Jura da Bica, o Amolado, é descendente direto do velho Pasqualino,
desbravador do morro, graças a quem a favela pôde se estabelecer ali. Hábil negociador,
Pasqualino organizou o assentamento da comunidade na gleba empedrada e garantiu
para si a única área de sombra, bem pertinho da fonte que servia o malocal em
cima da pedreira. Assim, virou o Pasqualino da Bica, reservando também para
todos os seus filhos e netos o novo sobrenome adquirido após a fundação da vila.
Era boa-praça, todo mundo gostava dele. Sambista, beberrão, mulherengo, mas
respeitoso, tratava todo mundo com amizade e consideração. Sempre dava um jeito
de compartilhar a água com quem necessitasse, e tratava de racioná-la nos
períodos secos, com seu sistema de trancas, caixas e bifurcações, construído
aos poucos em regime de mutirão. Sem cobrar nada de ninguém. Quando muito, uns
beijos furtivos e uns “amassos” consentidos numa vizinha apetitosa. Daria um
excelente diretor do departamento de águas, se um dia resolvesse ser político.
Quando se foi o Pasqualino, assumiu o seu posto a Jurema, de quem
também todos gostavam, filha mais velha do terceiro ajuntamento do pai.
Desbocada e fuzarqueira, era um amor de pessoa. Para tudo se podia contar com
ela, desde uma xícara de açúcar ou um dedal de cachaça, até ajuda num parto
apressado, antes do transporte chegar. Jurema tinha herdado a simpatia do pai e
aprendido com Pasqualino todas as manhas da distribuição das águas. Conservou o
respeito de todos. Aceitava dengos e lembrancinhas – não os mesmos que o pai –,
mas nunca dinheiro. Ninguém se metia a galo com ela.
Jura, o filho caçula da Jurema, o último “diretor de águas”, não recebeu
a mesma consideração que os seus parentes. Caráter é coisa que não vem de
berço, é preciso modelar e, de vez em quando, retocar. Jurema era meio frouxa
nesta parte. Criou o guri Jurandir cheio dos “pode ser”, nem indo, nem vindo.
Jura da Bica começou pelas beiradas a cobrar pelo serviço de
repartição das águas, alegando a necessidade da dedicação exclusiva. Casmurro e
prepotente, duro com os queixosos e também ríspido com os espertinhos – sempre
de nariz torcido e ar de constipação das brabas –, ganhou logo o apelido de
Amolado. Mas se achava. Via no apelido um reconhecimento de sua dedicação aos
outros em prejuízo da própria paz de espírito, sempre a matar no peito as tantas
incomodações que uma tarefa daquelas costumava acarretar. Pretendia-se sério e
justo, na visão de que seriedade e justiça andariam sempre lado a lado como
bois de canga, e pensava ser o certo receber uns trocadinhos para resolver
pendengas e fazer cumprir os acordos firmados. Quanto mais levava de gorjeta,
mais séria e justa considerava sua decisão.
Ao contrário do que apregoava o Jura da Bica, Pasqualino e Jurema
sabiam que a justiça não era cega coisa nenhuma, mas sim tinha um olho vesgo e
o outro cambaio. Nas desavenças grossas, era preciso ponderar, torcer a
espinha, dar ouvidos ao rengo e ao direito, ao gordo e ao esfarrapado, a Deus e
a Satanás, para de fato ser justo e garantir o convívio. Regra certa era só a
felicidade geral. Mantinham a paz hídrica na favela com muito tino e sabedoria,
evitando os problemas e os trompaços, aceitando pedidos especiais e aplacando
com pequenos mimos os ânimos mais exaltados. Sem nunca, nunquinha, meter grana
no meio. Com que moeda esotérica se pode avaliar a grandeza da necessidade de
cada um? Isto dizia o Pasqualino. O que faziam era para o bem da comunidade,
nos tempos que “o bem” ainda era antônimo de safadeza.
Já o Amolado queria decidir tudo na marra, em ponta de faca, como
um todo-poderoso. Chamou logo a atenção do seu Olavo, o camisa-preta do
mercadinho, que era assim, assim, com o açougueiro Juliano, cabo eleitoral do deputado
Lasquinha. Acenaram para ele com um cargo no Departamento de Águas, se
concorresse à vereança e roubasse a votação do Antenor Portela, o exagerado da
serralheria.
