Argumento do filme de curta metragem dirigido por Fabiano de Souza, produzido pela Casa de Cinema de Porto Alegre em 2002
Pela
manhã, ao abrir as janelas de par em par, o doutor Genarinho não encontrou apenas
a alegria do arvoredo em dia de sol, mas um novo ânimo, quase desconhecido
desde a morte da companheira. Entendeu pela aragem boa que soprava da Redenção
que aquele seria um dia capital em sua vida.
Confrontou-se
com o espelho que adornava a parte fronteira do roupeiro, o mesmo móvel belo e robusto
que havia comprado para o enxoval do casamento, tantos invernos atrás, e
achou-se bem para os seus setenta anos. O corpo ainda rijo – umas pelancas lá e
cá, é certo – mas, no todo, bem conservado. Firmou os bíceps, encolheu a
barriguinha discreta, mas presente, treinou suas caras de Bogart de um lado e
de outro, e resolveu vestir suas melhores roupas. Abriu o armário, que ainda
preservava a organização determinada pela falecida: as camisetas brancas de
física, sempre indispensáveis, bem a sua frente, na prateleira do meio; as
cuecas e carpins dispostos mais embaixo nos gavetões; os sapatos alinhados ao
rés do chão; mais em cima, os pulôveres. Na porta do espelho, os ternos
pendurados, todos escuros como convinha a um homem de bem; as camisas, brancas,
é claro, para facilitar as combinações; o sobretudo de tweed, que comprara na antiga
Wolens; e algumas calças avulsas, para os dias de futebol, para as andanças no
parque, para os dias de descompromisso.
Escolheu o
melhor terno, marinho riscadinho de giz, estendendo-o sobre a cama. Vestiu uma
das tantas camisas alinhadas no roupeiro, curvou-se atleticamente em busca das
botinas de pelica, que lustrou com seu escovão de cerdas de cavalo. Após uns
poucos instantes de dúvida, elegeu o pulôver grená de cachemira, que comprara
em sua última ida à fronteira natal.
Vestido,
postou-se em frente à cômoda, tocou de leve o retrato de Antônia, companheira
de tantos anos, e abriu, cerimonioso, a primeira gaveta. Dentro, dispostas em harmonia
e repousando como camafeus em seus suportes de veludo vermelho, estavam suas
duas perucas de tom castanho – bem penteadas e brilhantes –, ladeadas por um
receptáculo de cola, que surrupiara da agência dos Correios um pouco antes da
aposentadoria. Consultou a folhinha na parede e, sem hesitar mais, escolheu a
da esquerda, a cabeleira dos dias pares.
Armou-se
da boina correntina, pendurada no cabide junto à saída, e ao deixar o
apartamentinho em que morava no início da rua Francisco Ferrer, topou com a
faxineira em frente à porta, armada de escada, panos, rodos e vassouras, a quem
cumprimentou com um balançar de cabeça. Passou com dificuldade pelo lado
direito da escada de metal, esgueirando-se junto à parede para não se roçar
indecoroso no fabuloso tundá da serviçal, curvando-se para desviar dos cabos
atravessados no caminho e pulando por sobre o balde que, àquela altura, já
estava cheio de uma água turva e barrosa.
Enterrou a
boina na cabeça enquanto encerrava a manobra, sem dar-se conta que a peruca se
havia enganchado na ponta do rodo, sobre a escada, quando ele passara, e depois
tinha mergulhado silenciosa na água suja do balde. Sem testemunhas vivas.
Nem chegou
a pagar o jornal, que pretendera comprar na tabacaria junto ao prédio.
Sobreveio-lhe uma pontada infernal no peito, a dor se estendendo pelas costas e
pelo braço esquerdo, sentiu um amargor na boca e desabou rente ao balcão da
loja, deixando aberta sobre ele a carteira surrada, com a foto que Maria Lúcia
lhe mandara do Canadá, os documentos gastos, meia dúzia de notas de pouco
valor, uns poucos cartões de visita, e expondo plena e nua a calva lustrosa,
agora abandonada pela boina negra, junto ao piso de ladrilhos coloridos.
Caiu malecho, como se dizia na fronteira, a
boca soltando uma baba viscosa, um olho meio cambaio, já meio adernado para um
dos lados da face.
Para
Vasco, não era agradável voltar a vê-lo justo numa cama de hospital. Por muito
tempo havia aguardado por uma carta esclarecedora, um telefonema ao escritório,
que fosse, convidando-o a uma conversa definitiva, um cartão de Natal ou de
aniversário qualquer em que o Dr. Genarinho assinasse “teu pai”. Mas não.
