quinta-feira, 13 de junho de 2024

Sobre uma visita ao Coletivo Autônomo Morro da Cruz



No começo de junho, fui conhecer de perto o Morro da Cruz, acompanhado da amiga antropóloga Lúcia Scalco, de quem sou um profundo admirador por seu trabalho e dedicação. A Lúcia foi fazer sua pesquisa de mestrado naquela comunidade e não conseguiu mais se afastar de lá, absorvida pelos dramas e necessidades da população residente, mas também pelo potencial humano mal explorado que encontrou ali. 

Para canalizar suas ações de forma mais consequente, acabou fundando uma ONG, da qual é hoje a presidente - o Coletivo Autônomo Morro da Cruz -, de quem me tornei um colaborador, doando recursos, móveis e eletrodomésticos, sempre que possível.

Frente à ampla visão panorâmica da cidade de Porto Alegre, sob um lindo céu azul, perguntei-me porque nunca estivera antes ali no Morro. Não me foi difícil encontrar a resposta. Apesar de centrais e próximos de equipamentos públicos e privados importantes para a cidade, como a Pontifícia Universidade Católica, quartéis do Exército e da Brigada, do presídio central, das antenas enormes do Morro da Polícia e do hipermercado Carrefour, os bairros abrangidos pelo codinome Morro da Cruz são mal equipados de infraestrutura. O traçado das ruas nem sempre é regular, contemplando loteamentos e ocupações. As vias, no mais das vezes, são estreitas, íngremes e mal calçadas. Há carência de escolas, de creches e de transporte público e falta água com frequência. A oferta de energia e internet é igualmente precária. Como de hábito nos bairros periféricos, o poder semioculto do tráfico de drogas, mais do que a presença tímida de aparelhos do Estado, é o definidor do que seja a segurança ou insegurança da população. A cor da pele dos moradores é, como regra, mais escura do que se observa nos bairros mais centrais, que uso frequentar. O casario é simples e, muitas vezes, malconservado e frágil. Algumas moradias ocupam áreas de risco, sujeitas a desmoronamentos e inundações eventuais. Exposto aos ventos e às intempéries, faz frio no Morro da Cruz.

Foi esse o universo que seduziu Lúcia Scalco e a instigou a fundar o Coletivo Autônomo, hoje uma instituição respeitada e consolidada no bairro, sempre de mãos estendidas para a população humilde que lá habita. “Aqui é o meu mundo”, ela diz, com os olhos brilhando. O foco principal do Coletivo são as crianças, que têm nas unidades da ONG um segundo turno escolar de qualidade invejável, envolvendo teatro, música, dança, biblioteca, inclusão digital, atendimento psicológico individual ou em grupo, educação física e recreação, filosofia e técnicas agrícolas. Um lugar seguro, amoroso e adequado para receber os filhos da comunidade, alimentando-os e educando-os.

Com apoio do governo federal, o Coletivo constituiu em sua sede um modelar Centro de Recuperação de Computadores, que serve à formação de técnicos, à inclusão digital e, futuramente, para ampliação do sinal de internet na região.

Em mais uma iniciativa ousada e promissora, envereda pela marcenaria, tendo oferecido até agora mais de 600 rodos para limpeza dos locais atingidos pela enchente. A partir dessa experiência solidária, almeja constituir uma marcenaria-escola direcionada aos adolescentes, talvez sob a forma de uma cooperativa, com vistas a criar alternativas profissionais.

Seu impacto sobre a comunidade é tão expressivo, que hoje direciona ações até para o público 60+, também numeroso na região.

Espalhada por cinco ambientes no Morro, valendo-se das estruturas simples que encontrou ociosas ou prospectou, dos talentos e dos saberes locais, como também do trabalho dedicado de outros abnegados como a Lúcia, a ONG – nesse período de emergência climática que estamos vivendo – canaliza doações, recursos e alimentação para dezenas de famílias locais e de desabrigados que se hospedam em casa de parentes, vindos das áreas inundadas.

