quinta-feira, 19 de outubro de 2017

A lei é a lei


   Ainda que tenham sido leves os nossos crimes e curtas as nossas penas, estamos trancados, alheios ao sol e à chuva, sujeitos a uma dura rotina de readequação. Somos todos criminosos, é preciso admitir. Somos infratores, agora apenados. Temos direitos suspensos. Homens treinados para reorientar trajetórias aplicam-nos sessões diárias de reeducação moral e normativa. Ao menos, a noite nós podemos passar em casa. É prisão semi-aberta. Basta que voltemos de manhãzinha.

   É curioso o fato de muitos de nós alegarmos inocência. Sentimo-nos flagrados em delitos comuns à maioria ou alvo da injustiça de agentes públicos empoderados demais. É normal que perguntemos ao mestre da hora: quem jamais? Ou que nos consideremos azarados, pinçados como trouxas exemplares num cardume de bandidos espertinhos.

   Apenas Fernanda assumiu seus crimes, quando nos apresentamos. Errei, só pensei em mim, estou aqui para reaprender, ela disse.

   Mesmo eu – pacífico cidadão - aleguei injustiças várias, obscuridades da norma e exageros autoritários. Dionélio admitiu ter ultrapassado limites, mas foi só um pouquinho. Karen alegou não conhecer o código. Júlio investiu contra os homens da lei, todos uns safados a se beneficiarem de impostos e taxas. Promete vingança. Ana Paula está pagando pelo crime de terceiros e não teve meios para contestar. Renato também cumpre pena no lugar de outro, mas foi um gesto voluntário. Lédio culpa o temporal, que o deixou fora de si. Cristina assume ser muito perigosa, mas alega ter sido alvo de perseguição. Rodrigo se passa quando bebe. Agenor estava no local errado na hora errada. Eronildes, fosse rica, não estaria ali. José, fosse pobre, teria escapado. Arlindo quis fugir de um assalto e se deu mal. Paulinho usa a própria juventude como desculpa: vão dizer que não faziam assim quando eram guris?

   Assim nos apresentamos aos nossos algozes: irritados, arredios, magoados. Mais vítimas que bandoleiros.

   Diante de tantas esquivas, os educadores -  aprendizes  de  durões -, relativizam os mal feitos. Querem aproximar-se da sabida normalidade que representamos, para não parecerem caretas demais ou malandros de menos. Passam a mão sobre nossas cabeças, ensinam burlas, recomendam atalhos ao regulamento. Ninguém é santo, todos sabemos, a gente precisa se policiar, dizem. Comentam até sobre falcatruas em alguns centros de reabilitação, fraudes com outros educandos e afrouxamento das penas por conta dos carcereiros. Talvez querendo exaltar o rigor da própria instituição ou abrindo as portas para alguma negociata. O sistema tem falhas. Com certeza, tem falhas. Ah! O maldito sistema.

   Outras vezes querem aparentar a pureza de alma que suas cicatrizes teimam em manchar. Contradizem-se, fazendo dos banhos de sangue diários uma nauseante estratégia de conscientização pelo asco, pelo medo e pela dor. Ao menos, evitam torturar-nos com imagens do velório das vítimas.

   Estamos longe da perfeição, eles admitem, fazemos um trabalho de formiguinha. Sabemos que lá fora é uma selva e muita gente, neste exato  momento, está cometendo os mesmos crimes que os trouxeram aqui. São mais de sessenta mil mortes por ano. Mas vocês deram azar, fodam-se. Infringiram alguma norma. E a lei é a lei, porra. Por alguma razão ela existe.

   Reflito que seria útil saber um pouco mais sobre as tais razões, mas sou novamente atropelado pela carnificina midiática, corpos estendidos, braços amputados, fraturas angulosas, poças fumegantes, sangue fresco.

   Não dá para inventar a roda, as coisas precisam fluir, eles explicam. O mundo não pode parar porque um babaca desistiu de dobrar a esquina.

   Sem me animar a contestá-los - o mundo bem poderia dar uma pausa para ajeitar as coisas! – penso que eu deveria ser grato. Entre grosserias diversas, eles me ensinaram truques e macetes. Lembram aqueles professores inseguros que avisavam em aula: olha, presta atenção, isso vai cair na prova.

   Meu melhor mestre assumiu já ter sentado nos banquinhos que agora suportam, dia após dia, nossos corpos cansados. Teve lá sua vida de crimes. Apesar de incorporado à função de protetor das normas, do alto de sua sapiência, avisa para não sermos otários. Todo aquele regramento é relativo. Se acharmos que estamos em risco, um deslize aqui ou ali faz parte do jogo. É o diabo do bom senso.

   Em algumas semanas, eu volto para as ruas. Estou inquieto. Não me sinto plenamente reabilitado para o convívio em sociedade, nem encontrei à venda nenhum bonsensômetro. Cá entre nós, não vejo a sociedade muito apta a conviver consigo mesma.

   Os mestres gostam de chamar de reciclagem a nossa cruzada por este paraíso. Embora não saia dela mancando de uma perna, como o Reni, ou com a testa afundada, como o reincidente Marcelo, enfrentarei problemas. Espero saber dizer as palavras certas. Farei sinais e pedirei desculpas. Tratarei de não dar mole diante das autoridades e manterei minha arma bem cadastrada, regulada e em dia com os impostos. Cuidarei das câmeras de vigilância. Evitarei as manobras que costumam dar errado. Estarei atento à movimentação dos homens, de olho nas advertências e nos riscos do ofício. Prometo atenção aos avisos de encrenca, aos gestos, aos silvos. A lei é a lei, porra. Vou lembrar sempre desse argumento.

   Logo estarei apto a recuperar minha carteira de habilitação. Não quero voltar a cumprir pena no CFC Pestana.


                                                                                 - Miguel da Costa Franco -

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