Estava ali a abrir as portas da Beneficência, naquele anoitecer sombrio, sem
saber ao certo o que encontraria: pai ou padrinho, ainda vivo ou quase morto.
Dirigiu-se à Unidade de Tratamento Intensivo, seguindo a sinalização do
hospital, e aproximou-se sestroso do balcão da enfermagem, como era seu jeito,
os olhos enviesados para o chão, a posição dos ombros mostrando por si a
timidez que sempre o havia caracterizado:
– Posso
ver Genaro Pinzón? – consultou a plantonista.
Com ar
contrariado, a moça mostrou-lhe com o queixo o quarto em frente.
– Como ele
está? – quis saber Vasco, as vogais bem abertas denunciando sua origem fronteiriça.
O arquear
de sobrancelhas, denotando poucas esperanças, indicou-lhe que a opção quase
morto seria mais apropriada. Mas a enfermeira tratou de confirmar de pronto
suas suspeitas:
– Parece
que está vivo apenas para nos chamar de perua o tempo todo – reclamou,
desrespeitosa.
Vasco encontrou-o
irreconhecível no nicho próximo à janela, a outra cama do quarto vaga, mas com
os lençóis desarrumados, sinal de que há pouco alguém se bandeara dali.
Esquálido, a tez pálida, o rosto deformado pela isquemia, a calva marcada por
manchas e sinais de velhice. Sem o garbo costumeiro que sempre havia lhe
compensado a pouca altura.
Nem sequer
o sabia careca, pensou Vasco, confrontando a triste figura prostrada a sua
frente com uma fotinho 3x4 que trazia consigo. Quanta distância!
– Padrinho...
Padrinho... – sussurrou, sem ter resposta.
Tomou-lhe
a mão envelhecida e alisou-a ternamente, aproveitando-se da solidão em que se
encontravam.
– Pai... –
arriscou, agora em tom bem mais forte.
O velho
remexeu-se, abriu com dificuldade um olho, reconheceu Vasco ali postado, ainda
retendo sua mão na dele, e sentindo-se agora menos só, deixou verter uma
lágrima mirrada do seu olho bom. Depois seu olhar se desviou para o crucifixo
na parede e Vasco percebeu que a espera não seria longa. O padrinho, ou seria
pai?, parecia orar, sinal de que in finis
se havia convertido, mantendo até o fim da vida, pelo jeito, suas maneiras
egoístas de fazer apenas o que, e quando, lhe convinha. Pareceu murmurar,
insistente, alguma coisa incompreensível. Como se chamasse também a ele de
perua, a exemplo das enfermeiras. Parou um pouco, como que irritado. Depois
novamente perua... perua... Por fim, fechou o olho e apagou-se outra vez,
aparentando cansaço.
Vasco
deixou o quarto, com a sensação de que ele devia estar meio gagá ou talvez um
pouco grogue pelos medicamentos ingeridos. Ou seria uma perua o seu último
desejo? O derradeiro confronto com a fêmea. Deixar-se partir num orgasmo
definitivo. O velho era dos bons. Mas o mais importante é que respondera ao seu
apelo tão somente quando o chamara por pai.
– Também
me chamou de perua – confidenciou sorridente, ao sair do quarto, para uma
espantada plantonista, mais acostumada ao ânimo sombrio dos visitantes usuais
da UTI.
Entrou no
apartamento do velho como quem rouba, temendo encontrar alguém na sala ao lado.
Avaliou cuidadosamente a peça, a mesa de jantar junto à cristaleira, a cadeira
de leitura, com encosto alto, um televisor antigo sobre um baú de viagem, o
sofá poído e desbotado. Sobre uma mesinha de canto, uma foto da família. O
casal com Maria Lúcia, melhor dizendo.
A cozinha
estava limpa, como se não fosse usada. O único sinal de vida era a cuia do
mate, apoiada sobre um descanso de couro trabalhado, com a bomba chata de prata
alegretense e bocal de ouro, as iniciais GP bordadas também em ouro sobre um
arremedo de diploma incrustrado à meia altura. Ao bom estilo campeiro. Pelo
visto, o padrinho mantinha alguns hábitos da campanha. De resto, apenas a
torneira pinga-pingando mostrava alguma esperança de movimento.