Embora demandada por todos os lados, pois as carências da comunidade são inimagináveis, a ONG resiste em ser vista como assistencial. Não é seu propósito. Também não quer virar palco para os oportunistas. Sua batalha é promover a autonomia e a emancipação das pessoas. Torná-las senhoras de seu destino e de suas habilidades.

Do sucesso de sua atuação, sou agora testemunha ocular. Seus colaboradores são pessoas especiais: a Nira, a Duda, o Alejandro, o Rafael, o Vítor, a Marcella, a Luísa, o João, a Rose, o Juan, o Moisés, o Grael e tantos outros cujo nome me escapa agora. Conheci por lá crianças felizes e amorosas em germinação, adolescentes com futuro promissor, mulheres empoderadas e de iniciativa e pessoas recuperadas de um passado mais sombrio para uma vida produtiva e harmônica em sociedade. Só gente boa.

Mando meu abraço sincero ao pessoal do Morro da Cruz e do Coletivo Autônomo que conheci na minha visita. Seguirei parceiro de suas ações e atento às suas necessidades. Espero que muitos se integrem a essa importante iniciativa de promoção das pessoas e de resgate da cidadania, encravada num morro lindo, aqui tão pertinho de todos nós.

 Do amigo e colaborador, Miguel da Costa Franco


Link para o site da ONG:

Coletivo Autônomo Morro da Cruz

End.: Rua Vidal de Negreiros, 1652 - CEP 91520-485

CNPJ: 34.426.595/0001-63

Dados bancários:

Banco do Brasil S.A.

Agência: 3240-9

Conta: 45315-3

PIX: financeiro@coletivo.org



terça-feira, 11 de junho de 2024

Lata d'água na cabeça na calçada do Parcão

  


