“Olha, guria, não vai perder o negócio por causa disso! A casa é tão
boa, arejada... A rua tranquila... É garantido que a gente resolve. Me dá só uns
dois anos e eu tiro ela daqui. Essas mortes violentas são sempre traumáticas. A
pessoa não se acostuma, não entende bem o que aconteceu, se recusa a partir”.
A sobrinha, que fora buscar o aconselhamento da tia seguidora do
espiritismo para aplacar seus temores, não gostou do que ouviu. Todo mundo sabe
que essas coisas não se resolvem assim, assim... Ainda tinha bem viva a
lembrança da casa mal-assombrada da Haydée, sua amiga de infância.
A tia continuou: “Eu me lembro bem dessa história. O marido era
professor da Unisinos. Ou da Ritter dos Reis. Era arquiteto, eu acho. Quis
passar o feriado de Carnaval com a família na praia, mas a mulher bateu pé, que
não queria se meter naquele mar de chocolate podre, que a previsão era de nordestão,
que Tramandaí ia estar lotada, que morria de enxaqueca e bibibi e bobobó. O
homem acabou viajando só com os filhos, a mulher ficou. A gurizada não queria
perder as quatro noites de folia na SAPT. Lembro direitinho, deu tudo no jornal.
Na verdade, a sem-vergonha tava de camanga com um amante”.
A sobrinha disse que iria procurar pelo assunto no Google. Talvez
encontrasse alguma coisa.
“Viu ali?... A cadeira de balanço?... Se mexeu do nada. É ela... Tá
xeretando a nossa conversa. Ela acha que ainda mora aqui, a pobre! Quando tem
história de amor no meio, então, custam ainda mais a acreditar. Mulher é pior.
Mais teimosa, sabe?”
Mais uma vez, a sobrinha sentiu-se desconfortável. Disse que a tia era
uma mulher machista e ultrapassada. A outra não deu bola para aquela conversa
feminista.
“Não te faz, claro que tu sabe. Tu também é teimosa. Se não fosse, não tinha me chamado... Mas já faz tempo
essa história... A casa deve estar à venda há anos... Pior que o enrosco era
com o vizinho! Ou melhor: o filho do vizinho. Será que ele ainda mora aí? Ele,
não, claro. Tá no presídio. Mas a família dele? Bem que eu achei o povo da rua
meio arisco quando cheguei. Antes de ver teu carro, perguntei pelo número 172.
Nem queriam me dar informação. Uma mulher fechou a janela na minha cara”.
“Se já faz tanto tempo, o assassino pode estar em liberdade provisória”,
comentou a sobrinha, receosa.
A casa ficava numa ruazinha calma, perto do hipódromo. O jardim estava
descuidado e o portãozinho custou a se desprender da moldura enferrujada quando
elas entraram. No começo do quarteirão, a encruzilhada estava cheia de
despachos. E não havia oferendas aos santos apenas na esquina. Tinha também um despacho
grandão, com galinha, cachaça, milho, farofa, tudo sobre um celofane vermelho, bem
na frente da casa. Mesmo quem não entende do assunto podia saber que alguma coisa
importante tinha por ali.
“Quando eu disse o endereço, o Jorge se lembrou de ter lido a notícia no
Diário Gaúcho. Motorista lia muito o Diário Gaúcho. ‘O crime da banheira’.
Encontraram a mulher aqui dentro, numa piscina de sangue”.
A sobrinha, que seguia explorando a casa, abriu a porta do banheiro da
suíte.
“Sim, deve ser essa aí... Credo! Marrom e afundada no piso, até parece
uma tumba! Não sente um peso estranho aqui, um ar mais grosso? Pois foi nessa
banheira que encontraram o corpo. Ela tava pelada, cheia de cortes. O cara
surtou, só pode! Se serviu e depois matou. Tinha coisinha dele na periquita
dela, por isso foi fácil descobrir o culpado. Pegou 22 anos por latrocínio, porque
na saída levou um montão de coisas: joias, laptop, japona, dólar, tudo o que
achou de bom. E o marido na praia, preocupado com a enxaqueca dela... Coitado! Deve
ser esse gordinho que tá tentando te vender a casa...”.
