Minha
amiga, a quem chamarei Dora, tem uma vizinha ilustre.
Quando
soube com quem partilhava o condomínio, Dora ficou admirada que uma figura tão
importante da República morasse justo no andar de cima, num prédio tão simples
como era o seu.
Para
Dora, seu apartamento havia sido a conquista suada de uma vida inteira de trabalho
e esforço: uma morada de porte médio, ensolarada, com quartos para si e para os
seus dois filhos, espaço para os gatos e para seu ateliê, com boa privacidade,
garagem para o carro e jardins floridos. Não é fácil a luta do artista plástico.
Mas
ela nunca imaginaria que aspiração idêntica a sua – um simples apartamento de
classe média - estaria nos planos de alguém acostumada a frequentar palácios e
hotéis de luxo, participar de banquetes e homenagens faustosas, de recepções
dignas de reis e reuniões do G20. Que tal coincidência de destinos ela viesse a
partilhar com uma liderança capaz de mobilizar a humanidade inteira, discursando
na ONU, demandada para palestras no mundo todo, e que é sempre aclamada pelo
povo simples de seu país pelos lugares onde transita.
Há
também quem se refira a ela com qualificativos menos nobres. É resultado da
cruzada midiática desqualificada (e, no caso dela, também misógina) que nos
acostumamos a assistir nos jornais diários e nas redes sociais, dirigida contra
os que ousaram destinar parte do orçamento público para segmentos menos
favorecidos da população.
Pois
lá está ela agora, morando um andar acima do seu,
num apartamento comum do bairro Tristeza. Não se pense que é dada a festas e
recepções a vizinha ilustre. Ou que costuma receber a visita de figurões, líderes
empresariais e outros próceres da República. Não. Leva uma vida discreta, quase
anônima.
Por
vezes, Dora a vê sair, em trajes esportivos, se equilibrando numa bicicleta
para prolongados exercícios nas ciclovias da zona sul. Outras vezes, flagra a
vizinha ilustre a brincar com os netos no jardim, ou cruza com ela pela entrada
do edifício, ocasiões em que a vizinha se mostra sempre amável e preocupada em
afastar a incômoda camada de pompa que reveste nossos olhos plebeus quando nos
vemos diante de ícones como ela. Prefere manter à distância os seguranças que
sua condição lhe impõe, gosta de segurar o elevador e fazer embarcar nele o morador
envergonhado ou arredio que se dirige para as escadarias ao vê-la, de trocar
cumprimentos afáveis com as pessoas do seu entorno.
Para
Dora, no entanto, sempre lhe faltam palavras quando a encontra. Na hora agá,
nunca consegue expressar tudo o que gostaria de dizer. Que tem um imenso
respeito por ela, contar-lhe de sua solidariedade pela violência com que a
retiraram do cargo para o qual foi eleita, de como a vê como um exemplo de
dignidade, de como admira sua força e sua coragem. Que se espanta com a firmeza
com que a vizinha ilustre defende as suas ideias, a mesma atitude firme que conseguiu
sustentar ao longo de tantos anos, apesar de obrigada a partilhar espaços com a
nata da escória nacional.
Quando
a oportunidade se abre, sempre falta à Dora dizer a coisa certa, come as
sílabas, gagueja vergonhosamente diante desta mulher de fibra.
Mas Dora é, também ela, uma mulher especial, que sabe ser calorosa e gentil. Não se deixa abater por singelas trapalhadas de elevador.
Para
fazer-lhe um merecido afago, tratou de reunir uma coleção de seus melhores
trabalhos como ilustradora de livros infantis para dar de presente aos netos da
moradora do apartamentinho da Tristeza, vizinho ao seu. Embalou-os com a
consideração que lhe haviam despertado as inúmeras ações de governo adotadas
pela vizinha ilustre. Abusou do talento artístico que a tornou bastante
conhecida no meio editorial da cidade para tornar a embalagem do pacote uma
atração à parte. Redigiu um bilhete carinhoso, expressando por ela sua
admiração, e desejando que ela não esmorecesse na luta por dias melhores, para
si e para seus netos, a quem endereçou os livrinhos. Oportunizou que ela os
presenteasse, em sentido inverso, no dia das avós, atraindo para si, em maior
dose, o carinho dos parentes.
Quem
recebeu o embrulho foi a secretária da vizinha ilustre, pois ela havia saído (era
um daqueles dias em que ela se dedicava a exercitar-se com a bicicleta).
No
dia seguinte, Dora recebeu uma carta de agradecimento. A vizinha ilustre elogiava
o trabalho da artista e a delicadeza de seu gesto, nesse tempo de grosserias e
de gentileza escassa. Em letra de traços firmes e seguros, mostrava mais uma
vez grandeza de caráter e atenção ao outro.
O
bom disso tudo foi saber que a vizinha ilustre, apesar das injúrias e trapaças
de que foi vítima, ainda expressa - em texto de próprio punho - a crença num
futuro melhor para todos nós.
A vizinha está viva e forte. Não a destruíram. Segue se alimentando de
seus afetos mais caros, de música e de livros, e da vida pacata de uma cidadã
comum. E do carinho de seus admiradores, como a minha amiga Dora e muitos outros
de nós.
A
propósito, Dora anda louca para topar com ela no elevador outra vez. Gostaria
muito de abraçá-la, dar beijos estalados nas suas bochechas, consolá-la pela
perda do ex-companheiro, mas entende suas reservas e sua discrição.
Talvez
um dia, quando forem mais sozinhas, se anime a convidá-la para tomar um chá.
- Miguel da Costa Franco -
- Miguel da Costa Franco -
Não conheço Dora, mas votei na guerreira vizinha.
ResponderExcluirSomos dois, e muitos outros.
ExcluirMe reconheço, em parte, na Dora. Lindo, delicado e macio o seu texto. Ainda estou arrepiada.
ResponderExcluirObrigado.
ExcluirA Dora também é uma mulher forte, de fibra, solidária, com um coração maior do que o bairro.
ResponderExcluirTens toda razão, Reginaldo.
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