segunda-feira, 29 de março de 2010

Às voltas com a bailarina loira


Texto publicado no Pasquim Sul, em 30.07.87


Quando olhava Rosicler ali, ao pé da escada de cordas, seu manto escarlate a envolver-lhe as sapatilhas, a mão estendida para o céu de lona como um estandarte de seu corpo esguio, pensei comigo: Jesus, tomara que não caia!
Eu a vi erguer-se até a plataforma dos trapézios, subindo o cordame do mastro como quem desliza pela passarela, sorrir para nós e para seu companheiro de aventuras, e alçar-se ao vazio como libélula rosada, graciosa mariposa a rondar os holofotes do circo, a vida por milímetros.
E a vi, de um mastro a outro, músculos tesos e gestos leves, a imitar a harmoniosa precisão dos astros, o tempo dos meus olhos a cutucar-me o cérebro a cada segundo que passava. Enfeitiçava-me o nhéc ritmado do trapézio, o sorriso altivo e meigo, o beijo lançado delicadamente ao chão.
Depois, qual estrela cadente, despencou-se da abóbada colorida do Grán Circus Capitán Robatini e desceu em câmera ultra-rápida, assumindo cor e forma outra vez apenas quando a rede estendida para acolhê-la a devolveu ao ar e a recebeu de novo em plumas.
Rosicler era loira e a banda, não sei se apenas imagino, tocava Villa-lobos.
Isso foi no primeiro dia. Nos outros sete, em sonhos, a aparava.
Quando mais tarde - o circo já havia partido - eu pensava em Rosicler, sempre olhava para o alto a procurar seu brilho de lantejoulas, seu loiro cabelo esvoaçante. Que não me interrompessem! Que não me chamassem! Rosicler era, sobretudo, um sonho bom e eu tinha vontade de seguir dormindo para seguir sonhando e sonhando. Guardei-a comigo num canto ensolarado da memória. Eu mesmo a batizei quando pensei tê-la visto num daqueles filmecos medievais. (Seu nome aparecia escrito na tela como Rose Claire, mas o príncipe a chamava - e eu o ouvia bem - de Rosicler, com acento no er).
Procurei-a, então, por mais de vinte anos e talvez a persiga ainda quando às vezes alguma coisa dela me faz falta. Procurei-a sorrateiro entre as mulheres que tive, desejei enxergá-la entre as que a vida afastou-me de ter e, por certo, vislumbrei seus traços naquelas que desejei. Demorei a perceber como mola de impulso em muito do que fiz o desejo de encontrá-la. Fui, então, mais uma vez, buscar no compartimento em que guardo minhas lembranças algum cheiro dela. Encontrei apenas um simples esboço de sua imagem, do colorido de seus mantos, um suspeitar de suas habilidades. Percebi, assim, que havia queimado os dias à cata de Rosicler, tendo como pista apenas esse molde obscuro, essa caricatura torta: uma bailarina loira, trapezista nas horas vagas, estrela rubra que não erra nunca.
Quando sinto hoje que a quero morta, percebo claramente a absoluta afinidade entre amor e ódio. Quando a vejo esvoaçar, mariposa escarlate, deixo as arquibancadas do circo. Trato-a com a mesma rudeza que dirigiria a quem, outrora, me acordasse em meio ao sonho bom. Quero que se foda a bailarina loira! Para alcançá-la, exigi de mim o máximo. Sabia que só assim teria chances de chamar sua atenção entre uma multidão perdida de rostos e nomes diversos. Só assim poderia aproximar-me de seu mundo milimetricamente belo e preciso. É um fardo pesado demais para carregar e renuncio às glórias do encontro final.
O meu filme termina antes do The End. O príncipe contenta-se com o que tem e desiste da perseguição. A bailarina, atônita, quase corre atrás dele mas percebe que está imobilizada pelo seu papel: a bailarina, ela mesma, não iria. Para não desmentir-se, que seria também morrer. O príncipe sorri, como se houvesse entendido o que se passara pela cabeça dela. Vira- se e acena. Estrada afora, sai a cantar:
- Sólo quiero caminar... como camina el rio hacia la mar...

                                                                             - Miguel da Costa Franco -

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