sexta-feira, 3 de agosto de 2018

A inquilina feliz


   Seu Plauto vibrava com a nova moradora da quitinete apertada da qual era proprietário e vizinho na Rua Beirute, no bairro Humaitá. Aquele lugar era um pandemônio. O nome da rua ostentava, por si, uma longínqua evocação da guerra que havia devastado o Líbano nos anos 80. A cada avião que pousava no Salgado Filho - e também nas decolagens, nos dias de vento sul -, o prédio tremia inteiro. Ele vivia tapeando com argamassa e tinta fresca as rachaduras nas paredes para conseguir alugar o apartamento, mas logo, logo, perdia os inquilinos, zonzos de não poder dormir. Eram mais ou menos duzentas chegadas ou partidas diárias.

   Ainda assim, a morena solitária que havia alugado o muquicinho da Beirute mantinha um excelente humor, esbanjando energia vital, apesar de já não ser tão jovem. Pagava o aluguel sempre em dia e mostrava alegria a cada passagem de uma aeronave sobre seu teto. Gostava de experimentar coisas novas.

   Ouviam seus uivos lá do térreo, o seu Plauto e a esposa, para quem aquilo era a mais pura sem-vergonhice.

   Adoro, adoro, adoro, rebatia a inquilina feliz.

   Seria bom se a “patroa” queixosa fosse assim, pensava o seu Plauto, com a libido ressuscitada, sempre procurando motivos para uma visitinha à outra: a revisão da descarga do sanitário, a limpeza da caixa de gorduras, um conserto qualquer.

   Mais impressionado ficaria se soubesse a origem e a dimensão daquelas sonoras expressões de felicidade.

   Os estímulos físicos mexiam com sua inquilina feliz de uma maneira quase sobrenatural. A trepidação provocada pela passagem dos aviões a levava, junto com suas turbinas, para as maiores lonjuras. Não à toa havia escolhido morar no Humaitá: já vizinhara com a Base Aérea, quando morava em Canoas, e com o aeroporto de Congonhas, nos tempos de São Paulo.

   Tinha começado a se exercitar ainda menina. As freiras do colégio Nossa Senhora Aparecida, onde fizera o fundamental, demandavam saias pelo joelho e meias curtas como uniforme diário, deixando exposto ao frio da serra todo um universo de coxas magras e gordas, longas ou pitocas, mas sempre enregeladas e roxas. A nova inquilina do seu Plauto desenvolvera, quando colegial, um constante aperta-e-afrouxa da musculatura da pélvis para aquecer as partes mais expostas ao tempo e manter o tônus. Ajudaram muito, à época, os ensinamentos recebidos nas aulas de ginástica com a professora coreana, de quem todas gurias gostavam muito, muito, muito.

   Depois que lhe apareceu a primeira nódoa de sangue na calcinha de algodão, aos exercícios de fortalecimento muscular agregou-se, pouco a pouco, uma tonturinha gostosa e crescente, uma sensação de quase-morte que a devolvia à vida com um estado de ânimo infinitamente superior. E bochechas vermelhas como hibiscos.

   Na tarde em que foi com colegas de aula assistir a primeira explosão na pedreira, descobriu o poder maravilhoso das trepidações exteriores sobre seu corpo franzino. Sentia o solo vibrar sob os pés e sucessivas ondas de ar impactando seu colo. A tontura auto-infligida, agradável e mortífera - que a levava a desabar sem forças sobre a carteira no colégio e suar frio por longos vinte ou trinta segundos -, transformou-se, com o estímulo da dinamite e das britadeiras, numa espiral inimaginável de agulhadas e descargas elétricas a varrer seu baixo ventre. Naquela vez, caiu ao chão, como se desmaiasse. Um exército de vespas furiosas debatia-se dentro do seu quadril.

   Os parceiros da tarde de aventura acusaram-na de ser uma cagona de merda, mas ela não se importou com as provocações e as risadinhas de escárnio. A sensação incendiária tinha sido boa demais.

   Como decorrência de seu uivar descontrolado em meio à polvadeira daquele simulacro de terremoto, as meninas da escola insinuaram que ela seria doida de pedra. O filho do médico fazia um diagnóstico mais preciso: com certeza, é epilética. Ou filha de santo, sugeria o neto do borracheiro.

   Por medo de contágio por males do corpo ou do espírito, afastaram-se dela. A mãe, assustada, levou-a para uma consulta no postinho de saúde. Mas ela não quis abandonar os passeios às cercanias da pedreira. Afinal, ninguém apontara qualquer doença conclusiva. O ginecologista havia assegurado que ela era muito forte, o seu assoalho pélvico podia sustentar um edifício de vinte andares. Foi isto mesmo que ele disse. Mas ninguém sabia direito lhe explicar o que era assoalho pélvico. Andou fuçando sobre o assunto num site de buscas na internet, mas não compreendeu a pleno do que se tratava. Era algo a ver com a sua anatomia. O resultado prático e inconveniente de suas pesquisas foi passar a receber por e-mail dezenas de anúncios de lojas de material de construção.

   Voltar todas as semanas à mina de basalto virou o seu programa predileto, mesmo depois de abandonada pelos comparsas da primeira visita.

   Aos poucos, seus prazeres secretos transferiram-se para velozes passeios de bicicleta em ruas de paralelepípedos ou para os assentos dos ônibus urbanos, onde ela escolhia sentar-se sempre acima dos rodados traseiros. Tratava de fechar os olhos já na chegada, como se quisesse dormir, de modo que suas vertigens ficassem despercebidas.

   Quando se mudou para Porto Alegre, adorava passear no “trensurb”, sentindo o suave matraquear dos trilhos a beliscar-lhe o entrepernas. Na fábrica, pediu para trabalhar perto dos geradores. Certa vez colou-se às paredes da casa das máquinas que acionam o vão móvel da ponte do Guaíba, mas a prolongada erupção de seu “vesúvio” interior trouxe-lhe um medo danado de cair ao rio. Então, visitando uma colega de trabalho, havia descoberto o poder dos aeroportos. Deles, não se descolou jamais.

   Aos que a questionavam sobre a conveniência de vizinhança tão turbulenta, argumentava que o aluguel era bem barato e seu Plauto, um amor de pessoa, muito atencioso, sempre pronto a resolver tudo o que ela pedisse. Além disso, voltava para casa quase morta. Mal chegava do trabalho, à noitinha, ligava o som e se atirava na cama, dali saindo somente para banhos restauradores entre um voo e outro.

   Queria mesmo é que o Salgado Filho pudesse receber toda semana aqueles cargueiros enormes - os gigantes dos céus - que o seu Plauto insistiu em lhe mostrar um dia na tevê, espiando suas reações com o rabo dos olhos. Aí, sim, seria top.

   Mas ele dizia não ser possível, nosso aeroporto não comportava tanto peso e potência. Amolecia a voz quando ela puxava conversa, ficava todo animado e dengoso, até andou comprando uns remedinhos para ficar de prontidão. Pobre do seu Plauto! Sempre “se achando”.

   Nem sabia que sua inquilina feliz tinha pedido transferência para a filial de São Paulo logo depois daquele programa sobre aeronáutica, e planejava abandonar o muquifo da Rua Beirute, só para poder morar pertinho de Guarulhos.

   Seu sonho não era transar com um velhote fedido passado dos setenta anos, mas poder experimentar a decolagem de um Antonov AN225, o maior avião do mundo. Precisava testar seus limites; imaginava, então, ser capaz de explodir de prazer em meio à decolagem do monstro.

   Depois disso, só se mudando para perto da NASA, no Cabo Canaveral.

                                               - Miguel da Costa Franco -

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