Alço meus olhos mais uma vez
sobre a paisagem.
Admiro a muralha de edifícios
perfilados, os fundilhos arredondados da catedral, o caudal espalhado pelo
liame verdejante das ilhas, a planura infinita da vertente oeste do rio Guaíba
e percebo que sentirei saudades. Não da tarefa, que me foi
penosa. Mas do cotidiano transpor de horizontes que ela me permitiu viver.
Governar é desiludir-se, ouvi alguém
dizer. Mas é também semear conceitos, forjar relações, construir exemplos,
resgatar a dignidade oculta pelo arbítrio e pelas meias-verdades. E poder
aproximar-se de si mesmo, porque quem governa de espinha ereta não se rende às
conveniências e à falsidade, constrói relações verdadeiras e alimenta o próprio
espírito de mais e mais certezas com o jogo ridículo dos hipócritas.
Mas o fim é sempre o fim, e é
difícil que não doa ver o trem partindo, já longe, ou abandonar a garrafa de champanhe vazia sobre
a mesa de tábuas toscas, cerrar os olhos do morto e desistir de contemplar sua
alma tão querida, partir enfim, morrer também um pouco.
Impensável dispensar as
lágrimas, que a vida se torna uma terra dura e seca sem elas.
Indispensáveis serão os
confortantes abraços, que de cada ser humano que nos cruza o caminho fica ao
menos um olhar sincero, ainda que cruzado por descuido, uma palavra à toa, um
gesto amigo, uma certa pureza às vezes, um não-sei-quê de bom que todo mundo
tem.
Resta o admirador que se revela
num repente, o presente que surge de onde não se esperava nada, a declaração de
amor sem preço, o desvelo de um amigo recente a lhe abrandar o rumo indesejado.
Ficam as coisas e os papeis,
mas as pessoas não serão as mesmas. Quem antes as julgava amestráveis já não
conseguirá fazê-lo: a consciência aberta é o mais terrível dos inimigos. O
caminho que trilhamos juntos já não nos permite contornos: houvesse dúvidas,
talvez freássemos o carro, mas seguimos em frente até o fim. Questão de
compreensão, sinal de ressurgimento.
No meu quintal, muitos já não
querem ficar. Pelo menos três pensaram ir-se. Já não querem compactuar com a
falsidade de outrora. Outros não temem, se apropriaram de seu próprio fazer.
Fico feliz. Mexemos com as cabeças, movemos destinos, desatamos cordames.
Sentirei falta da presteza de
uns, da parceria de outros, da gentileza de um simples café cheiroso trazido à
hora certa, do ambiente mal composto, do chão salpicado pelo fruto do trabalho
dos cupins. (Também eles trabalharam duro, roendo o patrimônio da repartição,
mas os deixei em paz). Outras pragas maiores mereceram minha angústia e meu
esforço. Muitas agora voltarão em revoada, com suas chantagens ridículas e
baratas. Que fazer, se pragas também votam?
Tenho a vida pela frente
uma vez mais e tenho ganas também de apropriar-me definitivamente dela, seguir
meu rumo. Seria bom poder viajar a pé por esse país tão grande.
Umas poucas ilusões eu guardei.
(O sujeito que dizia que governar é desiludir-se estava certo, afinal). Mas
sigo querendo mais do que tenho – nada em moeda sonante! – e mais do que vivi.
E isso é muito bom.
- Miguel da Costa Franco -
- Miguel da Costa Franco -
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