Válber e Válter distinguiam-se, à primeira impressão,
apenas pela quarta letra do nome. Eram gêmeos idênticos. Para contornarem a
patetice dos pais, que lhes garantiram um incômodo eterno batizando-os com
nomes similares, que soavam como latidos de pitbull
– Válber, Válter –, deram corpo e alma aos apelidos infantis de Vabe e
Valtinho.
Rebeca começou a namorar com Valtinho ao
final da faculdade, quando os gêmeos já haviam abandonado o mau hábito juvenil
de experimentar as namoradas um do outro. Um tanto porque haviam crescido, e compartilhar
parceiras à sua revelia não é coisa que se faça, outro tanto porque Vabe foi
estudar Oceanologia em Rio Grande e Valtinho optou pelo curso de Audiovisual em
São Leopoldo.
Os gêmeos muito unidos se afastaram um pouco
nesse período; começaram a ganhar independência. Ainda assim, na presença do
irmão, Rebeca percebia no companheiro um comportamento estranho, vacilante. Algo
de subserviência, uma dubiedade, que não sabia bem como explicar. Apesar da
cumplicidade visceral entre os dois, Valtinho ficava menos solto, meio calado, havia
sempre certa tensão em seu olhar.
Nos momentos íntimos, quando faziam sexo, Rebeca
sentia que soprar no ouvido de Valtinho “eu sei quem você é” de algum modo o tranquilizava.
Mais do que isso: animava-o, dava-lhe um vigor adicional. Ele crescia, digamos.
Rebeca logo entendeu que aquela cochichadinha sutil ao pé da orelha, quando ele
se enfiava nela, trazia-lhe recompensas extras. O sussurro energético passou a compor
os ritos sexuais do casal, até a confiança de Valtinho se consolidar e ele não
precisar mais daquilo para dar substância ao seu desejo. Restou-lhes o cochicho
como um mantra lúdico, provocativo. Mais uma vez, Rebeca tinha feito jus ao
significado de seu nome em hebraico: aquela que une.
Depois que os dois foram morar juntos num
apartamento da Jerônimo de Ornelas, a mãe de Valtinho, vencida em seus princípios,
abriu-lhes o acesso à casa de praia. Tinha um belo casarão em Atlântida, com
uma infinidade de quartos, e foi pragmática. Preferiu aceitar as modernices do
filho do que tê-lo longe de si por todo o verão. Seria melhor se estivessem
casados, mas... O que se podia fazer?
Assim, a oblíqua e anárquica Rebeca – para muitos,
encantadora – foi aceita na família do parceiro. Conquistou o direito a um
quarto de casal privativo, com banheiro anexo, e cama king size com um delicioso colchão de molas, que, por
conveniência, rangia pouco. Diante de tal ganho de liberdade, o casalzinho
passou a visitar Atlântida, com frequência, nos finais de semana do verão.
No feriado de dois de fevereiro, Vabe também
apareceu para partilhar os confortos da casa de veraneio, vindo de Rio Grande, onde
era agora professor na universidade. Jantaram juntos no dia da chegada, os
quatro da família, mais Rebeca. Conversaram muito, divertiram-se, jogaram
cartas até bem tarde, os irmãos – como todos os irmãos – trocando farpas e provocações,
com cobranças, às vezes, enigmáticas para os demais.
Na manhã seguinte, Rebeca foi mais cedo do
que os outros para a beira do mar. Queria aproveitar as horas de sol suave para
se bronzear e fumar seu baseado tranquilizador. Quando chegaram os outros – os
irmãos gêmeos, lado a lado – ela percebeu que, usando as sungas iguais com que
a mãe os tinha presenteado no Natal, os dois não pareciam tão idênticos, assim.
Passou aquela manhã se divertindo com a
novidade. Quando queria chamar algum deles, evitava recorrer aos sinais ou
trejeitos já convencionados em seu íntimo para reconhecê-los. Baixava os olhos
e conferia a identidade de cada um pelo volume acomodado na sunga. Uma
distinção inequívoca. Vê-los jogar frescobol, bonitos e atléticos – um à direita,
outro à esquerda –, deu-lhe mais espaço para a observação cuidadosa, sob a
proteção dos óculos escuros. A coisa era incrível. O cunhado carregava um
instrumento de respeito atravessado no calção. Gigante. Perto dele, o tico do
Valtinho, que ela conhecia tão bem, parecia um assustado camundongo. Avaliou,
num inquietante devaneio de luxúria, que tivera muito azar em conhecer primeiro
o gêmeo errado.
Rebeca corou, quando Vabe lhe ofereceu um churro
de doce de leite. Recusou a oferenda, invadida por um súbito pudor. Ela estava
sentada numa cadeira de praia, ele de pé, enorme, ao seu lado. Vabe percebeu
que algo nela estava um pouco fora de lugar: o olhar baixo e arredio, a voz um
tanto esganiçada e tremida, a pele arrepiada apesar do calor, os mamilos
pontudos marcando o tecido do biquíni grená. Fossem bichos, ele farejaria algo excitante
e inesperado no ar.
Não se refrescaram no mar. A água estava cor
de chocolate, fedendo a algas.