No quarto,
encontrou a cama ainda desfeita e a porta do roupeiro entreaberta como a tinha deixado
o velho antes de sair naquele dia ensolarado de inverno. Abriu a gaveta da
mesinha de cabeceira junto à cama e nada viu de interessante: analgésicos,
contas de luz e água, um baralho de truco. Bisbilhotou pelo roupeiro à cata de
não sei quê, algum sinal, alguma confidência, alguma lembrança. Fechou a porta
do armário e deparou-se com sua figura magra, as feições indiáticas e
tristonhas, a boca reta, o bigodinho ralo. Com certeza, não se parecia com o
padrinho Genarinho, exceto por mirrado e esguio. Irritou-se com sua própria
imagem inconveniente e desvanecedora e voltou-se para a penteadeira. Abriu a
primeira gaveta e topou de pronto com a peruca castanha solitária, o vidro de
cola caseira, a caixa de veludo vazia. Não pôde deixar de rir. Tomou nas mãos,
com cuidado, a cabeleira dos dias ímpares e meneando a cabeça em solerte
reprovação, colocou-a jocoso sobre a própria cabeça, imitando o padrinho,
embora sua basta cabeleira negra tivesse resistido bem ao contar dos anos. Era
o sangue índio.
Não
demorou a dar-lhe o estalo. Era esse o derradeiro pedido do padrinho: morrer
dignamente envergando sua peruca. Que ninguém mais visse sua calva ignóbil, aquele
melão espanhol atacado por fungos, enrugado e feio, que era sua face n orte.
– Peru..a,
peru..a – simulou Vasco a voz perdida do padrinho, imitando-lhe a boca torta e
o ar cansado e abatido. Pareceu-lhe verossímil a sua tese. O padrinho precisava
daquela peruca para morrer tranquilo.
Guardou-a
com carinho em seu encaixe de veludo, satisfeito em poder atender ao velho.
Brotou-lhe um sentimento bom, foram-se os rancores seculares do afilhado, como
se o papel que estava por desempenhar o elevasse de pronto à desejada condição
de filho.
Lembrou-se
assim de Maria Lúcia, a filha de Genarinho com Dona Antônia, a patroa que sua
mãe odiava. Buscou no livreto de endereços junto ao telefone alguma indicação
dela. Discou relutante no antiquado aparelho do velho o longuíssimo número que havia
encontrado, de algum outro país, por certo. Alguém atendeu em francês e Vasco,
instintivamente, desligou o aparelho. Respirou fundo. Precisava tentar outra
vez. Ficou ali estático um bom par de minutos, até soar o aparelho com estridência.
Devia estar no volume máximo, pensou, talvez o padrinho estivesse meio surdo.
Atendeu ao terceiro toque. Do outro lado, uma voz feminina perguntou,
titubeante, antes que dissesse alô:
– Papai? É
você, papai?
– Alô –
foi o que disse Vasco, constrangido.
– Papai,
ligaste pra mim? Teu número ficou registrado...
– Maria
Lúcia?
– Sim,
quem está falando?
– Vasco,
de Caçapava, lembra de mim, afilhado do teu pai?
– Vasco,
Vasco, ... O filho da Clotilde?
– Ele.
– Houve
alguma coisa com o papai? Ele está aí?
– Não,
Maria Lúcia, infelizmente, não. Ele está no hospital, teve um ataque.
– ...
– Sinto
ter que te dizer isso, mas acho que devias vir, se puderes.
– Está
morrendo, Vasco?
Vasco não
soube o que dizer. Ouviu-a pronunciar um obrigado longínquo e desligar o
aparelho. Deixou-se abater pela primeira vez. Deitou-se na cama do padrinho
Genarinho e chorou um pouco por ela, sua irmã ausente, outro tanto por ele, o
pai que nunca tivera.
Amanheceu
vestido, nem os sapatos ele havia tirado. Sentou-se na cama e passou a mão
pelos cabelos despenteados. No banheiro, urinou um jato másculo, lavou o rosto
e procurou, sem encontrar, por um pouco de fixador no armarinho do espelho. O
padrinho era careca lembrou-se, e sorriu. Tratou de fixar os cabelos com um
pouco de água ensaboada.
Depois, retornou ao quarto e colocou sobre a própria cabeça a peruca do padrinho. Olhou-se sério no
espelhinho sobre a cômoda. A boca seca o fez desejar ardentemente um mate.
