segunda-feira, 29 de março de 2010

O último desejo do Dr. Genarinho

Argumento do filme de curta metragem dirigido por Fabiano de Souza, produzido pela Casa de Cinema de Porto Alegre em 2002


   Pela manhã, ao abrir as janelas de par em par, o doutor Genarinho não encontrou apenas a alegria do arvoredo em dia de sol, mas um novo ânimo, quase desconhecido desde a morte da companheira. Entendeu pela aragem boa que soprava da Redenção que aquele seria um dia capital em sua vida.
   
   Confrontou-se com o espelho que adornava a parte fronteira do roupeiro, o mesmo móvel belo e robusto que havia comprado para o enxoval do casamento, tantos invernos atrás, e achou-se bem para os seus setenta anos. O corpo ainda rijo – umas pelancas lá e cá, é certo – mas, no todo, bem conservado. Firmou os bíceps, encolheu a barriguinha discreta, mas presente, treinou suas caras de Bogart de um lado e de outro, e resolveu vestir suas melhores roupas. Abriu o armário, que ainda preservava a organização determinada pela falecida: as camisetas brancas de física, sempre indispensáveis, bem a sua frente, na prateleira do meio; as cuecas e carpins dispostos mais embaixo nos gavetões; os sapatos alinhados ao rés do chão; mais em cima, os pulôveres. Na porta do espelho, os ternos pendurados, todos escuros como convinha a um homem de bem; as camisas, brancas, é claro, para facilitar as combinações; o sobretudo de tweed, que comprara na antiga Wolens; e algumas calças avulsas, para os dias de futebol, para as andanças no parque, para os dias de descompromisso.

   Escolheu o melhor terno, marinho riscadinho de giz, estendendo-o sobre a cama. Vestiu uma das tantas camisas alinhadas no roupeiro, curvou-se atleticamente em busca das botinas de pelica, que lustrou com seu escovão de cerdas de cavalo. Após uns poucos instantes de dúvida, elegeu o pulôver grená de cachemira, que comprara em sua última ida à fronteira natal.

   Vestido, postou-se em frente à cômoda, tocou de leve o retrato de Antônia, companheira de tantos anos, e abriu, cerimonioso, a primeira gaveta. Dentro, dispostas em harmonia e repousando como camafeus em seus suportes de veludo vermelho, estavam suas duas perucas de tom castanho – bem penteadas e brilhantes –, ladeadas por um receptáculo de cola, que surrupiara da agência dos Correios um pouco antes da aposentadoria. Consultou a folhinha na parede e, sem hesitar mais, escolheu a da esquerda, a cabeleira dos dias pares.

   Armou-se da boina correntina, pendurada no cabide junto à saída, e ao deixar o apartamentinho em que morava no início da rua Francisco Ferrer, topou com a faxineira em frente à porta, armada de escada, panos, rodos e vassouras, a quem cumprimentou com um balançar de cabeça. Passou com dificuldade pelo lado direito da escada de metal, esgueirando-se junto à parede para não se roçar indecoroso no fabuloso tundá da serviçal, curvando-se para desviar dos cabos atravessados no caminho e pulando por sobre o balde que, àquela altura, já estava cheio de uma água turva e barrosa.

   Enterrou a boina na cabeça enquanto encerrava a manobra, sem dar-se conta que a peruca se havia enganchado na ponta do rodo, sobre a escada, quando ele passara, e depois tinha mergulhado silenciosa na água suja do balde. Sem testemunhas vivas.

   Nem chegou a pagar o jornal, que pretendera comprar na tabacaria junto ao prédio. Sobreveio-lhe uma pontada infernal no peito, a dor se estendendo pelas costas e pelo braço esquerdo, sentiu um amargor na boca e desabou rente ao balcão da loja, deixando aberta sobre ele a carteira surrada, com a foto que Maria Lúcia lhe mandara do Canadá, os documentos gastos, meia dúzia de notas de pouco valor, uns poucos cartões de visita, e expondo plena e nua a calva lustrosa, agora abandonada pela boina negra, junto ao piso de ladrilhos coloridos.
   
   Caiu malecho, como se dizia na fronteira, a boca soltando uma baba viscosa, um olho meio cambaio, já meio adernado para um dos lados da face.



