Li o demolidor artigo “A COVID está sob o controle de Bolsonaro”, de Eliane Brum, no El País de 03.03.2021, e seu conteúdo ficou martelando na minha cabeça. Sem dúvida, há um projeto eugenista em curso. Ao deixar livre o caminho para o vírus e suas sequelas, nosso presidente advoga que sobrevivam apenas os mais fortes. Eliane cita a pesquisa da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo e da Conectas Direitos Humanos, que "(...) provou que o governo federal executou um plano de disseminação do vírus. A análise de 3.049 normas federais mostrou que Bolsonaro e seus ministros tinham - e ainda têm - o objetivo de infectar o maior número de pessoas, o mais rapidamente possível, para a retomada total das atividades econômicas (...)".
Idosos,
desvalidos, portadores de comorbidades comprometedoras, sem-teto, indígenas,
quilombolas, desempregados, drogadictos e outras comunidades à margem, todos
nós (sou um sexagenário aposentado) somos uma parcela tida como improdutiva e descartável
da amada pátria dos sonhos do bolsonarismo – como já assim foram vistos grupamentos
semelhantes na Alemanha de Hitler. Oneramos o Sistema Único de Saúde e a
Previdência, demandamos gastos crescentes do orçamento público com segurança,
moradia, água e saneamento, energia, transporte e educação. Ocupamos como
trambolhos inúteis áreas de interesse da construção civil, da indústria, da
mineração e do agronegócio. E a economia, com níveis altíssimos de desemprego,
já não necessita de nós para nada.
Este
raciocínio eugenista frente à pandemia cavou um fosso entre “eles” e “nós”. Se
antes o individualismo, a misoginia, o antipetismo, o racismo e a homofobia –
todos reunidos sob a capa de um intraduzível e abrangente “anticomunismo”, que
incluiria até Bill Gates e George Soros – já eram motivo suficiente para
truncar o diálogo entre os opostos, a inação do governo diante da maior crise
sanitária mundial elevou o afastamento a níveis inimagináveis.
Verdade?
Nem tanto. A questão importante que Eliane Brum coloca para nós todos é o
quanto de "eles" há em "nós". Como já o fez Hannah Arendt,
em tempos passados.
Depois de
ler seu artigo, dormi e acordei pensando nisso: o quanto de "eles" há
em "nós".
Ficar quarentenado
em casa – e já estou nisso há quase 13 meses – é atitude que atende a uma
necessidade do coletivo, sem dúvida. Todos os epidemiologistas e sanitaristas o
recomendam. Tenho no meu círculo de relações uma maioria significativa de pessoas
preocupadas com o bem comum que têm adotado atitude semelhante. Mas também me
dá um desconforto saber que muita gente boa, por não poder fazer o mesmo, vai
se contaminar pelo coronavírus, sofrer em hospitais e postos de saúde mal
equipados, talvez morrer. De certa forma, minha situação “confortável”, por si,
acaba me tornando, a contragosto e sem culpa, um “deles”. Por questão de
extrato social, apesar de vítima, sou também um beneficiário indireto deste
processo eugenista dantesco. Tenho mais chances de sobreviver.
A estas
alturas, estamos em 265.500 vidas perdidas e os números só crescem. Foram, em
média, mais de 4 boeings lotados caindo a cada dia durante todo o período de um
ano. Neste ritmo, poderemos atingir um milhão de vítimas até o final de 2021. Serão
quatro atentados equivalentes em vítimas, cada um deles, à destruição de Hiroshima
e Nagasaki pelas bombas atômicas na Segunda Guerra.
E nada
parece comover nossos dirigentes. Nossas Instituições se mostram frágeis e desinteressadas
em enfrentar o problema, ainda que os dados científicos sejam assustadores e
inquestionáveis, e as tais pedaladas fiscais que derrubaram Dilma Roussef sejam
absolutamente pó se comparadas aos atos do governo bolsonarista, em prol da
abertura de caminhos para a contaminação pelo vírus. O presidente comete crimes
de responsabilidade diários. Em geral, mais de um por dia. Ainda assim, nada
sucede. Estamos desprotegidos e soltos ao deus dará. O que mais se ouve por
aqui é o grito aflito e estridente das ambulâncias.
Nós, como
sociedade civil, precisamos fazer alguma coisa antes de perdermos mais pessoas.
Mas temos, antes de tudo, de vencer o negacionismo e o exército de robôs
humanos e inumanos que cotidianamente defendem o oposto com ardor inimaginável.
Andei
pensando com os meus botões...
O que mais
e mais nos unirá – falo dos humanos – de agora em diante nesta sociedade
destruída será a dor das perdas. Em breve, todos nós teremos um amigo, um
parente, um colega de trabalho, ou vários por quem chorar. De minha parte, já
os tenho. Salve, Luiz Inácio, meu primo. Salve Pinheirão, meu professor. Viva
Aldir Blanc, artista-maior, que inundou minha juventude com seu talento. E
tantos outros que já perdi.
Quando chegarmos a um milhão de vítimas, cada pequena célula familiar com duas dezenas de pessoas terá tido contato direto com a doença e o medo, e talvez contabilize alguma perda ou sequela. Mas sequer o luto pode ser administrado como se deveria. Sequer as devidas homenagens a quem parte são possíveis neste momento. Como lembrou Mário Corso, em “Empatia pela morte” que li no Facebook, “(...) antropólogos e arqueólogos convergem que os primeiros monumentos foram os fúnebres. E o que primeiro nos tornou humanos foi a constatação da finitude e expressar a dor por quem parte com uma homenagem pública (...)”. Não poder nos despedir nos desumaniza.