– Dona Gladys brigou comigo, disse que ia me demitir, que já correram muitos dias do grosso da enchente e eu ainda não tinha voltado pra trabalhar. Mas como é, vizinha, que eu ia atravessar aquele tantão de água do Gravataí, que barrava a saída de Cachoeirinha? Pedindo carona no bote d’um socorrista? Não dava, não era certo. Pior, não era é justo. Por causa do rio, eu tive que sair da minha casa e me mudar pro sítio da minha sogra, em Morungava. Eu não ia com a cara da mãe do Xexéu, meu marido, nem ela com a minha. Ela me achava muito fazida e faladeira. Dizia que eu não era de confiança, porque tinha me enrabichado pelo Xexéu e largado sem dó o Francisco José, que me trouxe lá da Paraíba quando veio trabalhar numa fábrica daqui. Eu dizia que ela era muito enxerida e mandona. Que não tinha direito de se meter na minha vida. Vou lhe dizer uma coisa, vizinha, eu mudei. Tive que mudar. Aprendi a dar valor a ela. Deus a abençoe! Uma santa criatura, a bandida! Minhas coisas, que eu juntei por trinta anos, ficaram tudo pra trás e ela me socorreu como pôde. Não poupou nada, nada, nada. Chorei de soluçar. Juntou os miúdos que tinha e até calcinha e sutiã ela me deu. Mas acabei me desviando do assunto.  Eu tava falando era da patroa. A Dona Gladys insistia pra eu voltar, que tava sem água desde o começo do mês, que já era dia vinte e o apartamento tava um lixo, tinha pilhas de louça suja na cozinha, roupa usada que não acabava mais e os quatro banheiros fediam como toaletes de rodoviária. Ela falava assim, toda chiando, toalétiiis. Vê se pode! Chamar as privadas de toalétiiis. Disse também que tava agora sem luz e sem elevador, internet falhando, que tudo por lá tava dando xabu e que precisava de alguém pra buscar água no caminhão-pipa do DMAE estacionado no Parcão ou no outro, que tinha na Praça Júlio. Aí, eu lembrei da minha infância lá no sertão, me encorajei e disse para ela:  Dona Gladys do céu, a senhora me perdoe, mas isso a senhora mesmo pode fazer, não pode? Eu me criei no fundão da Paraíba. Lá todo mundo – velho, moço, homem, mulher – buscava água nas cacimbas desde criancinha. Era divertido. O sofrimento era grande no início, não vou lhe mentir, mas a gente era feliz. Muito apanhei para buscar a água do café da manhã, até me acostumar com aquilo e ver que era bom. Criança é especialista em transformar sofrimento em diversão. Agora de longe, eu até sinto saudades. Quando tinha de carregar água, ainda era bom. Buscar lenha ou gás é que era pior. Por que a senhora não pede pro Tiaguinho ou pra Taís buscarem água pra vocês? A Dona Gladys não dizia uma palavra, vizinha. Parece que emudeceu. Quando muito soltava um ‘ora, ora...’.  Lembrando das crias dela, altas e fortonas, eu não pude deixar de pensar que eu acabei não crescendo muito, fiquei assim meio pitoca, meio atarracada, de tanto peso que carreguei na minha cabeça. Mas sempre agradeci muito a Deus por ter aquela água, mesmo que, às vezes, ela fosse meio salgada ou tivesse gosto de barro ou ferrugem. Graças ao nosso Lulinha, que a Dona Gladys e o Tiaguinho odeiam e vivem falando mal, minha família escapou dessa peia. Então eu disse pra patroa, e lhe juro, vizinha, que não foi pra atossicar: o meu painho falava que aquele serviço duro ensinava a ter disciplina, Dona Gladys, a respeitar os outros, não lavar os pés onde o povo pega água de beber. Quando a gente quebrava a cabaça ou o pote, a mãe dava bronca, mandava retomar a trilha e buscar tudinho outra vez, até fazer certo. Aprendi com eles, daquele jeito, valores que hoje já se perderam por aí e não se acham mais. Foi isso, ter de buscar água nos barreiros e nas cacimbas pra sobreviver, que fez da gente cidadãos de bem. Então a Dona Gladys desligou o celular. Ou teve um troço ou foi a ligação que caiu. Tudo por lá tava funcionando mal, né mesmo? Por via das dúvidas, pra patroa não pensar que eu tava fugindo da conversa, foi minha vez de ligar pra ela. Já saí falando: Oi, caiu a ligação, né? O que é que eu tava dizendo? Ah... Eu tava lembrando das broncas do painho e da mãinha. Vou lhe ensinar umas coisas, Dona Gladys. Me escute. Ela tentou retrucar e eu cortei: não, espere, me escute, mulher. É pro seu bem. Primeiro: não dá pra ter preguiça, visse? Segundo: vai doer a cabeça? Vai. Vai doer o pescoço? Vai. Tome cuidado ao levantar os baldes pra não machucar a coluna. Se agache um pouco, dobre os joelhos que ajuda. Melhor não ir de salto alto pra não tropicar. Pode botar umas ramagens de folhas por cima do balde pra não chegar em casa com ele pela metade. Melhor também ir de roupa velha e de sutiã, porque vai molhar a blusa. Mais crescidinhas, eu e as minhas primas, a gente abusava disso pra arrumar namorado, mas a senhora não tá mais pra essas coisas, né não, Dona Gladys? Ou ainda tá? Vizinha, eu nem acredito que falei isso pra ela. Acho que ando meio abestada das ideias. E não parei, segui aconselhando. Coloca uma rudia na cabeça, Dona Gladys, pra assentar melhor o balde. Ela perguntou ‘o que é rudia?’