   Para Vasco, não era agradável voltar a vê-lo justo numa cama de hospital. Por muito tempo havia aguardado por uma carta esclarecedora, um telefonema ao escritório, que fosse, convidando-o a uma conversa definitiva, um cartão de Natal ou de aniversário qualquer em que o Dr. Genarinho assinasse “teu pai”. Mas não. Estava ali a abrir as portas da Beneficência, naquele anoitecer sombrio, sem saber ao certo o que encontraria: pai ou padrinho, ainda vivo ou quase morto. Dirigiu-se à Unidade de Tratamento Intensivo, seguindo a sinalização do hospital, e aproximou-se sestroso do balcão da enfermagem, como era seu jeito, os olhos enviesados para o chão, a posição dos ombros mostrando por si a timidez que sempre o havia caracterizado:

   – Posso ver Genaro Pinzón? – consultou a plantonista.

   Com ar contrariado, a moça mostrou-lhe com o queixo o quarto em frente.

   – Como ele está? – quis saber Vasco, as vogais bem abertas denunciando sua origem fronteiriça.

   O arquear de sobrancelhas, denotando poucas esperanças, indicou-lhe que a opção quase morto seria mais apropriada. Mas a enfermeira tratou de confirmar de pronto suas suspeitas:

   – Parece que está vivo apenas para nos chamar de perua o tempo todo – reclamou, desrespeitosa.

   Vasco encontrou-o irreconhecível no nicho próximo à janela, a outra cama do quarto vaga, mas com os lençóis desarrumados, sinal de que há pouco alguém se bandeara dali. Esquálido, a tez pálida, o rosto deformado pela isquemia, a calva marcada por manchas e sinais de velhice. Sem o garbo costumeiro que sempre havia lhe compensado a pouca altura.

   Nem sequer o sabia careca, pensou Vasco, confrontando a triste figura prostrada a sua frente com uma fotinho 3x4 que trazia consigo. Quanta distância!

   – Padrinho... Padrinho... – sussurrou, sem ter resposta.

   Tomou-lhe a mão envelhecida e alisou-a ternamente, aproveitando-se da solidão em que se encontravam.

   – Pai... – arriscou, agora em tom bem mais forte.
   O velho remexeu-se, abriu com dificuldade um olho, reconheceu Vasco ali postado, ainda retendo sua mão na dele, e sentindo-se agora menos só, deixou verter uma lágrima mirrada do seu olho bom. Depois seu olhar se desviou para o crucifixo na parede e Vasco percebeu que a espera não seria longa. O padrinho, ou seria pai?, parecia orar, sinal de que in finis se havia convertido, mantendo até o fim da vida, pelo jeito, suas maneiras egoístas de fazer apenas o que, e quando, lhe convinha. Pareceu murmurar, insistente, alguma coisa incompreensível. Como se chamasse também a ele de perua, a exemplo das enfermeiras. Parou um pouco, como que irritado. Depois novamente perua... perua... Por fim, fechou o olho e apagou-se outra vez, aparentando cansaço.

   Vasco deixou o quarto, com a sensação de que ele devia estar meio gagá ou talvez um pouco grogue pelos medicamentos ingeridos. Ou seria uma perua o seu último desejo? O derradeiro confronto com a fêmea. Deixar-se partir num orgasmo definitivo. O velho era dos bons. Mas o mais importante é que respondera ao seu apelo tão somente quando o chamara por pai.
   
   – Também me chamou de perua – confidenciou sorridente, ao sair do quarto, para uma espantada plantonista, mais acostumada ao ânimo sombrio dos visitantes usuais da UTI.



   Entrou no apartamento do velho como quem rouba, temendo encontrar alguém na sala ao lado. Avaliou cuidadosamente a peça, a mesa de jantar junto à cristaleira, a cadeira de leitura, com encosto alto, um televisor antigo sobre um baú de viagem, o sofá poído e desbotado. Sobre uma mesinha de canto, uma foto da família. O casal com Maria Lúcia, melhor dizendo.

   A cozinha estava limpa, como se não fosse usada. O único sinal de vida era a cuia do mate, apoiada sobre um descanso de couro trabalhado, com a bomba chata de prata alegretense e bocal de ouro, as iniciais GP bordadas também em ouro sobre um arremedo de diploma incrustrado à meia altura. Ao bom estilo campeiro. Pelo visto, o padrinho mantinha alguns hábitos da campanha. De resto, apenas a torneira pinga-pingando mostrava alguma esperança de movimento.