De volta para casa, dedicaram-se às
caipirinhas e ao churrasco, com muita cerveja gelada. Depois, como sobremesa, atiraram-se
sobre uma maravilhosa cassata de chocolate com leite condensado, a
especialidade da sogra. Por três vezes,
durante o almoço, quando queria pedir para alcançar-lhe algo, Vabe acariciou suavemente
a coxa de Rebeca.
A caminhada até o mar e os esportes de praia,
a soalheira, a bebida farta e a refeição pesada, tudo isso em sequência exigiu
deles uma boa sesta durante a tarde. A família se dispersou aos poucos. Vabe
adonou-se da rede da varanda, os anfitriões foram deitar no seu quarto e
Valtinho acomodou-se no sofá da sala, onde batia uma brisa agradável. Rebeca, a
mais irrequieta, encarregou-se da louça suja.
Depois de ajeitar a cozinha, com todos
dormindo, transitou indócil – mais vezes do que o necessário –, entre a exuberância
portentosa da rede e o acanhamento mignon
do sofá. Prolongava as análises sobre quem era quem, encenando um teatrinho de
vaivém entre a sala e a varanda para o caso de ser vista. Os irmãos usavam
cortes de cabelo iguais, tinham as mesmas covinhas na face, os dedos longos, a
pele clara e o corpo enxuto. Sentindo crescer o seu frisson, contemplou o gêmeo refestelado na rede, que, diferente do
outro, não escondia na sunga apenas um tímido camundonguinho. Ela seguia
perplexa com a descoberta. Ouriçada. Ansiosa.
Cutucou Valtinho, no sofá, convidando-o a
sestear com ela no camão king size.
– Eu
sei quem você é – provocou-o, sussurrando ao pé do seu ouvido.
Ele soltou um bufo cavernoso, alcoólico, e
se acomodou melhor no divã que elegera para o seu descanso.
Rebeca desistiu da companhia e recolheu-se sozinha
ao quarto. Encostou a porta, sem chaveá-la, para o caso de o companheiro resolver
entrar. Despiu-se da saída de banho e do biquíni apertado. Deitou-se de lado, nua,
a cabeça repousando sobre o braço dobrado, e abraçou-se ao travesseiro de
Valtinho. Era como preferia dormir, quando estava só.
A brisa do mar fazia dançarem as cortinas de
voil e, flutuando no balanço desse ar
movediço, ela fechou as pálpebras, acalmou os instintos e adormeceu. Teve umas
visões estranhas. Sonhou com trens e locomotivas fumegantes, manobrando na
estação. Ouviu abrir-se a porta da cabine de seu vagão, um breve rangido de
molas a seu lado e, talvez, o cobrador falando com ela, pedindo-lhe algo.
Despertou-se com carícias suaves nas suas
costas. Emergindo das lonjuras do sono, ouviu novamente uma voz enrouquecida,
que bem poderia ser a do ferroviário de seus sonhos, lhe perguntando:
– Eu posso?
O toque em sua pele era gostoso. Ela apenas balançou
a cabeça. Ele podia. Sentiu em seguida o roçar de lábios sutis entre as escápulas
desnudas e uma mão carinhosa a lhe percorrer a coxa exposta. Arrepiou-se. Desde
a beira da praia, ansiava por aquilo. Aos poucos, começou a umedecer-se. Passara
o dia todo assim: respondendo de pronto a qualquer estímulo. Resolveu abrir
caminhos para quem tinha, agora, se grudado às suas costas como uma grande ventosa
aquecida e lhe pressionava o sexo com intensidade e volúpia. Dobrou a perna e facilitou-lhe
os acessos.
Quando ele a penetrou, preencheu-a de um jeito
tal que Rebeca nunca havia experimentado antes. Ela sentiu que estufava. Quase
faltou-lhe o ar. Freou o quadril do outro com a mão livre. Não por medo. Sabia
das proezas de que era capaz a anatomia feminina. Foi apenas pela surpresa. Pelo
detalhe. Passou por um momento de débil relutância, um pequeno dilema moral, mas
preferiu fechar os olhos e se entregar ao prazer inegável que sentia. Relaxou. Moveu
em direção à cabeceira da cama a mão que detivera o outro e repetiu, com entusiasmo
sanguíneo, a autorização que já lhe dera antes:
– Pode, pode...
Uma fração de tempo depois, animou-se a olhar
por sobre o ombro para o corpo cheirando a maresia que acabara de fundir-se ao seu.
Aceitou o risco de fazê-lo inflar-se ainda mais. Com o fio de voz que lhe
restava, sussurrou ofegante o seu mantra conhecido, para quem tentava dividi-la
em duas:
– Eu sei quem você é.
Quando Rebeca acordou de novo, feliz e satisfeita na lânguida solidão do quarto, o céu estava róseo e um cheiro bom de café entrava pela porta entreaberta.
– Fiz um bolinho de laranja pra vocês –
ouviu a sogra anunciar.
Tomou uma boa ducha e voltou imaculada para
a sala. Como sabia há muito tempo, ela era aquela que une.
– Miguel da Costa Franco –
Texto publicado na Revista Parêntese nº 245, de 28/09/2024
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