Lembrou-se da cuia e da bomba. Dirigiu-se à cozinha, encheu a chaleira e
colocou a água a esquentar, enquanto procurava pela erva-mate nos armarinhos de
parede. Encontrou-a, despejou-a sobre a cuia, depois aparou-a com a mão até
formar o morrote adequado e a depositou no descanso. Tomou a chaleira, pôs a
água semiaquecida para inchar a erva e voltou-se para devolvê-la ao fogo. Neste
momento, despegou-se a peruca de sua cabeça, caindo diretamente sobre a boca
acesa do fogão. Quase desapareceu a peruca do padrinho. Num zás, virou um
bombril, contorcido e ressecado.
Passou o
dia junto ao velho imóvel, ou zanzando no corredor, em agonia. Comeu uns
sanduíches, primeira refeição concreta na capital. Boa parte da manhã, ficou
aboletado no banco em frente à central de enfermagem. A enfermeira gordota
custou pouco a lançar-lhe olhares provocantes. Já pela tarde, percebeu que o
brindava com uma abertura displicente nos botões do uniforme, à altura dos
seios. Sentindo sua boa vontade, abordou-a, incisivo:
– Sabes
onde posso comprar uma peruca?
A
enfermeira fez que não com a cabeça, desiludida.
– Tenta o instituto
aí adiante.
E afastou-se
em direção a outra peça, sem sequer dar-lhe a chance de pedir o endereço.
Já
entardecia quando ganhou a rua, à cata do salão de beleza. Andou pela avenida
Independência em meio ao burburinho do trânsito ao fim da tarde, acompanhando
os carros fumacentos, menos velozes que seu próprio passo, num arranca-e-para
pouco produtivo. Umas quadras mais e encontrou o salão, numa transversal da
avenida: Instituto de Beleza Lídia. Empurrou a porta devagar, como se não
quisesse ser visto, e ouviu explodirem estridentes uns setecentos sinos da
felicidade nela pendurados. Cabeças com bobs, cabeças em turbantes, cabeças em
secadores de cabelos, mulheres fazendo as unhas ou com máscaras faciais, todos
os rostos se voltaram para ele, que perguntou meio indistintamente:
– Dona
Lídia, a senhora é a Dona Lídia? – falou, fixando-se por fim na quarentona loira
que estava de pé. – Sabe onde posso comprar uma peruca? É para o meu padrinho
que...
Nem
aguardou a resposta, tal foi a gargalhada que explodiu na peça, e saiu a passos
largos avenida afora, como se fugisse. Quase na esquina da Ramiro Barcelos, um
travesti alto e forte, entreabrindo um casaco longo e preto, ofereceu-lhe o
corpo esculpido a silicone, coberto apenas por uma lingerie vermelha, os seios
bem formados, as coxas grandes:
– Me leva
daqui contigo, meu índio?
– Não,
obrigado – desviou-se ele, envergonhado.
– Sou
Joana, ativa e passiva.
Vasco não
segurou o riso.
– Tá rindo
de quê, sua bicha? – vociferou o travesti.
Vasco
voltou-se lentamente, olhando meio enviesado:
– De duas
coisas, Dona Joana. A primeira é que sou contador, de modo que para mim ou é
ativo ou é passivo, as duas coisas não dá, e a outra...
Joana
interrompeu-o:
– Ih... A
vida não tem nada a ver com contabilidade, neguinho. Eu sou completa, luz e sombra,
lagarta e borboleta, homem, mulher, ativo, passivo. Quer conhecer a minha
escrita?
– A outra
coisa é que me importa mais... – desviou-se Vasco do olhar provocante de Joana.
– Podias me dizer onde comprar uma peruca?
– Olha o
contador aí, gente! Querendo uma peruquinha que nem a minha, hein? Hum... Acho
que loira não vai ficar bem para ti, minha bonequinha, sugiro morena. Não,
melhor ruiva, vai ficar melhor com a tua pele de índio.
– É sério,
Joana, onde compraste a peruca? – repete Vasco, agora mais íntimo e insistente.
O travesti
muda de ares. Remexe no interior da bolsa, cheia de badulaques e acessórios,
enquanto resmunga:
– Achei
que íamos brincar, docinho... Me enfeito toda... Boto peito... Boto bunda... E
tu só quer a minha peruca? Pode? Toma, pega logo – e passa para ele um cartão
amarrotado onde se lê Amália Peruqueira. – Mas hoje já é tarde, de noite ela
não atende.
Amália
Peruqueira. Era o que estava escrito na placa pregada na casinha de tábuas
pintadinha de verde que conferia com o endereço do cartão. O portãozinho de
ferro rangeu tanto ao passar por ele que nem foi necessário bater à porta.