   No quarto, encontrou a cama ainda desfeita e a porta do roupeiro entreaberta como a tinha deixado o velho antes de sair naquele dia ensolarado de inverno. Abriu a gaveta da mesinha de cabeceira junto à cama e nada viu de interessante: analgésicos, contas de luz e água, um baralho de truco. Bisbilhotou pelo roupeiro à cata de não sei quê, algum sinal, alguma confidência, alguma lembrança. Fechou a porta do armário e deparou-se com sua figura magra, as feições indiáticas e tristonhas, a boca reta, o bigodinho ralo. Com certeza, não se parecia com o padrinho Genarinho, exceto por mirrado e esguio. Irritou-se com sua própria imagem inconveniente e desvanecedora e voltou-se para a penteadeira. Abriu a primeira gaveta e topou de pronto com a peruca castanha solitária, o vidro de cola caseira, a caixa de veludo vazia. Não pôde deixar de rir. Tomou nas mãos, com cuidado, a cabeleira dos dias ímpares e meneando a cabeça em solerte reprovação, colocou-a jocoso sobre a própria cabeça, imitando o padrinho, embora sua basta cabeleira negra tivesse resistido bem ao contar dos anos. Era o sangue índio.

   Não demorou a dar-lhe o estalo. Era esse o derradeiro pedido do padrinho: morrer dignamente envergando sua peruca. Que ninguém mais visse sua calva ignóbil, aquele melão espanhol atacado por fungos, enrugado e feio, que era sua face n orte.

   – Peru..a, peru..a – simulou Vasco a voz perdida do padrinho, imitando-lhe a boca torta e o ar cansado e abatido. Pareceu-lhe verossímil a sua tese. O padrinho precisava daquela peruca para morrer tranquilo.

   Guardou-a com carinho em seu encaixe de veludo, satisfeito em poder atender ao velho. Brotou-lhe um sentimento bom, foram-se os rancores seculares do afilhado, como se o papel que estava por desempenhar o elevasse de pronto à desejada condição de filho.

   Lembrou-se assim de Maria Lúcia, a filha de Genarinho com Dona Antônia, a patroa que sua mãe odiava. Buscou no livreto de endereços junto ao telefone alguma indicação dela. Discou relutante no antiquado aparelho do velho o longuíssimo número que havia encontrado, de algum outro país, por certo. Alguém atendeu em francês e Vasco, instintivamente, desligou o aparelho. Respirou fundo. Precisava tentar outra vez. Ficou ali estático um bom par de minutos, até soar o aparelho com estridência. Devia estar no volume máximo, pensou, talvez o padrinho estivesse meio surdo. Atendeu ao terceiro toque. Do outro lado, uma voz feminina perguntou, titubeante, antes que dissesse alô:

   – Papai? É você, papai?

   – Alô – foi o que disse Vasco, constrangido.

   – Papai, ligaste pra mim? Teu número ficou registrado...

   – Maria Lúcia?

   – Sim, quem está falando?

   – Vasco, de Caçapava, lembra de mim, afilhado do teu pai?

   – Vasco, Vasco, ... O filho da Clotilde?

   – Ele.

   – Houve alguma coisa com o papai? Ele está aí?

   – Não, Maria Lúcia, infelizmente, não. Ele está no hospital, teve um ataque.

   – ...

   – Sinto ter que te dizer isso, mas acho que devias vir, se puderes.

   – Está morrendo, Vasco?

   Vasco não soube o que dizer. Ouviu-a pronunciar um obrigado longínquo e desligar o aparelho. Deixou-se abater pela primeira vez. Deitou-se na cama do padrinho Genarinho e chorou um pouco por ela, sua irmã ausente, outro tanto por ele, o pai que nunca tivera.

   Amanheceu vestido, nem os sapatos ele havia tirado. Sentou-se na cama e passou a mão pelos cabelos despenteados. No banheiro, urinou um jato másculo, lavou o rosto e procurou, sem encontrar, por um pouco de fixador no armarinho do espelho. O padrinho era careca lembrou-se, e sorriu. Tratou de fixar os cabelos com um pouco de água ensaboada.

