Sentado no vaso do banheiro, nu,
os pés descalços aproveitando o frescor da cerâmica do piso, Ariovaldo fumava o
terceiro cigarro desde que havia se refugiado ali. Não conseguia dormir. Precisava
apagar da memória aquela noite ruim. Distraía-se acendendo e apagando o
isqueiro. A salvo das reprimendas pudicas de antes, que o haviam irritado muito,
tinha todo o tempo do mundo para olhar o corpo desnudo de Januária, esparramado
na cama rangedeira que mantinha nos fundos da oficina. Estava protegido pelo
sono pesado da outra. O que tinha à vista era uma segunda versão de Januária,
liberada de poses, cuidados e penteados, bem diferente da manequim de capa do
calendário de 97.
Ariovaldo não entendia grandes coisas
de fotografia. Tudo o que sabia do assunto vinha da coleção de imagens
femininas que decorava sua oficina mecânica, numa travessa do bairro
Medianeira. Na parede cega do galpão,
mantinha um imenso painel de mulheres em poses provocantes, que exibia desde
uma desbotada Brigitte Bardot e outras musas dos anos 60 até as atualíssimas
Gisele Bundchen, Adriana Lima, Alessandra Ambrósio e Kate Moss. Pin-ups, como lhe ensinara um cliente
metido a sebo. O termo em inglês se referia a um pôster com pessoas famosas e
atraentes. Pendurados nas paredes, o modo de nomear os cartazes se transferiu
para as moças. Gervásio, o chapeador, dizia que as tais pin-ups eram mulheres de plástico, sem alma. Mulher que não oferece
nada, só quer receber. Boa, mesmo, era Doroteia. Essa lhe havia dado quatro
filhotes e seguia dando de tudo, sem apelar para poses idiotas.
Mesmo entendendo pouco de luzes,
sombras e enquadramentos, Ariovaldo avaliou que a Januária desfalecida em sua
cama de solteirão, iluminada somente pela claridade indireta do banheiro, não
daria uma boa foto. Não só pela decadência física da modelo, que, na imagem de 97,
competia com vantagens sobre muitas atrizes famosas, mas também por que era insuficiente
a luz que se derramava do banheiro para o quarto sobre as curvas da pin-up da Azenha, a musa do bairro, agora
encharcada de rabos de galo e cerveja. Aquela luz de lanterna não permitiria ao
observador apreciar os vãos e desvãos de um corpo escultural, nem fazer
brilhar penugens sobre as peles arrepiadas ou besuntadas de óleo, como gostavam
os fotógrafos de revista.
Quando entrou com Januária no
puxadinho, o mecânico estava em êxtase. Jamais havia imaginado trazê-la até seu
quarto na oficina. Na verdade, Januária chamava-se Maria de
Lourdes e era atendente numa loja de acessórios elétricos. Tinha lá seus vinte
e poucos anos quando se intrometeu seminua nos sonhos de Ariovaldo, estampada numa
folhinha. A loja de autopeças do bicheiro Cinco Mil inventou de armar seu
próprio calendário, imitação do similar distribuído pela Pirelli, usando como manequins
as funcionárias jeitosas do comércio do bairro, mais algumas putas. Abdicando
de usar profissionais por economia, prometeram céus e terras para despirem de
seus guarda-pós e macacões de brim as caixeirinhas aspirantes a um futuro menos
ordinário.
Com ar de Marilyn Monroe, nádegas
proeminentes e lábios carnudos, De Lourdes – como a chamavam - ganhou a foto de
capa, encimando a sequência numérica do mês de janeiro. Assim, pegou o apelido
de Januária nas lojas e botecos da Azenha. A modelo que ilustrou o mês de fevereiro
trabalhava num cabaré do Cinco Mil na rua Florianópolis. Lucimar, da loja de
tapetes, virou Julinha, posando como devassa sobre uma mesa de sinuca na página
de julho. A frentista Zenaide, flagrada só de botas cavalgando a mangueira da
bomba do posto de combustíveis, transformou-se em Setembrina. Da Natália, musa
de dezembro, ninguém lembra o nome original. Acabou casando com um gerente de loja
do bairro, e sumiu. Márcia, das Casas Tigre, pelejou bastante para ilustrar o
calendário de março, enrolada numa jibóia branca. Márcia, março, como lhe
convinha. Dizem que lutou com suas armas mais úmidas e profundas. Algumas das
meninas, por influência dos filmes americanos que passavam no Shopping João
Pessoa, adotaram codinomes em inglês: April e May. Das outras, já não lembro:
talvez houvesse uma Júnia e também uma Augustina. Para sempre na memória de
todos, ficou apenas a gostosona da capa. As demais não resistiram ao
assédio sistemático, arrumaram empregos mais longe ou tomaram outros rumos.
Só a De Lourdes ficou pelo bairro. Transformou-se
na pin-up da Azenha, a Januária de
nós todos. Mecânicos, borracheiros e pintores babavam por ela. Eletricistas,
carregadores, frentistas e estofadores a provocavam com gracejos. Atendentes,
chapeadores e manobristas a convidavam para sair. Sozinhos ou acompanhados, aprendizes
se iniciavam na vida sexual pensando nela. Quem mais transitasse por ali dava
preferência à lojinha do Alaor, só para vê-la. Ou tudo isso misturado.
Apesar das promessas, sua carreira de modelo não decolou. Ficou restrita ao
calendário de 97. Transformada em alvo das cantadas de todo o universo masculino da Azenha, ela se manteve firme por ali. Não fugiu como as outras. Escolheu
para casar um funcionário chinfrim do Detran.