Ouviu logo o barulho de passos fortes do lado de dentro da casinhola e esperou.
A porta entreabriu-se apenas a largura de uns dedos e uma gringa alta firmou
nele uns olhos sabidos, escuros e indagadores:
– É aqui
que se vendem perucas? A senhora é Dona Amália? – introduziu-se Vasco.
A gringa
abriu a porta e estendeu-lhe a mão, deixando de lado o corpo para que passasse.
A sala era modesta, duas poltroninhas de curvim amarelo-ouro, com mesinha no
meio, um grande espelho na parede do fundo, a indefectível televisão sobre um
armarinho de canto. Uma cortina floreada separava a sala do corredor. Foi por
ela que Amália desapareceu quando Vasco lhe pediu a peruca:
– De
homem, dona. Só para a tampa da cabeça. Um pouco mais clara do que o meu
cabelo.
Dona
Amália voltou lá de dentro com duas enormes perucas femininas, semelhantes à de
Joana, uma em cada mão, uma loira e outra ruiva, e ofereceu-as a Vasco, sem
dizer palavra.
– A
senhora não entendeu... – quis explicar-se um Vasco surpreso e constrangido por
ter sido mal compreendido, logo ele, índio macho lá de Caçapava.
Amália
desapareceu outra vez por detrás da cortina, deixando-o só na sala, as duas
perucas na poltrona ao lado.
– Dona...
– gritou Vasco, sem ter resposta.
Ficou ali
à espera, e nada de Dona Amália. Curioso, arriscou a peruca ruiva em frente ao
espelho e ficou surpreso com a transformação. Joana estava certa, o ruivo lhe
caía bem. Riu-se.
– Dona,
por favor... – gritou outra vez, atirando sobre a poltrona a cabeleira ruiva,
que ficou ali toda embolada, lado a lado com a loira, arrumadinha sobre o couro
sintético amarelado. – Acredite, dona, não é pra mim. É pro meu pai que tá
morrendo... – gritou lá para dentro.
Surprendeu-se
em falar assim “meu pai”. Mas Dona Amália voltou à peça, olhou desconfiada para
a peruca ruiva, que visivelmente fora utilizada por ele, e estendeu-lhe,
relutante, uns exemplares masculinos como amostra. Vasco elegeu um deles, o que
lhe pareceu de tom mais próximo ao próprio cabelo, buscou cinquenta pratas na
carteira e ofereceu à dona, que aguardou a segunda pelega de cinquenta chegar a
sua mão para soltar-lhe a desejada peruca, envolta então num papel pardo de
embrulho e um saquinho de supermercado. Despediu-se de Vasco com a sensação de
que ele voltaria.
Quanto a
Vasco, ganhou a rua e finalmente pôde respirar. Ia realizar-se o último desejo
do padrinho.
Trombou
com a enfermeira gordota na porta do quarto da UTI. Ela o olhou, compungida, e
lhe deu um abraço formal, de pêsames.
Dentro do
quarto, os dois cubículos de pano estavam agora fechados. Havia um segundo
paciente na primeira cama, que Vasco não distinguiu bem.
Correu a
cortina do segundo cubículo, junto à janela, e viu seu pai – ou seria padrinho,
apenas? – com as mãos rígidas sobre o peito, a cara lívida, as unhas já um
pouco arroxeadas, o olho cambaio meio fechado, a boca ainda torta resguardando
o ar de gravidade daquele rosto encerrado para os dias.
– Cheguei
tarde, pai – choramingou Vasco, afagando-lhe mais uma vez a mão emurchecida
pelo tempo. – Me perdoa.
Tinha
começado a afastar-se quando viu, sobre a mesinha de apoio, um rolo de
esparadrapo. Voltou, espichou a fita e cortou dois pedaços grandes com os
dentes, vigiando a porta do quarto. Fez dois pequenos anéis com as tiras de
esparadrapo e os colou com cuidado na careca do defunto. Depois, desembrulhando
o papel pardo em que trazia a peruca, firmou-a desajeitado sobre a cabeça do
velho, apressado pois ouviu mover-se o trinco da porta. Saiu do cubículo, quase
se chocando com uma morena bonita que entrou afobada na peça e desabou em
prantos ao ver o pai em posição de velório.
Vasco voltou-se
outra vez para o morto e não escondeu o espanto com o sorriso incontido que,
então, iluminava o rosto do doutor Genarinho.
- Miguel da Costa Franco -
- Miguel da Costa Franco -
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