Ainda que tenham sido leves os nossos crimes e
curtas as nossas penas, estamos trancados, alheios ao sol e à chuva, sujeitos a
uma dura rotina de readequação. Somos todos criminosos, é preciso admitir. Somos
infratores, agora apenados. Temos direitos suspensos. Homens treinados para
reorientar trajetórias aplicam-nos sessões diárias de reeducação moral e
normativa. Ao menos, a noite nós podemos passar em casa. É prisão semi-aberta. Basta
que voltemos de manhãzinha.
É curioso o fato de muitos de nós alegarmos
inocência. Sentimo-nos flagrados em delitos comuns à maioria ou alvo da
injustiça de agentes públicos empoderados demais. É normal que perguntemos ao
mestre da hora: quem jamais? Ou que nos consideremos azarados, pinçados como
trouxas exemplares num cardume de bandidos espertinhos.
Apenas Fernanda assumiu seus crimes, quando nos
apresentamos. Errei, só pensei em mim, estou aqui para reaprender, ela disse.
Mesmo eu – pacífico cidadão - aleguei injustiças
várias, obscuridades da norma e exageros autoritários. Dionélio admitiu ter ultrapassado
limites, mas foi só um pouquinho. Karen alegou não conhecer o código. Júlio
investiu contra os homens da lei, todos uns safados a se beneficiarem de
impostos e taxas. Promete vingança. Ana Paula está pagando pelo crime de
terceiros e não teve meios para contestar. Renato também cumpre pena no lugar
de outro, mas foi um gesto voluntário. Lédio culpa o temporal, que o deixou
fora de si. Cristina assume ser muito perigosa, mas alega ter sido alvo de
perseguição. Rodrigo se passa quando bebe. Agenor estava no local errado na
hora errada. Eronildes, fosse rica, não estaria ali. José, fosse pobre, teria
escapado. Arlindo quis fugir de um assalto e se deu mal. Paulinho usa a própria
juventude como desculpa: vão dizer que não faziam assim quando eram guris?
Assim nos apresentamos aos nossos algozes:
irritados, arredios, magoados. Mais vítimas que bandoleiros.
Diante de tantas esquivas, os educadores - aprendizes de durões -, relativizam os mal feitos. Querem
aproximar-se da sabida normalidade que representamos, para não parecerem
caretas demais ou malandros de menos. Passam a mão sobre nossas cabeças,
ensinam burlas, recomendam atalhos ao regulamento. Ninguém é santo, todos
sabemos, a gente precisa se policiar, dizem. Comentam até sobre falcatruas em
alguns centros de reabilitação, fraudes com outros educandos e afrouxamento das
penas por conta dos carcereiros. Talvez querendo exaltar o rigor da própria instituição
ou abrindo as portas para alguma negociata. O sistema tem falhas. Com certeza,
tem falhas. Ah! O maldito sistema.
Outras vezes querem aparentar a pureza de alma
que suas cicatrizes teimam em manchar. Contradizem-se, fazendo dos banhos de
sangue diários uma nauseante estratégia de conscientização pelo asco, pelo medo
e pela dor. Ao menos, evitam torturar-nos com imagens do velório das vítimas.
Estamos longe da perfeição, eles admitem,
fazemos um trabalho de formiguinha. Sabemos que lá fora é uma selva e muita
gente, neste exato momento, está cometendo os mesmos crimes que os trouxeram
aqui. São mais de sessenta mil mortes por ano. Mas vocês deram azar, fodam-se. Infringiram
alguma norma. E a lei é a lei, porra. Por alguma razão ela existe.
Reflito que seria útil saber um pouco mais sobre
as tais razões, mas sou novamente atropelado pela carnificina midiática, corpos
estendidos, braços amputados, fraturas angulosas, poças fumegantes, sangue
fresco.
Não dá para inventar a roda, as coisas precisam
fluir, eles explicam. O mundo não pode parar porque um babaca desistiu de
dobrar a esquina.
Sem me animar a contestá-los - o mundo bem poderia
dar uma pausa para ajeitar as coisas! – penso que eu deveria ser grato. Entre grosserias
diversas, eles me ensinaram truques e macetes. Lembram aqueles professores
inseguros que avisavam em aula: olha, presta atenção, isso vai cair na prova.
Meu melhor mestre assumiu já ter sentado nos
banquinhos que agora suportam, dia após dia, nossos corpos cansados. Teve lá
sua vida de crimes. Apesar de incorporado à função de protetor das normas, do
alto de sua sapiência, avisa para não sermos otários. Todo aquele regramento é
relativo. Se acharmos que estamos em risco, um deslize aqui ou ali faz parte do
jogo. É o diabo do bom senso.
Em algumas semanas, eu volto para as ruas. Estou
inquieto. Não me sinto plenamente reabilitado para o convívio em sociedade, nem
encontrei à venda nenhum bonsensômetro. Cá entre nós, não vejo a sociedade muito
apta a conviver consigo mesma.
Os mestres gostam de chamar de reciclagem a nossa
cruzada por este paraíso. Embora não saia dela mancando de uma perna, como o
Reni, ou com a testa afundada, como o reincidente Marcelo, enfrentarei
problemas. Espero saber dizer as palavras certas. Farei sinais e pedirei
desculpas. Tratarei de não dar mole diante das autoridades e manterei minha
arma bem cadastrada, regulada e em dia com os impostos. Cuidarei das câmeras de
vigilância. Evitarei as manobras que costumam dar errado. Estarei atento à
movimentação dos homens, de olho nas advertências e nos riscos do ofício. Prometo
atenção aos avisos de encrenca, aos gestos, aos silvos. A lei é a lei, porra.
Vou lembrar sempre desse argumento.
Logo estarei apto a recuperar minha carteira de
habilitação. Não quero voltar a cumprir pena no CFC Pestana.
- Miguel da Costa Franco -
- Miguel da Costa Franco -
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