segunda-feira, 28 de agosto de 2017

A mão do morto



   Tropecei na morte às duas e meia da tarde. Não na morte comum, mas na morte roubada, que parece mais vil. Perto do açougue, o corpo estendido no areião, a cabeça mergulhada numa viscosa poça de sangue. A mão direita, crispada, havia se agarrado ao chão, como se o morto lutasse para não subir aos céus.


   Mal iniciava a tarde e um halo de gente muda observava a morte de perto. Um, apenas, chorava. Outros andavam de lá para cá, rostos constritos, como que imaginando a própria sorte. Havia ainda os curiosos, acompanhando com atenção os movimentos dos policiais e fotógrafos, mais preocupados em saber por antecipação os detalhes da notícia dos jornais. Das janelas da redondeza, pendiam cabeças moles e no boteco da esquina ouviam-se apenas cochichos. Um gordo baixote, de botas enlameadas, circulava atrás de informações. 

   Dos lados do carro de polícia, brotavam sons metálicos de risadas inconvenientes.


   - Era filho do Militão Fagundes, lá dos fundões da Bela Vista - dizia um.

   - Barbaridade, gente tão boa - comentou outro.


   Os carros diminuíam a velocidade ao passar pela estrada, alguns ensaiavam parar. No outro lado da faixa, vacas pastavam indiferentes ao burburinho dos homens, no campo encharcado pelas chuvas excessivas de um novembro curioso.


   - Foi coisa do açougueiro - disse o frentista do posto.

   - Do Antoninho? - perguntou Laurindo, aguador dos Freitas, sem esconder a surpresa. - Mas eram tão amigos, parece até que compadres! Teve mulher no meio?


   O frentista respondeu com um muxoxo.


   Os policiais viraram o corpo, a mão enrijecida segurando um punhado de terra como lembrança.


   Um menino de pés descalços e nariz escorrendo cruzou o grupo, numa pressa silenciosa, e agarrou-se à perna do velho, que havia se encostado ao cinamomo e posto os olhos mais longe. A multidão aproximou-se lentamente, as cabeças procurando posição mais favorável. Morbidez latente, necrofilia indisfarçável.


   - Peraí - gritou o brigadiano. - Deixem os homens terminarem o serviço e depois vocês podem ver o morto de jeito.


   Rosto esfacelado, morte roubada. Coágulos brotavam do nariz, restos de vida perdendo-se em borbulhas. A mão crispada, agora voltada para cima, parecia empurrar o céu.


   - Diz que brigaram por bobagem - contou Antero, peão dos Nunes.

   A turma estava silenciosa, ouviam-se apenas os soluços espaçados de alguém. Falava-se em voz baixa em respeito à morte. Apenas sussurros, conversas breves. O corpo estendido no pó nublou pensamentos.


   - Matou porque estava acuado. Tinha levado dois pontaços de faca. Daquela ali, ó - explicava o bodegueiro. - Depois fugiu para escapar do flagrante.


   O interlocutor limitava-se a sacudir a cabeça, pouco interessado nos detalhes.


   - Foi por causa do comício? - perguntou um recém-chegado.

   - Não saiu. A briga foi de manhã cedinho - respondeu alguém.

   A mão rija empunhando a terra, o braço dobrado. Como se dançasse uma valsa. Pés descalços, a roupa nova agora em desalinho, a morte o pegou de surpresa.


   - Pobre se mata fácil - comentou um velhote, enquanto a garçonete de ar agitado trazia a mineral que eu pedira.

   - Só tem com gás, serve? Dancei com ele ontem de noite - emendou, meio histérica, ao ver meu assentir de cabeça.

   - Vai te puxar os pés de noite - anunciou o velho.


   A moça olhou para o morto com visível pavor. A mão calejada, que havia lhe amansado a cintura na noite anterior, agora parecia acenar um adeus. O homem, lá fora, ao contrário de ontem, já não podia lhe prometer mais nada.


                                                                    - Miguel da Costa Franco -

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