A sobrinha sentou no degrau ao final do corredor, desconsolada. Tinha
achado o proprietário meio sorumbático, de poucas palavras, o tipo de gente que
só responde o essencial. Achou que ele estava com pena de se desfazer do
imóvel.
Apontando com o polegar para a direção dos despachos lá fora, a tia
sentenciou: “Esse povo da umbanda é sabido. Sente no ar. Fareja. Mas o preço tá
ótimo. A casa é boa. Não vai desistir só por causa disso! Ela não é do mal, só
vai achar um pouco estranho ter gente nova na casa. Quando muito, vai te dar
uns passa-pés, ligar uma torneira de noite, derrubar coisas de cima dos móveis,
apitar na campainha, fazer bater a porta quando tu estiver na rua... É bom não
gastar muito na decoração e ter sempre uma cópia da chave contigo! Mas não vai
ter nada dessas bobajadas que se vê nos filmes de fantasma: perseguição, incêndios,
machadadas... Isso é coisa de Hollywood pra entupir os cinemas de gente.
Espírito que se recusa a fazer a passagem é como criança rabugenta, com
jeitinho a gente ensina o caminho”.
A moça balançou a cabeça, duvidando do que ouvia. Todo mundo sabe que
isso não é bem assim.
“Sou tua tia, não ia dizer isso se não tivesse certeza. Um ano, um ano e
meio, dois... Ela acaba saindo, eu te garanto. Nosso Centro tem experiência com
isso, toda semana aparece um que não quer sair da toca. Depois da pandemia,
então... Puta que o pariu! O que tem de gente que ficou chateada de não poder
se despedir! Daí fica meio no limbo, zanzando”.
A sobrinha, outra vez, não gostou do comentário, achou que era até
pecado dizer uma coisa dessas dos coitados que morreram de Covid. Pura maldade!
“Com morte matada é pior, não vou te mentir. Pelo amante, ainda mais...
A pessoa não quer acreditar. É justo, não é? Disseram que era um guri, dezenove,
vinte anos. A dona já tinha passado bastante dos quarenta, devia estar se
labuzando no mel... O Jorge que não me ouça, mas a idade pesa, viu? Não é mais
a mesma coisa, aquela energia toda, aquela gana, aquela firmeza...”
A tia, quando se metia em confidências, perdia a compostura. A sobrinha
ficou constrangida. Olhou-a com ar avaliativo. Pensou que, se a velha não fosse
tão faladeira e perdesse um pouquinho de peso, talvez o tio Jorge voltasse a
ser tão fogoso quanto era antes.
“Viu que a cadeira balançou de novo? É ela. Tá nos ouvindo. Vai acabar
entendendo que a hora terrena dela já passou. Deixa comigo. A gente tira,
garantido. É só ter um pouco de paciência. Ah! Melhor não ter cachorro por aqui
pra não infernizar a vida de vocês e da vizinhança”.
A moça teve de concordar, sabia que cachorro não convive bem com alma
penada.
A tia deu uma risadinha sarcástica: “Se bem
que o vizinho até merecia um incomodozinho, né?”.
A sobrinha tratou de fechar as janelas que abrira e a saída para o
quintal. Depois, abriu a porta da rua e convidou a tia para acompanhá-la. Ofereceu-lhe
uma carona. Quando saíram, olhou com tristeza para a sala ampla e vazia, para a
cadeira de balanço que ficara para trás na mudança, e fechou a porta devagarinho,
com todo o cuidado.
Que pena! Uma casa tão boa!
Texto publicado na Revista Sepé de Literatura, de abr-jul/2023
Nenhum comentário:
Postar um comentário