domingo, 11 de junho de 2023

Estreitando os laços


   Nosso apartamento era um ovo. Quarto razoável, banheiro minúsculo, sala meia-boca e cozinha que parecia mais um estreito corredor.

   Éramos recém-casados beirando os 40 anos, Luara um pouco pra menos, eu um tanto para mais, ambos já com bons anos de estrada, e o que nos importava era uma cama larga e firme que suportasse bem o nosso ardor incomum. Não é que não trepássemos também nas outras peças. No banho compartilhado, que já virara rotina, ouvíamos as tossidas exageradas da vizinha do apartamento 304, assinalando sua presença incomodada do outro lado do poço de ventilação. Por causa de nossas urgências, cansávamos de queimar o assado abandonado no forno ou deixar a água da torneira correndo perigosamente sobre a louça suja. Mas essas investidas, ora de um ora de outro, eram apenas breves ensaios do que sucederia depois no nosso camão, como o chamávamos. Lá era o nosso território.

   Nos amávamos, gostávamos de sexo, tínhamos despojamento, experiência e bom humor. Nada era proibido ou pecaminoso. Era a glória. Mal entrávamos em casa e nos púnhamos nus. Às vezes, aproveitávamos o intervalo do almoço para um agarra-agarra rápido e intenso, que nos devolvia ao trabalho alegres e colaborativos. Não minto se disser que no mínimo duas ou três vezes por dia nos atracávamos em saudáveis embates, cheios de amor e tesão.

   Então Luara recebeu a mensagem da Jandira: “Chegamos no sábado”. Só isso. “Chegamos no sábado”.

   Luara mal sabia quem era Jandira. A mãe de Luara informou a ela que talvez fosse uma prima cinquentona, filha de um de seus treze irmãos que nunca saíra de Mossoró. Casada com um taxista.

   Chegaram de manhãzinha, após dois longos dias de viagem de ônibus, interrompendo a nossa trepadinha matinal. Luara cobriu-se com um vestido longo para abrir a porta, os bicos dos seios ainda eriçados quase rasgando o tecido fino, e eu me meti no chuveiro para aplacar com água fria as verticalidades.

   Jandira trazia um faqueiro de cinquenta e duas peças de presente. “Tramontina, coisa boa”, disse, dirigindo-se a Luara. “Meu sonho era conhecer Brasília. Quando soube que você morava aqui, pensei: tá aí a minha chance. Tá tão caro tirar férias! Família é família, não é?”

   “Cê é filha de quem, mesmo?”, quis saber Luara.

   “De Lia e de Valdir, irmão mais velho de sua mãe. Você foi dama de honra no nosso casamento. Lembra”?

   Mas Luara deu um sorrisinho dúbio. Não lembrava.

   “Tava mais do que na hora da gente estreitar os laços. Como anda tia Valdete?”

   “Vai indo”.

   “A gente não tem muito espaço, desculpe”, eu arrisquei dizer, tentando fazer uma pré-reserva do nosso ringue particular. Tinha avaliado, num rápido cálculo mental, que aquele faqueiro poderia pagar várias diárias em algum hotelzinho simples da Asa Norte.

   “Que é isso, primo?”, disse Jandira. “Não seja modesto. Vocês têm aqui um rico apartamentinho”. E já foi entrando para conhecer o resto.

   Luara entendeu por outro ângulo o meu rasgo de sinceridade e tomou a dianteira da situação, pois era gente de sua família. “Leva as malas para o quarto, Riograndino. As visitas tem a preferência. Nós nos ajeitamos no sofá-cama da sala”.

   Os primos estavam exaustos. Mal tomaram banho e se meteram no nosso camão para dormir até a metade da tarde. À noite, começaram a conhecer Brasília por uma pizzaria da nossa superquadra, mas logo se viu que não tinham dinheiro para tanta extravagância. Passamos a compartilhar no nosso apartamento os jantares, coisa que cabia a mim providenciar, pois Luara não cozinhava quase nada e os primos voltavam mortos de traçar a pé as longas distâncias da cidade.

   Riograndino mostrou-se um tipo caladão e avaliador. Jandira, uma dessas mulheres esfuziantes que se imagina muito adorável e simpática.

   Assim, tive notícias mais de perto da família de Luara: do tio que ganhara uma fortuna na loteria esportiva e gastara tudo em imóveis numa cidadezinha decadente do sertão; da tia que virara freira e depois abandonara o convento para casar; do primo perdido que se tornara morador de rua em Recife; da prima bem aprumada que não escondia ser a amante de um desembargador; do garoto que jogava nos aspirantes do Tottenhan. Noite após noite, repassamos o imenso catálogo dos familiares dos treze irmãos de Dona Valdete, minha sogra. Riograndino preferia conversar sobre futebol, mostrando saber mais dos clubes de Rio e São Paulo – dizia-se flamenguista – do que do campeonato potiguar.

   Foram dez longos dias de permanência no nosso apartamento-ovo.

   Enquanto estreitávamos os laços familiares, íamos acumulando desejos recolhidos, Luara e eu. O sofá-cama rangia demais e espantava a guinchos metálicos as iniciativas mais entusiasmadas. Jandira cruzava a sala sem pudores no meio da noite para beber água na cozinha. “Essa cidade me dá uma sede louca!” Por que não levava água para o quarto? Riograndino acordava cedo e se punha a fumar na janela, empestando o apartamento inteiro com o cheiro de fumaça e das bitucas neuroticamente esmagadas no cinzeiro. O quarto de banho andava disputadíssimo, a cozinha sempre atravancada de louça por lavar, e o corredor era apenas um corredor.

    “Família é família, não é?”, justificava a Luara. Não se podia cogitar romper os laços, bater-lhes a porta na cara, nem mandar passear em outra freguesia.

   No entardecer em que marcamos encontro num motel para aplacar a nossa abstinência sexual, decidimos nos mudar para um apartamento maior, com pelo menos dois quartos. Nos amávamos, não queríamos perder o que tínhamos conquistado. Precisávamos tomar alguma providência. Com treze tios e perto de cinquenta primos, todos criados na mesma forma e muitos deles também ansiosos por conhecer a capital, a família de Luara prometia fazer naufragar rapidinho um casamento tão promissor. 


- Miguel da Costa Franco


Texto publicado originalmente na Revista Veias Abertas nº 1 (jun/23), produzida pela Gog Ideias

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