Neste outono de 2024, as águas
incorporaram-se, sem apelação, às ruas e praças do Centro Histórico e de
inúmeros bairros da cidade de Porto Alegre. Fomos invadidos pelo rio, que os
sicários da construção civil teimam em chamar de lago, como forma de abrandarem
os efeitos da legislação ambiental e abrirem as portas das cobiçadas áreas
ribeirinhas às construtoras e aos grandes empreendedores.
Não fomos as únicas
vítimas da catástrofe, infelizmente. O mal está espalhado pelo Rio Grande.
Outras comunidades dos arredores da Lagoa dos Patos e dos vales dos rios das
Antas, Taquari, Caí, Sinos, Gravataí, Jacuí e seus afluentes também estão
afogadas por essa inundação terrível, sem precedentes à altura, mas previsível
e anunciada.
Anos de devastação
ambiental, de desrespeito ao adequado zoneamento agrícola e urbano e de
supressão da paisagem original, que garantia a absorção dos excessos hídricos,
transformaram nossas ruas, pátios, praças, parques e varandas no único conduto
disponível para escoar as chuvas pesadas que caíram sobre a região. O Guaíba
invadiu o cais e as ruas, lojas, bares, livrarias, estádios, museus e centros
culturais, casas e apartamentos. Até o Mercado Público, a Rodoviária, o
Trensurb, o Aeroporto e a Prefeitura. Solapou existências, perspectivas e
memórias.
A população está
assustada e mal amparada por dirigentes hipócritas e diversionistas, que
deixaram de lado a prestação de bons serviços e se dedicaram a sucatear os
órgãos de Estado. Preferiram, sempre, garantir os ganhos imediatos de seus
financiadores de campanha e aparecer bem postados nas fotos da imprensa amiga,
no papel dos dirigentes modernos e inovadores que nunca foram. Eis o que
conseguiram, esses fantoches de araque, Eduardo Leite e Sebastião Melo,
representantes de plantão desse empreendedorismo amador e egoísta que chamamos
de poder econômico: centenas de mortos e feridos; o desaparecimento de cidades
inteiras, ou sua destruição parcial; danos monumentais à infraestrutura viária;
prejuízos diretos na esfera pública e privada; desvalorização de imóveis e
bairros; desemprego e desabastecimento; paralisação de escolas; perda de
atratividade para investimentos. É provável ainda que soframos com a migração
futura de empresas para ambientes empresariais mais seguros e promissores. Um
atraso de muitos anos está desenhado para diante. Que grandes gestores eles
são!
O quadro geral é de
desesperança, não há como negar. Conta-se com a força cidadã nessa hora
difícil. Clama-se pela ajuda estatal, porque na hora do aperto só os entes do
Estado – Prefeituras, Defesa Civil, Exército, Marinha, Aeronáutica, Força
Nacional, órgãos vinculados ao SUS, Corpo de Bombeiros, Brigada Militar, Conab,
Secretarias, Ministérios e outros desse naipe – podem ajudar. Os neoliberais
estão ocupados em urdir novos projetos de lei concentradores de riqueza, em
reduzir o número de servidores para abrirem espaço para os cargos de confiança,
ou tomando seu uísque num convescote, olhando para um futuro plastificado e
glorioso em algum Summit ou curtindo uma happy hour com
recepcionistas gostosas pré-pagas. “Desculpe, cidadão, eles não podem atendê-lo
no momento”.
Fala-se muito em
resiliência e reconstrução, num ambiente em que um admirável esforço solidário
convive com o cansaço, o desespero de muitos e o temor geral pelo futuro que se
avizinha. Os dias passam lentos e cinzentos. A situação não muda. Pior: nada
nos garante, diante dessa imprudência administrativa, que não ocorrerá outra
hecatombe, amanhã ou depois.
Ainda assim, em
alguns cantos, entre o ufanismo bobo e a desesperança, subsiste a beleza e a
poesia. Posso afiançar.
As águas podres, que
invadiram em turbilhão as duas pistas da Avenida Borges de Medeiros, pela
inoperância das bombas do sistema de drenagem, agora descansam pacíficas, como
se também elas estivessem exaustas, sobre o piso de concreto e asfalto
impermeável da avenida; como antes o faziam, sem essa companhia invasora, as
águas verdolengas depositadas em piscina sob a antiga ponte dos Açorianos,
próxima dali.
Neste dia 27 de maio,
águas paradas – quase translúcidas – formam um bucólico remanso na Praça
Isabel, a Católica, na confluência da Borges de Medeiros com a Avenida
Aureliano de Figueiredo Pinto. Mais além do traçado urbano, no outro lado do
dique, o rio corre ainda lamacento e assustador. A praça Isabel, a Católica, no
triângulo formado entre essas duas vias e a Praia de Belas, transformou-se em
ilha parcialmente inundada, coberta de galhos mortos, troncos caídos e lixo
trazido pela enxurrada. A feiúra das margens entulhadas contrasta com o nome de
batismo da avenida, estampado na placa azul no lado oposto da ilhota, junto à
esquina. Esse nome antigo, Praia de Belas, agora é quase um acinte.
