quinta-feira, 13 de abril de 2023

Confissão


   Escrevo esta carta-desabafo de coração apertado, Maria, amor da minha vida. Não tive coragem de contar pessoalmente o que vai nela e, portanto, não ouvirei de ti as palavras apaziguadoras que desejaria receber em troca.

   Deixarei esse papel entre meus “recuerdos” pessoais, os quais tu te porás a cavoucar em alguma tarde vadia depois que eu me for, se estiveres saudosa de mim. Caso topes com ele, embora saiba das rasas chances de que isto aconteça, pois não és mulher de estocar passados, espero que o teu bom ânimo te ajude a me compreender.

   Esta carta, pensando bem, é melhor que não a leias. Há coisas que não tem perdão, nós sabemos. Se desistires aqui da leitura, repasse-a, em algum momento, a um de nossos filhos. Eles saberão o que fazer.

   Seguirei em frente.

   Fizeste de mim uma pessoa melhor com teu espírito alegre e curioso, aberto ao novo e atento às injustiças. Ajudamos um ao outro a abandonar as atitudes patriarcais ou submissas, que nossa educação cristalizou em nosso modo de agir. Sabes tanto de mim quanto sei eu de ti. Nada nos sonegamos e soubemos compreender as mazelas de um e de outro, construindo para adiante, sempre, saídas melhores. Através de nossa convivência entendi a extensão do dano que a minha branquitude, ainda que a tenhas avaliado como inocente e alienada, trouxe ao mundo que compartilhamos. Temos algo maravilhoso, a meu ver, Maria. Insubstituível. Conseguimos construir do desequilíbrio a igualdade, da compreensão da diferença a nossa fortaleza. Subvertemos a fórceps o “desagrado” ou o racismo explícito de meus pais (“Estás namorando uma crioula?”, “Não sou racista, só não queria que te casasses com uma negra...”) dando-lhes dois afetuosos netos mestiços para amar desbragadamente. Suprimimos, passo a passo, a aura injustificada de poder que travestia nossa aliança de branco com preta, por que nunca algum de nós se sentiu maior ou menor do que o outro. Nunca uma relação de patrões e escravos, mesmo que metaforicamente. Bem sabemos o quanto isso, por vezes, foi doloroso. Brigamos por tanta coisa boba! Tantos atritos por uma frase impensada, uma expressão qualquer extraviada de seu sentido original, mas ainda uma chaga aberta, sem cicatriz. Os desgastes sérios que nós vivemos foram por atitudes machistas – talvez, de parte a parte –, porque as relações de poder se confundem, se refletem e interpenetram. Mas sempre, e isso é muito importante, nos vimos como seres humanos iguais. Ou, mais ainda: aprendi a reconhecer a tua superioridade intelectual e nunca tive vergonha disso. Ao contrário. Te vi crescer e te emancipar. Conquistar sucesso, fazer ecoar teu nome na literatura como voz potente da afirmação da negritude: a brilhante escritora Maria de Francisco Athanázio, de quem fui admirador de primeira hora e, depois, retaguarda fiel.

   Mas tive que sonegar coisas sobre mim, que só saberás agora. Precisei descumprir nosso pacto de honestidade, que garantiu uma coexistência harmônica e equilibrada entre nós, pois sei que desses fatos maiúsculos do passado não saberíamos nos distanciar e eles te causariam imenso desconforto. Como afetaram a mim. Mais do que no amor, é na confiança que se sustentam as relações duradouras, e eu sigo no firme propósito de ficar ao teu lado até que a “torta” me carregue para o além. Não abro mão disso. Sei que estou morrendo e preciso, egoisticamente, que confies em mim até o final.

   Por causa das descobertas que fiz, desisti – e ficaste tão braba comigo! –- de buscar minha ascendência portuguesa para pleitear uma cidadania europeia que nos abrisse portas. Fazia isso por nós, muito por ti e por nossos filhos, bem sabes. Esse nosso país andava tão confuso, as pessoas tão nojentas!

   Mas vou dividir contigo, com peso na alma, uma sucessão de fatos, todos eles bem documentados, que descobri àquela época sobre a genealogia de minha família desde que seu primeiro elo pôs os pés no Brasil. Meu mais antigo ancestral português, judeu sefardita fugido da Inquisição, pôs-se a caçar e escravizar indígenas por volta de 1600, nas bandeiras de Raposo Tavares. Outro ascendente familiar extraiu dos sertões 120 nativos para “uso” em suas fazendas de criação. O filho deste segundo, falecido em 1700, já escravizava também os pretos, e seguiu com a prática cruel de capturar indígenas. Sucessivas gerações de meus antepassados, a partir daí, usaram a mão-de-obra escrava de africanos para fazer fortuna em suas fazendas e cafezais no interior do Rio de Janeiro, até a data da Abolição. Um deles, visconde, chegou a escrever um manual de administração, como um grande gestor de RH da época, ensinando seus iguais a bem gerir as senzalas. O manto que até hoje meus familiares usam com orgulho nas cerimônias de batismo de seus filhos, uma espécie de selo afiançador de nossa nobre estirpe, passado de geração a geração – Bruno e Vanessa escaparam disso por não terem sido batizados –, tem como principal atributo, meu Deus, o ter sido bordado por escravos do tal visconde. O fato ainda mais triste é que nosso encontro a centenas de quilômetros de Petrópolis, nossa origem comum, aspecto que sempre exaltávamos como um sinal eloquente do destino, uma inequívoca coincidência abençoada pelos astros, revelou-se trágico e perverso, Maria.

