sexta-feira, 1 de setembro de 2017

A vizinha ilustre


  
   Minha amiga, a quem chamarei Dora, tem uma vizinha ilustre.

   Quando soube com quem partilhava o condomínio, Dora ficou admirada que uma figura tão importante da República morasse justo no andar de cima, num prédio tão simples como era o seu.

   Para Dora, seu apartamento havia sido a conquista suada de uma vida inteira de trabalho e esforço: uma morada de porte médio, ensolarada, com quartos para si e para os seus dois filhos, espaço para os gatos e para seu ateliê, com boa privacidade, garagem para o carro e jardins floridos. Não é fácil a luta do artista plástico.

   Mas ela nunca imaginaria que aspiração idêntica a sua – um simples apartamento de classe média - estaria nos planos de alguém acostumada a frequentar palácios e hotéis de luxo, participar de banquetes e homenagens faustosas, de recepções dignas de reis e reuniões do G20. Que tal coincidência de destinos ela viesse a partilhar com uma liderança capaz de mobilizar a humanidade inteira, discursando na ONU, demandada para palestras no mundo todo, e que é sempre aclamada pelo povo simples de seu país pelos lugares onde transita.

   Há também quem se refira a ela com qualificativos menos nobres. É resultado da cruzada midiática desqualificada (e, no caso dela, também misógina) que nos acostumamos a assistir nos jornais diários e nas redes sociais, dirigida contra os que ousaram destinar parte do orçamento público para segmentos menos favorecidos da população.

   Pois lá está ela agora, morando um andar acima do seu, num apartamento comum do bairro Tristeza. Não se pense que é dada a festas e recepções a vizinha ilustre. Ou que costuma receber a visita de figurões, líderes empresariais e outros próceres da República. Não. Leva uma vida discreta, quase anônima.

   Por vezes, Dora a vê sair, em trajes esportivos, se equilibrando numa bicicleta para prolongados exercícios nas ciclovias da zona sul. Outras vezes, flagra a vizinha ilustre a brincar com os netos no jardim, ou cruza com ela pela entrada do edifício, ocasiões em que a vizinha se mostra sempre amável e preocupada em afastar a incômoda camada de pompa que reveste nossos olhos plebeus quando nos vemos diante de ícones como ela. Prefere manter à distância os seguranças que sua condição lhe impõe, gosta de segurar o elevador e fazer embarcar nele o morador envergonhado ou arredio que se dirige para as escadarias ao vê-la, de trocar cumprimentos afáveis com as pessoas do seu entorno.

   Para Dora, no entanto, sempre lhe faltam palavras quando a encontra. Na hora agá, nunca consegue expressar tudo o que gostaria de dizer. Que tem um imenso respeito por ela, contar-lhe de sua solidariedade pela violência com que a retiraram do cargo para o qual foi eleita, de como a vê como um exemplo de dignidade, de como admira sua força e sua coragem. Que se espanta com a firmeza com que a vizinha ilustre defende as suas ideias, a mesma atitude firme que conseguiu sustentar ao longo de tantos anos, apesar de obrigada a partilhar espaços com a nata da escória nacional.

   Quando a oportunidade se abre, sempre falta à Dora dizer a coisa certa, come as sílabas, gagueja vergonhosamente diante desta mulher de fibra.

   Mas Dora é, também ela, uma mulher especial, que sabe ser calorosa e gentil. Não se deixa abater por singelas trapalhadas de elevador.

   Para fazer-lhe um merecido afago, tratou de reunir uma coleção de seus melhores trabalhos como ilustradora de livros infantis para dar de presente aos netos da moradora do apartamentinho da Tristeza, vizinho ao seu. Embalou-os com a consideração que lhe haviam despertado as inúmeras ações de governo adotadas pela vizinha ilustre. Abusou do talento artístico que a tornou bastante conhecida no meio editorial da cidade para tornar a embalagem do pacote uma atração à parte. Redigiu um bilhete carinhoso, expressando por ela sua admiração, e desejando que ela não esmorecesse na luta por dias melhores, para si e para seus netos, a quem endereçou os livrinhos. Oportunizou que ela os presenteasse, em sentido inverso, no dia das avós, atraindo para si, em maior dose, o carinho dos parentes.

   Quem recebeu o embrulho foi a secretária da vizinha ilustre, pois ela havia saído (era um daqueles dias em que ela se dedicava a exercitar-se com a bicicleta).

   No dia seguinte, Dora recebeu uma carta de agradecimento. A vizinha ilustre elogiava o trabalho da artista e a delicadeza de seu gesto, nesse tempo de grosserias e de gentileza escassa. Em letra de traços firmes e seguros, mostrava mais uma vez grandeza de caráter e atenção ao outro.

   O bom disso tudo foi saber que a vizinha ilustre, apesar das injúrias e trapaças de que foi vítima, ainda expressa - em texto de próprio punho - a crença num futuro melhor para todos nós.

   A vizinha está viva e forte. Não a destruíram. Segue se alimentando de seus afetos mais caros, de música e de livros, e da vida pacata de uma cidadã comum. E do carinho de seus admiradores, como a minha amiga Dora e muitos outros de nós.

   A propósito, Dora anda louca para topar com ela no elevador outra vez. Gostaria muito de abraçá-la, dar beijos estalados nas suas bochechas, consolá-la pela perda do ex-companheiro, mas entende suas reservas e sua discrição.

   Talvez um dia, quando forem mais sozinhas, se anime a convidá-la para tomar um chá.


                                                                          - Miguel da Costa Franco -

5 comentários:

  1. Não conheço Dora, mas votei na guerreira vizinha.

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  2. Me reconheço, em parte, na Dora. Lindo, delicado e macio o seu texto. Ainda estou arrepiada.

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  3. A Dora também é uma mulher forte, de fibra, solidária, com um coração maior do que o bairro.

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