domingo, 20 de agosto de 2017

Saudades da repartição (ou pequena carta para quem vai ou fica)


   Alço meus olhos mais uma vez sobre a paisagem.

   Admiro a muralha de edifícios perfilados, os fundilhos arredondados da catedral, o caudal espalhado pelo liame verdejante das ilhas, a planura infinita da vertente oeste do rio Guaíba e percebo que sentirei saudades. Não da tarefa, que me foi penosa. Mas do cotidiano transpor de horizontes que ela me permitiu viver.

   Governar é desiludir-se, ouvi alguém dizer. Mas é também semear conceitos, forjar relações, construir exemplos, resgatar a dignidade oculta pelo arbítrio e pelas meias-verdades. E poder aproximar-se de si mesmo, porque quem governa de espinha ereta não se rende às conveniências e à falsidade, constrói relações verdadeiras e alimenta o próprio espírito de mais e mais certezas com o jogo ridículo dos hipócritas.

   Mas o fim é sempre o fim, e é difícil que não doa ver o trem partindo, já longe, ou  abandonar a garrafa de champanhe vazia sobre a mesa de tábuas toscas, cerrar os olhos do morto e desistir de contemplar sua alma tão querida, partir enfim, morrer também um pouco.

   Impensável dispensar as lágrimas, que a vida se torna uma terra dura e seca sem elas.

   Indispensáveis serão os confortantes abraços, que de cada ser humano que nos cruza o caminho fica ao menos um olhar sincero, ainda que cruzado por descuido, uma palavra à toa, um gesto amigo, uma certa pureza às vezes, um não-sei-quê de bom que todo mundo tem.

   Resta o admirador que se revela num repente, o presente que surge de onde não se esperava nada, a declaração de amor sem preço, o desvelo de um amigo recente a lhe abrandar o rumo indesejado.

   Ficam as coisas e os papeis, mas as pessoas não serão as mesmas. Quem antes as julgava amestráveis já não conseguirá fazê-lo: a consciência aberta é o mais terrível dos inimigos. O caminho que trilhamos juntos já não nos permite contornos: houvesse dúvidas, talvez freássemos o carro, mas seguimos em frente até o fim. Questão de compreensão, sinal de ressurgimento.

   No meu quintal, muitos já não querem ficar. Pelo menos três pensaram ir-se. Já não querem compactuar com a falsidade de outrora. Outros não temem, se apropriaram de seu próprio fazer. Fico feliz. Mexemos com as cabeças, movemos destinos, desatamos cordames.

   Sentirei falta da presteza de uns, da parceria de outros, da gentileza de um simples café cheiroso trazido à hora certa, do ambiente mal composto, do chão salpicado pelo fruto do trabalho dos cupins. (Também eles trabalharam duro, roendo o patrimônio da repartição, mas os deixei em paz). Outras pragas maiores mereceram minha angústia e meu esforço. Muitas agora voltarão em revoada, com suas chantagens ridículas e baratas. Que fazer, se pragas também votam?

   Tenho a vida pela frente uma vez mais e tenho ganas também de apropriar-me definitivamente dela, seguir meu rumo. Seria bom poder viajar a pé por esse país tão grande.

   Umas poucas ilusões eu guardei. (O sujeito que dizia que governar é desiludir-se estava certo, afinal). Mas sigo querendo mais do que tenho – nada em moeda sonante! – e mais do que vivi.

   E isso é muito bom.

                                                                          - Miguel da Costa Franco -


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