   Depois, retornou ao quarto e colocou sobre a própria cabeça a peruca do padrinho. Olhou-se sério no espelhinho sobre a cômoda. A boca seca o fez desejar ardentemente um mate. Lembrou-se da cuia e da bomba. Dirigiu-se à cozinha, encheu a chaleira e colocou a água a esquentar, enquanto procurava pela erva-mate nos armarinhos de parede. Encontrou-a, despejou-a sobre a cuia, depois aparou-a com a mão até formar o morrote adequado e a depositou no descanso. Tomou a chaleira, pôs a água semiaquecida para inchar a erva e voltou-se para devolvê-la ao fogo. Neste momento, despegou-se a peruca de sua cabeça, caindo diretamente sobre a boca acesa do fogão. Quase desapareceu a peruca do padrinho. Num zás, virou um bombril, contorcido e ressecado.



   Passou o dia junto ao velho imóvel, ou zanzando no corredor, em agonia. Comeu uns sanduíches, primeira refeição concreta na capital. Boa parte da manhã, ficou aboletado no banco em frente à central de enfermagem. A enfermeira gordota custou pouco a lançar-lhe olhares provocantes. Já pela tarde, percebeu que o brindava com uma abertura displicente nos botões do uniforme, à altura dos seios. Sentindo sua boa vontade, abordou-a, incisivo:

   – Sabes onde posso comprar uma peruca?

   A enfermeira fez que não com a cabeça, desiludida.

   – Tenta o instituto aí adiante.

   E afastou-se em direção a outra peça, sem sequer dar-lhe a chance de pedir o endereço.

   Já entardecia quando ganhou a rua, à cata do salão de beleza. Andou pela avenida Independência em meio ao burburinho do trânsito ao fim da tarde, acompanhando os carros fumacentos, menos velozes que seu próprio passo, num arranca-e-para pouco produtivo. Umas quadras mais e encontrou o salão, numa transversal da avenida: Instituto de Beleza Lídia. Empurrou a porta devagar, como se não quisesse ser visto, e ouviu explodirem estridentes uns setecentos sinos da felicidade nela pendurados. Cabeças com bobs, cabeças em turbantes, cabeças em secadores de cabelos, mulheres fazendo as unhas ou com máscaras faciais, todos os rostos se voltaram para ele, que perguntou meio indistintamente:

   – Dona Lídia, a senhora é a Dona Lídia? – falou, fixando-se por fim na quarentona loira que estava de pé. – Sabe onde posso comprar uma peruca? É para o meu padrinho que...

   Nem aguardou a resposta, tal foi a gargalhada que explodiu na peça, e saiu a passos largos avenida afora, como se fugisse. Quase na esquina da Ramiro Barcelos, um travesti alto e forte, entreabrindo um casaco longo e preto, ofereceu-lhe o corpo esculpido a silicone, coberto apenas por uma lingerie vermelha, os seios bem formados, as coxas grandes:

   – Me leva daqui contigo, meu índio?

   – Não, obrigado – desviou-se ele, envergonhado.

   – Sou Joana, ativa e passiva.

   Vasco não segurou o riso.

   – Tá rindo de quê, sua bicha? – vociferou o travesti.

   Vasco voltou-se lentamente, olhando meio enviesado:

   – De duas coisas, Dona Joana. A primeira é que sou contador, de modo que para mim ou é ativo ou é passivo, as duas coisas não dá, e a outra...

   Joana interrompeu-o:

   – Ih... A vida não tem nada a ver com contabilidade, neguinho. Eu sou completa, luz e sombra, lagarta e borboleta, homem, mulher, ativo, passivo. Quer conhecer a minha escrita?

   – A outra coisa é que me importa mais... – desviou-se Vasco do olhar provocante de Joana. – Podias me dizer onde comprar uma peruca?

   – Olha o contador aí, gente! Querendo uma peruquinha que nem a minha, hein? Hum... Acho que loira não vai ficar bem para ti, minha bonequinha, sugiro morena. Não, melhor ruiva, vai ficar melhor com a tua pele de índio.

   – É sério, Joana, onde compraste a peruca? – repete Vasco, agora mais íntimo e insistente.

   O travesti muda de ares. Remexe no interior da bolsa, cheia de badulaques e acessórios, enquanto resmunga:

   – Achei que íamos brincar, docinho... Me enfeito toda... Boto peito... Boto bunda... E tu só quer a minha peruca? Pode? Toma, pega logo – e passa para ele um cartão amarrotado onde se lê Amália Peruqueira. – Mas hoje já é tarde, de noite ela não atende.