Jura da Bica se intitulava progressista. Justificou a cota extra do
líquido precioso para o mercadinho do Olavo – parte do acerto político – como fruto
da geração de empregos no bairro, ainda que o único empregado do comerciante
fosse o seu próprio genro.
Aquilo por si já não caiu muito bem na Vila Pedregal. A água era
pouca e ninguém era bobo. O mercadinho reunia um bando de cachaceiros, seu Olavo
sacaneava com anotações extras nas cadernetas do pendura e passou a revender a cota
extra em vasilhames de mineral, a preços de refrigerante. Há quem diga que o
Jura também ganhava uma beira das vendas, mas isso pode ser lero-lero.
Iniciado o vale-tudo da campanha, o Antenor Portela – podre de
dissimulado –despejou bicho morto e muita limalha enferrujada nas canalizações da
bica. Garantiu uma cor de cobre persistente na água do Amolado e algumas caganeiras
generalizadas. Depois, acenou com caixa d’água no topo e encanamentos de cima a
baixo no morro da pedreira. Fez disto a sua maior promessa.
O Jura da Bica, tentando reviver o avô Pasqualino, organizou um
mutirão forçado – o espírito comunitário andava meio morno – para limpar as
caixas e os canais. Passou a tratar a água da vertente com uma mistura de autoria
própria, de soda e clorofina, ingredientes que o genro do seu Olavo levou morro
acima num carrinho de mão para ostentar a tomada de providências. O Amolado era
“o bom gestor” e “o diretor de águas”, como dizia no seu panfleto eleitoral.
Dia após dia, aquela química espalhou azia e queimaduras e estragou
o feijão de todo o mundo. Só fez aumentar a desconfiança e a brigalhada, pois o
Amolado não era bom de dar trato às ponderações dos outros.
Num dia de calda esbranquiçada e ruim, auge do merdoléu, uns
sabichões chamaram o Meio Ambiente, a Polícia, a Saúde, o Departamento de Águas
e o escambau. Os homens acabaram interditando a bica e cercando a vertente.
O povo enraivecido tacou fogo no chalezinho do Amolado, uma
ampliação disforme do simpático barraco do Pasqualino. Ele teve de sair de
fininho, levando só a geladeira e um sofá de napa amarela que conseguiu salvar
do incêndio.
No quinze de novembro, a vila toda votou no serralheiro.
Passado um tempo, a coisa agora anda bem feia lá no Pedregal: o vereador
eleito Antenor Portela diz ter providenciado os canos, mas alega que eles já não
cabiam no orçamento aprovado no ano anterior. Que ele é da oposição e desafeto
do prefeito. Que ainda falta a desapropriação e a licença ambiental, o terreno
é frouxo para aguentar a caixa d’água e a bitola pretendida contraria o
regulamento da Companhia. Enfim, deu engronha no projeto. Prometeram instalar a
bosta para depois do ano que vem, se tiver verba e não chover demais. Por
enquanto, o abastecimento vai ser só de carro-pipa.
Todo mundo diz que os engenheiros da prefeitura, vistoriando o
morro, gostaram muito do sistema do velho Pasqualino. Que pretendem aproveitar
tudo o que encontraram.
Deus o tenha! Aquele homem era um santo!
Boa parte disto quem espalha é o Amolado, querendo puxar a brasa
para o seu assado. Está morando mal e anda dormindo encolhido no sofazinho
amarelo. Agora vive só de bicos, não da bica. Já não leva bexiga de ninguém. Deseja,
naturalmente, retomar a “diretoria de águas”: ele é ainda o Jura da Bica, filho
de Jurema, neto do Pasqualino.
Mas a direção natural das águas teima em ser sempre ladeira abaixo.
O nome de família, roubado da vertente, virou letra desbotada num
cartazete de campanha, preso de ponta-cabeça na boca da escadaria: injustiça
braba com a memória do mestre Pasqualino.
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Miguel da Costa Franco -
Muito bom!
ResponderExcluirValeu, Sérgio.
ExcluirBeleza, Miguel.
ResponderExcluirQualquer semelhança...
Abs.
Obrigado.
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