inutil-jaleco-laranja/
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