   Amália Peruqueira. Era o que estava escrito na placa pregada na casinha de tábuas pintadinha de verde que conferia com o endereço do cartão. O portãozinho de ferro rangeu tanto ao passar por ele que nem foi necessário bater à porta. Ouviu logo o barulho de passos fortes do lado de dentro da casinhola e esperou. A porta entreabriu-se apenas a largura de uns dedos e uma gringa alta firmou nele uns olhos sabidos, escuros e indagadores:

   – É aqui que se vendem perucas? A senhora é Dona Amália? – introduziu-se Vasco.

   A gringa abriu a porta e estendeu-lhe a mão, deixando de lado o corpo para que passasse. A sala era modesta, duas poltroninhas de curvim amarelo-ouro, com mesinha no meio, um grande espelho na parede do fundo, a indefectível televisão sobre um armarinho de canto. Uma cortina floreada separava a sala do corredor. Foi por ela que Amália desapareceu quando Vasco lhe pediu a peruca:

   – De homem, dona. Só para a tampa da cabeça. Um pouco mais clara do que o meu cabelo.

   Dona Amália voltou lá de dentro com duas enormes perucas femininas, semelhantes à de Joana, uma em cada mão, uma loira e outra ruiva, e ofereceu-as a Vasco, sem dizer palavra.

   – A senhora não entendeu... – quis explicar-se um Vasco surpreso e constrangido por ter sido mal compreendido, logo ele, índio macho lá de Caçapava.

   Amália desapareceu outra vez por detrás da cortina, deixando-o só na sala, as duas perucas na poltrona ao lado.

   – Dona... – gritou Vasco, sem ter resposta.

   Ficou ali à espera, e nada de Dona Amália. Curioso, arriscou a peruca ruiva em frente ao espelho e ficou surpreso com a transformação. Joana estava certa, o ruivo lhe caía bem. Riu-se.

   – Dona, por favor... – gritou outra vez, atirando sobre a poltrona a cabeleira ruiva, que ficou ali toda embolada, lado a lado com a loira, arrumadinha sobre o couro sintético amarelado. – Acredite, dona, não é pra mim. É pro meu pai que tá morrendo... – gritou lá para dentro.

   Surprendeu-se em falar assim “meu pai”. Mas Dona Amália voltou à peça, olhou desconfiada para a peruca ruiva, que visivelmente fora utilizada por ele, e estendeu-lhe, relutante, uns exemplares masculinos como amostra. Vasco elegeu um deles, o que lhe pareceu de tom mais próximo ao próprio cabelo, buscou cinquenta pratas na carteira e ofereceu à dona, que aguardou a segunda pelega de cinquenta chegar a sua mão para soltar-lhe a desejada peruca, envolta então num papel pardo de embrulho e um saquinho de supermercado. Despediu-se de Vasco com a sensação de que ele voltaria.

   Quanto a Vasco, ganhou a rua e finalmente pôde respirar. Ia realizar-se o último desejo do padrinho.



   Trombou com a enfermeira gordota na porta do quarto da UTI. Ela o olhou, compungida, e lhe deu um abraço formal, de pêsames.

   Dentro do quarto, os dois cubículos de pano estavam agora fechados. Havia um segundo paciente na primeira cama, que Vasco não distinguiu bem.

   Correu a cortina do segundo cubículo, junto à janela, e viu seu pai – ou seria padrinho, apenas? – com as mãos rígidas sobre o peito, a cara lívida, as unhas já um pouco arroxeadas, o olho cambaio meio fechado, a boca ainda torta resguardando o ar de gravidade daquele rosto encerrado para os dias.

   – Cheguei tarde, pai – choramingou Vasco, afagando-lhe mais uma vez a mão emurchecida pelo tempo. – Me perdoa.

   Tinha começado a afastar-se quando viu, sobre a mesinha de apoio, um rolo de esparadrapo. Voltou, espichou a fita e cortou dois pedaços grandes com os dentes, vigiando a porta do quarto. Fez dois pequenos anéis com as tiras de esparadrapo e os colou com cuidado na careca do defunto. Depois, desembrulhando o papel pardo em que trazia a peruca, firmou-a desajeitado sobre a cabeça do velho, apressado pois ouviu mover-se o trinco da porta. Saiu do cubículo, quase se chocando com uma morena bonita que entrou afobada na peça e desabou em prantos ao ver o pai em posição de velório.

   Vasco voltou-se outra vez para o morto e não escondeu o espanto com o sorriso incontido que, então, iluminava o rosto do doutor Genarinho.


                                                                             - Miguel da Costa Franco -

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