sexta-feira, 8 de março de 2024

A polêmica sobre "O avesso da pele" é só uma pauta conveniente

 

   Pois não é que voltamos a discutir o tema censura!

   Pois é.

   Façamos o possível para resistir aos retrocessos propostos pela extrema-direita, muitos dos quais tivemos a triste oportunidade de experimentar durante os quatro anos de governo Bolsonaro, de nefasta lembrança.

   Mas... É muito importante saber onde estamos pisando.

   Que notícias envolvendo a extrema-direita brasileira ouvem-se cotidianamente?

   O genocídio Ianomâmi... Falsificação de carteiras de vacinação... Roubo e expatriação de joias pertencentes ao Estado brasileiro... Indiciamentos e condenações de golpistas, financiadores e atores, em razão do ocorrido em 8 de janeiro... Aprovada pelo Tribunal Superior Eleitoral a inelegibilidade de Jair Bolsonaro por crimes eleitorais... Indiciamento iminente de vários integrantes do clã Bolsonaro por crimes diversos, para além da tentativa de golpe... Recrudescimento da violência policial em SP, no governo Tarcísio... A comprovação do uso dos CAC para desvio de armas para o tráfico de drogas e para as milícias... Fraudes nos programas sociais... Avanços no caso Marielle, apontando responsabilidade de políticos e milicianos cariocas... O envolvimento comprovado de militares e do Presidente Bolsonaro na articulação do golpe de estado... A descoberta da existência de uma ABIN paralela, investigando e espionando desafetos do governo Bolsonaro... As aquisições suspeitas e superfaturadas de blindados desnecessários, para a PRF, pelo ex-comandante bolsonarista Silvinei Vasques, hoje preso... Que metade dos parlamentares do PL foi alvo de denúncias à Justiça... E outras tantas do gênero, que brotam a cada dia nos noticiários.

   A par disso, o governo Lula segue com níveis satisfatórios de aprovação.

   Apesar dos obstáculos impostos por um Congresso dominado por opositores, o governo fez o país crescer 2,9% em 2023, ante uma expectativa de 0,9%... O nível de emprego melhorou... A inflação caiu... Aprovou-se a reforma tributária que tramitava há anos, sem avanços... A saúde e a cultura voltaram a ser valorizadas... O desmatamento vem sendo reduzido e o Fundo Amazônia ganha mais e mais contribuintes... Retomaram-se programas sociais importantes, como Minha Casa, Minha Vida e Bolsa-família... As enchentes, deslizamentos e outras emergências vêm tendo a atenção e recursos do governo federal... O equilíbrio dos poderes vem sendo respeitado... Voltamos a ter credibilidade internacional e participar dos fóruns decisórios importantes... Os investimentos estrangeiros no país cresceram... Os BRICS voltaram a se ampliar e fortalecer...

   Enfim, nem tudo está perfeito, mas o País melhorou indubitavelmente, e nem uma imprensa parcial, defensora do “establishment”, consegue tapar o sol que voltou a iluminar nossos dias. A maioria das pautas de notícias é positiva para Lula e seu governo, e nada suscita saudades do governo anterior.

   Por isso, o que resta à extrema-direita é retomar a pauta de costumes. Voltamos, assim, a Jeferson Tenório e seu espetacular “O avesso da pele”. Mas voltamos a ele não pelo conteúdo do livro, que justifica a admiração nacional e internacional, mas por um par de palavras que uma professora provinciana – e, na sequência, alguns estados governados pela direita, pois políticos estão sempre farejando as oportunidades! – considerou chulas, inapropriadas para adolescentes. Adolescentes, diga-se de passagem, que as usam com muito mais frequência do que conseguem balbuciar a palavra “sim”.

   Caralho, porra, buceta, puta que o pariu, cu, merda, chupa, e outros equivalentes, fazem parte do vocabulário cotidiano da nossa gurizada. Aliás, não só dela. Dos adultos, também. Aquele que alguns nomeavam “mito” esbaldou-se no uso de palavras chulas durante todo o seu mandato, em pleno palanque governamental ou em suas “lives” e, inclusive, na vergonhosa reunião ministerial preparatória do golpe, exposta em horário nobre para as famílias brasileiras, por todos os canais de televisão aberta.

   Milei, a versão argentina do bozolóide, leva por lema aquele horroroso “libertad, carajo!”, sem que nenhuma professorinha provinciana e moralista se levante em contrário. (Realmente, os apoiadores da extrema-direita são difíceis de compreender).

