sábado, 15 de setembro de 2018

A direção das águas


   Pasqualino foi o desbravador do morro, graças a quem a favela pôde se estabelecer ali. Organizou o assentamento na gleba empedrada e garantiu para si a única área de sombra, bem pertinho da fonte que servia o malocal em cima da pedreira. Assim, virou o Pasqualino da Bica, reservando também para todos os seus filhos e netos o novo sobrenome adquirido após a fundação da vila.

   Era boa praça, todo mundo gostava dele. Sambista, beberrão, mulherengo, mas respeitoso, tratava todo mundo com amizade e consideração. Sempre dava um jeito de compartilhar a água com quem necessitasse, e tratava de racioná-la nos períodos secos, com seu sistema de trancas, caixas e bifurcações, construído aos poucos em regime de mutirão. Sem cobrar nada de ninguém. Quando muito, uns beijos furtivos e uns amassos consentidos numa vizinha apetitosa. Daria um excelente diretor do departamento de águas, se um dia resolvesse ser político.

   Quando se foi o Pasqualino, assumiu o seu posto a Jurema, de quem também todos gostavam, filha mais velha do terceiro ajuntamento do pai. Desbocada e fuzarqueira, era um anjo de pessoa. Para tudo se podia contar com ela, desde uma xícara de açúcar ou um dedal de cachaça, até ajuda num parto apressado, antes do transporte chegar. Jurema tinha herdado a simpatia do pai e aprendido com Pasqualino todas as manhas da distribuição das águas. Conservou o respeito de todos. Aceitava dengos e lembrancinhas - não os mesmos que o pai -, mas nunca dinheiro. Ninguém se metia a galo com ela.

   Jurandir, ou Jura como era conhecido, era o filho caçula da Jurema e foi o último “diretor de águas”. Não recebeu a mesma consideração que os seus parentes. Caráter é coisa que não vem de berço, é preciso modelar e, de vez em quando, retocar. Jurema era meio frouxa nesta parte. Criou o guri cheio dos “pode ser”, nem indo, nem vindo.

   Jura da Bica começou pelas beiradas a cobrar pelo serviço, alegando a necessidade da dedicação exclusiva, ainda que o sistema do Pasqualino fosse uma obra coletiva. Casmurro e prepotente, duro com os queixosos e também ríspido com os espertinhos - sempre de nariz torcido e ar de constipação das brabas -, ganhou logo o apelido de Amolado. Mas se achava. Via no apelido um reconhecimento de sua dedicação aos outros em prejuízo da própria paz de espírito, sempre a matar no peito as tantas incomodações que uma tarefa daquelas costumava acarretar. Pretendia-se sério e justo, na visão de que seriedade e justiça andariam sempre lado a lado como bois de canga. Pensava ser o certo receber uns trocadinhos para resolver pendengas e fazer cumprir os acordos firmados.

   Ao contrário do que apregoava o Jura da Bica, Pasqualino e Jurema sabiam que a justiça não era cega coisa nenhuma, mas sim tinha um olho vesgo e o outro cambaio. Nas desavenças grossas, era preciso ponderar, torcer a espinha, dar ouvidos ao rengo e ao direito, ao gordo e ao esfarrapado, a Deus e a Satanás, para de fato ser justo e garantir o convívio. Regra certa era só a felicidade geral. Mantinham a paz hídrica na favela com muito tino e sabedoria, evitando os problemas e os trompaços, aceitando pedidos especiais e aplacando com pequenos mimos os ânimos mais exaltados. Sem nunca, nunquinha, meter grana no meio.

   Com que moeda esotérica se pode avaliar a grandeza da necessidade de cada um? Isto dizia o Pasqualino. O que faziam era para o bem da comunidade, nos tempos que “o bem” ainda era antônimo de safadeza.

   Já o Amolado, quanto mais levava de gorjeta, mais séria e justa considerava sua decisão. Além disso, queria decidir tudo na marra, em ponta de faca, como um todo-poderoso. Chamou logo a atenção do seu Olavo, o camisa-preta do mercadinho, que era assim, assim, com o açougueiro Juliano, cabo eleitoral do Lasquinha. Acenaram para ele com um cargo no Departamento de Águas, se concorresse à vereança e roubasse a votação do Antenor Portela, o exagerado da serralheria.

