Tropecei na
morte às duas e meia da tarde. Não na morte comum, mas na morte roubada, que
parece mais vil. Perto do açougue, o corpo estendido no areião, a cabeça
mergulhada numa viscosa poça de sangue. A mão direita, crispada, havia se agarrado ao
chão, como se o morto lutasse para não subir aos céus.
Mal iniciava a tarde e um halo de gente muda observava a morte de perto.
Um, apenas, chorava. Outros andavam de lá para cá, rostos constritos, como que
imaginando a própria sorte. Havia ainda os curiosos, acompanhando com atenção
os movimentos dos policiais e fotógrafos, mais preocupados em
saber por antecipação os detalhes da notícia dos jornais. Das janelas da
redondeza, pendiam cabeças moles e no boteco da esquina ouviam-se apenas
cochichos. Um gordo baixote, de botas enlameadas, circulava atrás de
informações.
Dos lados do carro de polícia, brotavam sons metálicos de risadas
inconvenientes.
- Era filho do Militão Fagundes, lá dos fundões da Bela Vista - dizia um.
- Barbaridade, gente tão boa - comentou outro.
Os carros diminuíam a velocidade ao passar pela estrada, alguns ensaiavam
parar. No outro lado da faixa, vacas pastavam indiferentes ao burburinho dos
homens, no campo encharcado pelas chuvas excessivas de um novembro curioso.
- Foi coisa do açougueiro - disse o frentista do posto.
- Do Antoninho? - perguntou Laurindo, aguador dos Freitas, sem esconder a
surpresa. - Mas eram tão amigos, parece até que compadres! Teve mulher no meio?
O frentista respondeu com um muxoxo.
Os policiais viraram o corpo, a mão enrijecida segurando um punhado de
terra como lembrança.
Um menino de pés descalços e nariz escorrendo cruzou o grupo, numa pressa
silenciosa, e agarrou-se à perna do velho, que havia se encostado ao cinamomo e
posto os olhos mais longe. A multidão aproximou-se lentamente, as cabeças
procurando posição mais favorável. Morbidez latente, necrofilia indisfarçável.
- Peraí - gritou o brigadiano. - Deixem os homens terminarem o serviço e
depois vocês podem ver o morto de jeito.
Rosto esfacelado, morte roubada. Coágulos brotavam do nariz, restos de
vida perdendo-se em borbulhas. A mão crispada, agora voltada para cima, parecia
empurrar o céu.
- Diz que brigaram
por bobagem - contou Antero, peão dos Nunes.
A turma estava silenciosa, ouviam-se apenas os soluços espaçados de
alguém. Falava-se em voz baixa em respeito à morte. Apenas sussurros, conversas
breves. O corpo estendido no pó nublou pensamentos.
- Matou porque estava acuado. Tinha levado dois pontaços de faca. Daquela
ali, ó - explicava o bodegueiro. - Depois fugiu para escapar do flagrante.
O interlocutor limitava-se a sacudir a cabeça, pouco interessado nos
detalhes.
- Foi por causa do comício? - perguntou um recém-chegado.
- Não saiu. A briga foi de
manhã cedinho - respondeu alguém.
A mão rija empunhando a terra, o braço dobrado. Como se dançasse uma
valsa. Pés descalços, a roupa nova agora em desalinho, a morte o pegou de
surpresa.
- Pobre se mata fácil - comentou um velhote, enquanto a garçonete de ar
agitado trazia a mineral que eu pedira.
- Só tem com gás, serve? Dancei com ele ontem de noite - emendou, meio
histérica, ao ver meu assentir de cabeça.
- Vai te puxar os pés de noite - anunciou o velho.
A moça olhou para o morto com visível pavor. A mão calejada, que havia
lhe amansado a cintura na noite anterior, agora parecia acenar um adeus. O
homem, lá fora, ao contrário de ontem, já não podia lhe prometer mais nada.
- Miguel da Costa Franco -
- Miguel da Costa Franco -
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