   Por que haveria a literatura de distanciar-se da realidade e limitar o vocabulário dos leitores, ao invés de engrandecê-lo? Por que condenar um autor por uma curta sequência de frases, quando seu livro apresenta milhares de outras que nos fazem refletir, entender a realidade que nos cerca e almejar um mundo melhor? Teria algo a ver com se tratar de um pau preto e uma buceta branca, interagindo com alegria?

   Meu abraço solidário a Jeferson Tenório, que, aliás, deve estar a sorrir com o aumento significativo das vendas de seu magnífico livro.

   O que eles querem é reanimar o seu exército de tolos com uma pauta fácil de deglutir. “Nome feio” é feio! E assim dominam as redes sociais com sua hipocrisia, aliviando-se um pouco das pautas negativas que brotam de todos os cantos.

   Não nos deixemos distrair. Discutamos e repudiemos a censura, mas tratemos de lembrar a todos os detratores de “O avesso da pele”, que o “mito” de seus críticos (asseguro que são todos bolsonaristas!) não sabe terminar uma frase qualquer sem soltar um enfático “porra”.

   Mais uma vez, sem que nenhuma professorinha provinciana e moralista se levante em contrário.

   - Miguel da Costa Franco -


segunda-feira, 7 de agosto de 2023

Uma casa boa

 

   “Olha, guria, não vai perder o negócio por causa disso! A casa é tão boa, arejada... A rua tranquila... É garantido que a gente resolve. Me dá só uns dois anos e eu tiro ela daqui. Essas mortes violentas são sempre traumáticas. A pessoa não se acostuma, não entende bem o que aconteceu, se recusa a partir”.

   A sobrinha, que fora buscar o aconselhamento da tia seguidora do espiritismo para aplacar seus temores, não gostou do que ouviu. Todo mundo sabe que essas coisas não se resolvem assim, assim... Ainda tinha bem viva a lembrança da casa mal-assombrada da Haydée, sua amiga de infância.

   A tia continuou: “Eu me lembro bem dessa história. O marido era professor da Unisinos. Ou da Ritter dos Reis. Era arquiteto, eu acho. Quis passar o feriado de Carnaval com a família na praia, mas a mulher bateu pé, que não queria se meter naquele mar de chocolate podre, que a previsão era de nordestão, que Tramandaí ia estar lotada, que morria de enxaqueca e bibibi e bobobó. O homem acabou viajando só com os filhos, a mulher ficou. A gurizada não queria perder as quatro noites de folia na SAT. Lembro direitinho, deu tudo no jornal. Na verdade, a sem-vergonha tava de camanga com um amante”.

   A sobrinha disse que iria procurar pelo assunto no Google. Talvez encontrasse alguma coisa.

   “Viu ali?... A cadeira de balanço?... Se mexeu do nada. É ela... Tá xeretando a nossa conversa. Ela acha que ainda mora aqui, a pobre! Quando tem história de amor no meio, então, custam ainda mais a acreditar. Mulher é pior. Mais teimosa, sabe?”

   Mais uma vez, a sobrinha sentiu-se desconfortável. Disse que a tia era uma mulher machista e ultrapassada. A outra não deu bola para aquela conversa feminista.

   “Não te faz, claro que tu sabe. Tu também é teimosa. Se não fosse, não tinha me chamado... Mas já faz tempo essa história... A casa deve estar à venda há anos... Pior que o enrosco era com o vizinho! Ou melhor: o filho do vizinho. Será que ele ainda mora aí? Ele, não, claro. Tá no presídio. Mas a família dele? Bem que eu achei o povo da rua meio arisco quando cheguei. Antes de ver teu carro, perguntei pelo número 172. Nem queriam me dar informação. Uma mulher fechou a janela na minha cara”.

   “Se já faz tanto tempo, o assassino pode estar em liberdade provisória”, comentou a sobrinha, receosa.

   A casa ficava numa ruazinha calma, perto do hipódromo. O jardim estava descuidado e o portãozinho custou a se desprender da moldura enferrujada quando elas entraram. No começo do quarteirão, a encruzilhada estava cheia de despachos. E não havia oferendas aos santos apenas na esquina. Tinha também um despacho grandão, com galinha, cachaça, milho, farofa, tudo sobre um celofane vermelho, bem na frente da casa. Mesmo quem não entende do assunto podia saber que alguma coisa importante tinha por ali.