Lá fora,
as animosidades só crescem. A esquerda está paralisada. Seu discurso em defesa
da coletividade bate em ouvidos moucos. Ou poluídos por um “anticomunismo”
genérico e generalizante. A direita, preocupada apenas com a economia e com o
patrimônio, segue fazendo carreatas e manifestações contra medidas restritivas,
pela abertura de tudo, e venceu as últimas eleições com este discurso. Há um
exército de aturdidos, perplexos, ingênuos e arrependidos, entre um campo e outro,
sem saber a quem aderir.
Acho que
nesta hora dramática a luta política passa a ser a luta pela vida. Temos que abandonar
o racionalismo das ideias - que bate à porta de cérebros amortecidos e não consegue
entrar - e apelar para a emoção.
Alguns
dirão, cheios de razão, como Mário Corso em “Empatia pela morte”, que “(...) psicopatas
não se comovem e nem choram a morte alheia. Esse software básico de humanidade
inexiste neles. Por isso nem nos entendem. Estão no raso da vida não
transcendente, do homem mercadoria ou consumidor. Não compreendem o dom da vida
como um presente único, de uma trajetória singular e irrepetível.”
Outros
dirão que estamos sendo radicais. A estes, respondo: radical é a desumanidade
em Bolsonaro.
Precisamos
fazer alguma coisa contra este morticínio programado. Estamos banalizando a
morte e o mal, mais uma vez. Quero crer que poucos de nós sejam psicopatas. Estamos
diante do desafio de mobilizar a sociedade civil para se defender do desespero,
da desesperança, do fim doloroso e do caos, num tempo em que as aglomerações
são inoportunas e mortais. Talvez devêssemos, também, partir para carreatas,
que garantem alguma proteção contra os contágios. Mas carreatas diferentes, não
de confronto, mas de cooptação. Carreatas de luto. Com bandeiras pretas.
Absolutamente silenciosas. Com o nome das pessoas queridas que já se foram
estampadas nos para-brisas. No dizer de Mário Corso, “(...) quando se chora por
um que se foi, se chora por todos que se foram, e por nossa partida um dia.
Retiramos a morte da banalidade.(...)
Nas
circunstâncias atuais, só a dor e luto podem unir aqueles de nós – de esquerda,
centro ou direita – que mantêm traços de humanidade. Juntemo-nos pela emoção,
já que a razão só nos afasta. Se o que temos são tristezas, nossas lágrimas
sinceras hão de ser revolucionárias. Que cada nova perda receba de nós,
sobreviventes, a gentileza de um digno cortejo fúnebre de despedida, que seja
também um ato político, para que nossa dor seja ouvida, vista, sentida,
acompanhada pela sociedade. Vistamo-nos de preto, todos os dias ou sempre que
possível. Estampemos panos pretos nas janelas e nos carros, em outdoors e
faixas. Inundemos as ruas de preto. O Brasil está de luto. Estamos todos de
luto. Façamos deste luto, coletivamente, uma luta.
Miguel, uma dor que não acaba. Estamos paralisados. Também me penso entre "eles", incapaz de qualquer movimento que faça diferença para proteger àqueles que estão jogados à morte.
ResponderExcluirPreto, neles, Avelina.
ExcluirA banalização da morte está fazendo a humanidade cada vez mais desumana. Luto! 😥
ResponderExcluirVerdade, Nara. Precisamos resistir antes que seja tarde.
ExcluirImpactante e verdadeiro teu texto, Miguel. Estamos, sim, todos de luto diante de tanta tristeza e insanidade.
ResponderExcluirGracias, Ana.
ExcluirTua reflexão me tocou. É preciso sarar a chaga e estancar a praga. Grata, Miguel.
ResponderExcluirSei que o preto pra ti será muito desafiador, mas precisamos fazer alguma coisa.
ExcluirA única solução é a mobilização social. De pleno acordo, Miguel.
ResponderExcluirÉ isso. Abraço.
ExcluirÓtima reflexão e ótimo texto, Miguel. Aceitei a proposta e preto em tudo a partir de hoje.
ResponderExcluirPreto neles.
ExcluirMuito difícil conviver com toda esse desgraça e ainda mais esse sentimento de impotência Absoluta. Nos expressar é preciso. Obrigada pelo texto.
ResponderExcluirObrigado pelo feedback.
ExcluirO que me assusta nessa banalização da morte é seguirmos com os embates políticos radicais e cairmos numa guerra civil, onde as vidasceifadas já não causam mais comoção.
ResponderExcluirRadical é a necropolítica do Bolsonaro. A guerra já tá rolando e chegando mais perto a cada dia.
ExcluirMiguel, muito boa e dolorosa a tua reflexåo. A morte está banalizada, não por acaso, é um projeto de poder. Se ainda restar em nós um tanto de indignação e humanidade devemos resistir e combater até o fim.
ResponderExcluirNão podemos nos deixar vencer pela apatia.
ExcluirMas como, se estamos paralizados pelo medo?
ResponderExcluirDei algumas sugestões ao final do meu texto. O fato é que precisamos ser criativos.
ExcluirMiguel
ExcluirBolsonaro superou
Hitler quer novo holocausto
Luto na alma. Pelas perdas, pela falta de ação efetiva de quem deveria, por dever constitucional, nos defender. Incompreensão, revolta contra esta apatia - que nos levou a este cenário atual - que está definindo tudo e todos. Grande texto, Miguel.
ResponderExcluirTexto profundo que traduz nossa impotência diante de tudo isso, tantas perdas. Estamos sendo mortos por uma doença para a qual já existe vacina. É preciso continuar na luta. Obrigada pelo texto.
ResponderExcluirTexto profundo e que traduz nossa imponência diante de tantas perdas evitáveis. Temos que lutar, sempre, se não de outra forma, com nosso luto.
ResponderExcluir