   Teu nome completo, Maria de Francisco Athanázio, que tantas vezes foi objeto de piadas machistas de mau gosto (“O Francisco é o seu marido?”), revelou-se para mim uma ferida aberta.

   Meu trisavô cafeicultor, com fazendas nos arredores daquele município fluminense, quase duzentos anos atrás, se chamava Carlos Francisco Athanázio de Almeida Bulhões. No testamento desse sujeito, usado como prova de ascendência familiar no estudo genealógico que me caiu nas mãos, há uma lista com dezenas de escravos africanos, todos eles destituídos de seus nomes originais, como era o costume à época: a despersonalização. A cada nome que eu lia no documento, um novo calafrio, Maria. Parecia estar numa reunião familiar da tua trupe... Adão de Francisco Athanázio, Amália de Francisco Athanázio, Viridiana de Francisco Athanázio, Eudóxio de Francisco Athanázio, Amália, Serafim, e assim por diante... Havia ali uma lista enorme de homens e mulheres rebatizados e registrados como “de Francisco Athanázio”, nome pelo qual era mais conhecido o meu trisavô, pois assim lhes ficava publicamente exposta sua condição de propriedade. Todos devidamente avaliados em contos de réis, como o restante dos bens imóveis e utensílios, vacas de leite, muares, cavalos, porcos...

   De qual desses ramos seria a tua origem, Maria? Dos filhos do Eudóxio? Da Viridiana? Da Amália?

   Que desgraceira! Que dor eu senti!

   Não soube lidar com esses fatos odientos da minha origem, minha linda. Como falar dessas coisas contigo, cara a cara? De branco, nunca antes tão branco, para preta... Queria poder raspar a minha pele!

   Até os nomes de nossos filhos, tão sonoros, agora me soam impróprios: Bruno de Francisco Athanázio Bulhões, Vanessa de Francisco Athanázio Bulhões...  Sinto em minha alma – pois me vejo travestido em cada um deles – a dor de ser posse de outro. Por isso propus a alteração posterior dos nomes – lembra? –, cortando o “de Francisco Athanázio”, ou pelos menos o “de Francisco”, opções que a ti soaram absurdas e tanto te magoaram a ponto de me fazer desistir. Me atrapalhei, não pude explicar as razões reais da minha proposta, coisa que te caiu muito mal: foi, quem sabe, a única vez que duvidaste da minha honestidade. Pensavas que eu queria ocultar dos outros o teu ramo familiar, mas estavas enganada, como vês. Queria apagar, em verdade, o que o meu clã tinha feito ao teu. Mas eu não podia te contar. Nunca pude. Sentia que, trazendo desconforto ao uso do nome que agora tanto orgulho te traz, eu estaria promovendo uma renovada e igualmente arbitrária despersonalização. Minha branquitude culpada me freou. Tive medo. Fui fraco. Não quis colocar sobre a nossa mesa esse passado tão cruel. Preferi ficar calado. Talvez tenha agido como um cúmplice benevolente de meus ancestrais racistas e escravocratas, ao te perpetuar como “de alguém”. De uma hora para outra, me vi como parte do problema. Sobre isso ainda me pergunto e confesso que fico confuso. Culpa ou covardia? Cuidado amoroso contigo ou a continuada cumplicidade branca protetora da barbárie? Por uma razão ou outra, não tive coragem de confidenciar que portas um sobrenome torpe e fictício, e eu agora sinto asco de ostentar o meu. Já não és para mim a Maria de Francisco Athanázio. Já não quero ser Bulhões.

   Como reparar o que causamos aos teus, a ti e também aos nossos filhos, levando adiante por mais uma geração essa indignidade? Como disse antes, há coisas que não tem perdão. O que desejo com essa confissão arredia, mal posta, tardia e covarde, que talvez nem chegue ao teu conhecimento, é que ela possa salvar dessa marca sinistra os nossos netos, se um dia eles vierem. Ainda há tempo para isso.

 

   Com amor, L. A.          março de 2023 


- Miguel da Costa Franco - 

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