   “Quando eu disse o endereço, o Jorge se lembrou de ter lido a notícia no Diário Gaúcho. Motorista lia muito o Diário Gaúcho. ‘O crime da banheira’. Encontraram a mulher aqui dentro, numa piscina de sangue”.

   A sobrinha, que seguia explorando a casa, abriu a porta do banheiro da suíte.

   “Sim, deve ser essa aí... Credo! Marrom e afundada no piso, até parece uma tumba! Não sente um peso estranho aqui, um ar mais grosso? Pois foi nessa banheira que encontraram o corpo. Ela tava pelada, cheia de cortes. O cara surtou, só pode! Se serviu e depois matou. Tinha coisinha dele na periquita dela, por isso foi fácil descobrir o culpado. Pegou 22 anos por latrocínio, porque na saída levou um montão de coisas: joias, laptop, japona, dólar, tudo o que achou de bom. E o marido na praia, preocupado com a enxaqueca dela... Coitado! Deve ser esse gordinho que tá tentando te vender a casa...”.

   A sobrinha sentou no degrau ao final do corredor, desconsolada. Tinha achado o proprietário meio sorumbático, de poucas palavras, o tipo de gente que só responde o essencial. Achou que ele estava com pena de se desfazer do imóvel.

   Apontando com o polegar para a direção dos despachos lá fora, a tia sentenciou: “Esse povo da umbanda é sabido. Sente no ar. Fareja. Mas o preço tá ótimo. A casa é boa. Não vai desistir só por causa disso! Ela não é do mal, só vai achar um pouco estranho ter gente nova na casa. Quando muito, vai te dar uns passa-pés, ligar uma torneira de noite, derrubar coisas de cima dos móveis, apitar na campainha, fazer bater a porta quando tu estiver na rua... É bom não gastar muito na decoração e ter sempre uma cópia da chave contigo! Mas não vai ter nada dessas bobajadas que se vê nos filmes de fantasma: perseguição, incêndios, machadadas... Isso é coisa de Hollywood pra entupir os cinemas de gente. Espírito que se recusa a fazer a passagem é como criança rabugenta, com jeitinho a gente ensina o caminho”.

   A moça balançou a cabeça, duvidando do que ouvia. Todo mundo sabe que isso não é bem assim.

   “Sou tua tia, não ia dizer isso se não tivesse certeza. Um ano, um ano e meio, dois... Ela acaba saindo, eu te garanto. Nosso Centro tem experiência com isso, toda semana aparece um que não quer sair da toca. Depois da pandemia, então... Puta que o pariu! O que tem de gente que ficou chateada de não poder se despedir! Daí fica meio no limbo, zanzando”.

   A sobrinha, outra vez, não gostou do comentário, achou que era até pecado dizer uma coisa dessas dos coitados que morreram de Covid. Pura maldade!

   “Com morte matada é pior, não vou te mentir. Pelo amante, ainda mais... A pessoa não quer acreditar. É justo, não é? Disseram que era um guri, dezenove, vinte anos. A dona já tinha passado bastante dos quarenta, devia estar se labuzando no mel... O Jorge que não me ouça, mas a idade pesa, viu? Não é mais a mesma coisa, aquela energia toda, aquela gana, aquela firmeza...”

   A tia, quando se metia em confidências, perdia a compostura. A sobrinha ficou constrangida. Olhou-a com ar avaliativo. Pensou que, se a velha não fosse tão faladeira e perdesse um pouquinho de peso, talvez o tio Jorge voltasse a ser tão fogoso quanto era antes.

   “Viu que a cadeira balançou de novo? É ela. Tá nos ouvindo. Vai acabar entendendo que a hora terrena dela já passou. Deixa comigo. A gente tira, garantido. É só ter um pouco de paciência. Ah! Melhor não ter cachorro por aqui pra não infernizar a vida de vocês e da vizinhança”.

   A moça teve de concordar, sabia que cachorro não convive bem com alma penada.

 A tia deu uma risadinha sarcástica: “Se bem que o vizinho até merecia um incomodozinho, né?”.

   A sobrinha tratou de fechar as janelas que abrira e a saída para o quintal. Depois, abriu a porta da rua e convidou a tia para acompanhá-la. Ofereceu-lhe uma carona. Quando saíram, olhou com tristeza para a sala ampla e vazia, para a cadeira de balanço que ficara para trás na mudança, e fechou a porta devagarinho, com todo o cuidado.

   Que pena! Uma casa tão boa!


 Texto publicado na Revista Sepé de Literatura, de abr-jul/2023