   Jura da Bica se intitulava progressista. Justificou a cota extra do líquido precioso para o mercadinho do Olavo – parte do acerto político – como fruto da geração de empregos no bairro, ainda que o único empregado do comerciante fosse o seu próprio genro.

   Aquilo por si já não caiu muito bem na Vila Pedregal. A água era pouca e ninguém era bobo. O mercadinho reunia um bando de cachaceiros, seu Olavo sacaneava com anotações extras nas cadernetas do pendura e passou a revender a cota extra em vasilhames de mineral, a preços de refrigerante. Há quem diga que o Jura também ganhava uma beira das vendas, mas isso pode ser lero-lero.

   Iniciado o vale-tudo da campanha, o Antenor Portela – podre de dissimulado - despejou bicho morto e muita limalha enferrujada nas canalizações da bica. Garantiu uma cor de cobre persistente na água do Amolado e algumas caganeiras generalizadas. Depois, acenou com caixa d’água no topo e encanamentos de cima a baixo no morro da pedreira. Fez disto a sua maior promessa.

   O Jura da Bica, tentando reviver o avô Pasqualino, organizou um mutirão forçado – o espírito comunitário andava meio morno - para limpar as caixas e os canais. Passou a tratar a água da vertente com uma mistura de autoria própria, de soda e clorofina, ingredientes que o genro do seu Olavo levou morro acima num carrinho de mão para ostentar a tomada de providências. O Amolado era “o bom gestor” e “o diretor de águas”, como dizia no seu panfleto eleitoral.

   Aquela química inventada espalhou azia e queimaduras e estragou o feijão de todo o mundo. Só fez aumentar a desconfiança e a brigalhada, pois o Amolado não era bom de dar trato às ponderações dos outros.

   Num dia de calda esbranquiçada e ruim, auge do merdoléu, uns sabichões chamaram o Meio Ambiente, a Polícia, a Saúde, o Departamento de Águas e o escambau. Os homens acabaram interditando a bica e cercando a vertente.

   O povo enraivecido tacou fogo no chalezinho do Amolado, uma ampliação disforme do simpático barraco do Pasqualino. Ele teve de sair de fininho, levando só a geladeira e um sofá de napa amarela que conseguiu salvar do incêndio.

   No quinze de novembro, a vila toda votou no serralheiro.

   Passado um tempo, a coisa agora anda bem feia lá no Pedregal: o vereador eleito Antenor Portela diz ter providenciado os canos, mas alega que eles já não cabiam no orçamento aprovado no ano anterior. Que ele é da oposição e desafeto do prefeito. Que ainda falta a desapropriação e a licença ambiental, o terreno é frouxo para aguentar a caixa d’água e a bitola pretendida contraria o regulamento da Companhia. Enfim, deu engronha no projeto. Prometeram instalar a bosta para depois do ano que vem, se tiver verba e não chover demais. Por enquanto, o abastecimento vai ser só de carro-pipa.

   Todo mundo diz que os engenheiros da prefeitura, vistoriando o morro, gostaram muito do sistema do velho Pasqualino. Que pretendem aproveitar tudo o que encontraram.

   Deus o tenha! Aquele homem era um santo!

   Boa parte disto quem espalha é o Amolado, querendo puxar a brasa para o seu assado. Está morando mal e anda dormindo encolhido no sofazinho amarelo. Agora vive só de bicos, não da bica. Já não leva bexiga de ninguém. Deseja, naturalmente, retomar a “diretoria de águas”: ele é ainda o Jura da Bica, filho de Jurema, neto do Pasqualino.

   Mas a direção natural das águas teima em ser sempre ladeira abaixo.

   O nome de família, roubado da vertente, virou letra desbotada num cartazete de campanha, preso de ponta-cabeça na boca da escadaria: injustiça braba com a memória do mestre Pasqualino.

   E o povo que se vire!



- Miguel da Costa Franco -

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