Na Estação do Corpo
de Bombeiros da Aureliano, um soldado de plantão – deixado para trás nas
operações de resgate e salvamento – observa o nível das águas, conjecturando,
imagino, sobre a melhor maneira de prestar auxílio em caso de necessidade: se
arriscando sair de caminhão ou pilotando um de seus botes metálicos.
Mas onde está a poesia,
afinal, me perguntarão os impacientes.
Olhando de onde estou
postado, a natureza parece retomar seus espaços e sua bem orquestrada desordem
original. O parque infantil, no centro da praça, com seus balanços e gangorras,
resta como um assombro de felicidade em meio à ilha atulhada de restos.
Displicente, uma capivara solitária alimenta-se da grama, onde antes a gurizada
jogava futebol. Centenas de garças distribuem-se pela beira da praia
improvisada, ou talvez definitivamente remarcada – já não sabemos – no lado da
Borges. Apoiadas numa pata só, as garças brancas desobedecem às placas de
“proibido estacionar” e observam, com olhos atentos, a vida sob as águas.
Pescam. Buscam sua comida, mais livres e autônomas sobre o antigo leito da
avenida do que os humanos refugiados nos abrigos ou que resistem, aprisionados,
nos apartamentos mais altos. Por vezes, sobrevoam as águas paradas e capturam
lambaris e carás com bicadas precisas, ou dobram vertiginosamente o pescoço e
surpreendem os peixes imprudentes que se permitem nadar no seu entorno. São
muitas. Às vezes, brigam pelo apetitoso butim. Engolem inteiros os que
capturaram com movimentos decididos, girando-os nos bicos pontudos e
deixando-os escorregar para dentro de si pelos longos, movediços e alvos pescoços.
Não temem sufocar. Nunca vi pedirem pelas tais manobras de Heimlich, que
costumam salvar os humanos engasgados, como nós porto-alegrenses nos sentimos
hoje. Estão acostumadas a isso, é seu hábito vital. Usufruem com gosto da
fartura de peixes que escaparam das águas da torrente, além do dique, e
refugiaram-se nos remansos das ruas, entre os prédios da administração pública.
Ao fundo do quadro bucólico, o bombeiro começa a distribuir grãos de arroz para
marrecas piadeiras.
É um espetáculo
bonito. Poético, como eu disse. A natureza e seus agentes retomando espaços. Um
mar de garças brancas sobrepondo-se ao concreto e à ambição desmedida.
Devolvendo à paisagem algo de sua composição primitiva.
Será essa a
reconstrução necessária? É de se pensar que sim. De onde estou, vejo carros
possantes rastejando assustados pela pista empoçada, frente a deslocadas placas
de controle de velocidade, refletidas na piscina malcheirosa. São bólidos
perdidos, inadequados, dissociados de sentido. Perderam sua hora. “Dá
até pena de passar e atrapalhar a comilança das garças”, comenta uma motorista
impetuosa, que se mete lagoa adentro com seu camionetão. Até ela reconhece esse
vívido deslocamento. Sim, dá pena. O espetáculo das garças, dos cardumes e da
capivara extraviada – estará também por aí o jacaré da Getúlio? – é um presente
para os olhos.
A vida, nesses dias
aterradores, anseia por algo de poesia.
Do alto do prédio do
IPERGS, no mural que foi instalado para homenageá-lo e de onde ele parece
anunciar um irado “eu avisei”, o ambientalista José Lutzenberger, escondido
entre folhagens coloridas, observa a cena. A mão ossuda serve de apoio para um
passarinho – um cardeal, talvez –, que sabe não ter motivos para temê-lo.
Aquela Borges de Medeiros repaginada, devolvida às garças, aos peixes e às
capivaras, certamente agradaria mais aos dois – o naturalista e o pássaro – do
que a pista impermeabilizada que substituiu o alagadiço original. Quão desolado
estaria agora o velho Lutz, aquele sábio e insistente visionário, que tanto
alertou – e tanto lutou – para que não chegássemos à difícil situação em que
nos metemos?
É tempo de perguntas
diretas e respostas bem pensadas. Quero que nossos filhos e netos possam
acreditar no futuro. Repetiremos os erros do passado? Insistiremos no
adensamento urbano e na impermeabilização dos solos? No aterro das várzeas e na
devastação da cobertura vegetal? Seguiremos chafurdando no engodo neoliberal da
desregulamentação, do autolicenciamento, da terceirização de serviços
essenciais, do desprezo pelas necessidades do povo e do culto ao Estado mínimo?
Ou saberemos construir uma cidade mais integrada e perene, com estrutura para
enfrentar nossas tantas fraquezas, que respeite a força do rio e dos seus
afluentes, que siga ao lado da ciência e da honestidade intelectual de
ecologistas como o Lutz?
As cartas estão na
mesa. Ou the book is on the table, para os moderninhos ignorantes,
facciosos e imprevidentes reunidos em happy hour, no inglês
que eles são capazes de entender.
– Miguel da Costa Franco –
Engasgados e com dor.
ResponderExcluirMiguel, teu olhar agudo vê, também, pinceladas daquilo que vive.
ResponderExcluir*Nada* como um bom escritor
ResponderExcluirBelo e contundente
ResponderExcluirLutzenberger, foi um dos maiores ecologistas que conheço, muito avisou sobre os desmatamentos quando poucos falavam sobre, lixos descartados livremente nas Cidades🙏🙏
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