. Eu toquei em frente, vizinha. Não sabe o que é? Pode botar uma trunfa colorida dessas das suas. Aquelas que imitam as africanas. Rudia é como uma rodinha de pano, uma almofadinha de proteção pra amansar o contato com a lata, entendeu? Ela disse que era só o que faltava sair pela Vinte e Quatro de lata d’água na cabeça. Eu sugeri então que ela levasse alguns galões de cinco litros que eu tinha guardado depois da cheia anterior, de novembro, os que ela comprava no Zaffari porque a água da pena tinha ficado com gosto ruim. Disse pra ela botar os galões num pau qualquer pra carregar nos ombros. Podia ser um cabo de vassoura ou do rodo, ou uma daquelas taquaras secas que tinha no vaso grande do canto da sala. Que ajudava a diminuir a dor nas costas, mas que era bom proteger os ombros do roça-roça da madeira. Na Paraíba, a gente também usava os jumentos pra carregar, mas ali no Moinhos de Vento não tinha disso, não. A menos que resolvessem criar um par de jegues no pátio do edifício e botassem uns cochos numa vaga da garagem pra alimentar os bichos. Ela não gostou, só imagino o tamanho dos beiços. Ficou dizendo que era só o que faltava ter de copiar o povo do sertão. Perguntou se eu estava me divertindo com a desgraça alheia. Eu perdi a paciência, vizinha. Não consegui esconder minha irritação. Och, Dona Gladys, och... Tenho muito orgulho de ter nascido sertaneja e tenho muito pra lhe ensinar, visse? De mais a mais, se tem alguém desgraçada aqui, sem casa e sem mobília, essa sou eu, né não? Ela mudou de assunto, nunca quer saber dos meus problemas. Disse que a pouca água que viu o dentista do 802 pegar nos caminhões tava sempre meio amarela, meio fedida, meio turva. Meio, meio e mais meio... Eu nunca tinha visto três metades de uma coisa só. Tive que respirar fundo. Ô, mulher exagerada! Dona Gladys, Dona Gladys... É água de caminhão-pipa, mas é água da hidráulica, água tratada. Água de caminhão é ouro, Dona Gladys. Quem bebeu água de barreiro sabe. A senhora não vai ficar disputando ela com os bois, os cabritos ou as rãs. Ela não tem cagada de bicho nem baba de sapo dentro. Ninguém lavou os pés nela antes, nem esfregou os sovacos ou as partes. Não carece de coar num pano as impurezas. A senhora não vai caminhar quilômetros no sol da caatinga pra buscar, como a gente fazia. São só umas seis quadras até o Parcão ou a Praça Júlio. Se faltar água na pipa, não vai ficar disputando a pouca sombra d’um mandacaru esperando a cacimba brotar água de novo. É só consultar os anúncios na rádio ou no jornal e ver direitinho o horário que o caminhão passa. E nem vai ter de trabalhar na roça depois que voltar pra casa carregando as bambonas. Ah! Vizinha, como ela se irritou! Disse que, das duas, uma: ou eu era muito abusada ou tava ficando abobada da enchente. Que queria me ver no apartamento da Santo Inácio na manhã seguinte, ‘ou tu já sabes’... Eu tratei de cortar a madama, não era possível aquilo. Aquela mulher era muito aluada! Não vai dar, Dona Gladys, tenha tento. Preciso dar jeito na minha vida antes, recuperar um pouco do que perdi lá na minha casinha. Então ela quis terminar a conversa e me disse, toda ouriçada: ‘Josineide, eu já falei o que queria e não estou brincando’.  Eu fiquei imaginando a boca torcida e o nariz empinado. Não me aguentei, segui na minha toada e aproveitei para dar uma ferroadinha naquela mulher folgada: na hora de dormir, Dona Gladys, ponha um fraldão bem grosso, porque se a senhora mijar na cama de novo, como daquela vez da bebedeira no casamento da sua sobrinha, não tem nenhuma cachoeira aí por perto pra lavar o colchão, como a minha mãe fazia quando a gente se afrouxava de noite. E tome jeito, rapariga: não deixe de pegar a água do caminhão. Água é vida. Passe bem, Dona Gladys. Vizinha de Deus! Eu pagava os tubos pra ver a patroa desfilando de rudia, salto alto e lata d’agua na cabeça na calçada do Parcão.

 

     – Miguel da Costa Franco –