Por isso, era especial, lembrava Ariovaldo, acendendo e apagando o seu
isqueiro roxo. Ao contrário das outras musas que vizinhavam com ela coladas nas
paredes da zona, ela estava logo ali, ao alcance dos olhos, atendendo na auto-elétrica
do seu Alaor.
Vestia roupas grudadinhas ao corpo,
decotes largos como a avenida e fazia carinhas insinuantes. Se via que gostava
de acariciar os braços peludos dos clientes, atirava para lá e para cá os
cabelos sempre bem cuidados, mas, de verdade, de verdade, não dava corda para
ninguém. Era casada. E pronto. Januária era queixo duro, como se dizia por lá. Poderosa.
Na hora do vamos ver, soltava os cachorros nos mais abusados, pedia respeito, resistia
com gana e tapas aos avanços da moçada.
Mas ela simpatizava com o Ariovaldo. Desde
mocinha. Desde antes do calendário.
Meio tímido, ele não era tão grosseiro
e ostensivo como os outros. Seus chistes e cantadas, a que ele também não
renunciava, pareciam quase uma obrigação de macho. As brincadeiras tinham se estendido,
como um hábito, pelos últimos vinte anos. Já nem sabiam relacionar-se de outra
maneira. Para ele, a Januária, tão ciosa de seu recato e de sua paz conjugal, fazia
pequenas concessões. Ele elogiava, ela sorria. Ele insistia nos agrados, ela lambia
um dedo e tocava sua bochecha. Ele tornava a flertar, ela oferecia um café ou
piscava um olho. Ele convidava para sair ou tocava num braço nu, ela se escapava.
- Deixa disso, Ariovaldo, sou casada.
Após tantos anos de joguinhos, que tornavam
meio falsa a insistência de Ariovaldo e alegóricas as esquivas da pin-up, ela aceitou o convite para tomar
umas cervejas com ele no bar do Bigode. Sexta-feira, depois do expediente. Ele esqueceu
sobre o balcão os fusíveis que tinha comprado e quase atravessou a vitrine ao
sair da loja do seu Alaor. O velho perguntou se ele estava borracho.
Somente no boteco, trago vai, trago
vem, ficou sabendo dos chifres e do divórcio. O moço do Detran tinha pisado na
bola e a pin-up estava sozinha há um
ano. Depois de mais algumas cervejas, ela admitiu estar cansada da solidão e arrependida
por ter se resguardado tanto dos assédios, agora bem mais escassos.
- Boba que eu fui - ela lamentou, com
a voz engrolando.
Virou-se de frente para ele, como num
confessionário, e mostrou-lhe o dente faltando, brinde do marido na batalha
final.
- Isso dá pra chapear - disse o
mecânico.
Ela desdenhou do comentário dele. Exaltada,
empinou os peitos, imitando a pose da foto. Um seio estimulado pelo álcool
aproveitou a displicência de um botão e quase pulou da blusa para provocar Ariovaldo.
- Poucos se lembram agora da pin-up da Azenha - reclamou.
Ele correu-lhe os dedos pela nuca, em
consolo, e aproveitou o abandono da outra ao seu carinho para dar-lhe um beijo de
leve na bochecha que resguardava o molar faltante. Sentiu um estremecimento ao
tocar com seus lábios o cantinho daquela boca tão desejada. Ela se esquivou, voltando a ser a
Januária de sempre:
- Não abusa, Ariovaldo.
E pediu ao Bigode outro rabo de galo
e mais um pastel.
Ao contrário dos demais, Ariovaldo nunca
a tinha abandonado. Material elétrico, fosse barato ou caro, só comprava na
loja do seu Alaor. A foto de Januária, com seu baby-doll provocante, esteve
pendurada por anos na parede mais nobre de seu escritório. Mais adiante, ele a removeu dali e a levou
para decorar o quartinho que mantinha atrás da oficina, querendo alegrar as
suas noites de tédio e dar mais privacidade para as suas homenagens. O certo é
que ela estivera na mira dos seus olhos, num lugar ou noutro, desde dezembro de
96, quando ganhou de presente o calendário com as moças do bairro. A pin-up da Azenha era um fetiche seu. No
imaginário do mecânico, tornava mais humanas e reais todas as outras modelos, que
ele jamais pudera ver atendendo no balcão ou servindo um cafezinho. Afinal,
elas posavam sempre sobre lençóis que jamais tocaria, ou aninhadas entre feras
e elefantes na África, nas areias brancas do Caribe, em clubes de golfe ou
mansões de cinema, em carrões espalhafatosos ou motocicletas que nem havia no
Brasil. Nunca em Cidreira ou Tramandaí, no zoológico de Sapucaia ou deitadas junto
ao espelho d’água da Redenção.
Pelas revistas de fofocas e pela tevê,
ficava sabendo da vida e dos percalços das atrizes e manequins do seu painel da
mecânica. Para saber de Januária, bastava dar uma passadinha na auto-elétrica
do Alaor.
- Vai ser hoje o nosso chopinho,
Januária?
- Tô sem tempo – ela piscava.
- Quer conhecer o meu chatô, coisa
linda?
- Mal posso esperar, deve ser uma
maravilha.
Ela ria ou simulava espanto. Gostava
das brincadeiras dele. E dos seus braços peludos.
Às vezes, ele era mais incisivo:
- Larga esse polícia, que eu caso
contigo, Januária.
Ela cortava o assunto, ameaçadora:
- Se ele te ouve...
Ariovaldo empurrou a porta do
banheiro com o pé e o quarto se iluminou um pouco mais. Emergiu brilhante da
escuridão, sobre a prateleira com os tocos de vela para as faltas de luz, a
foto de Januária na parede, a pin-up
da Azenha, cuja visão tanto a tinha alterado ao entrar no quartinho da oficina.
- Parece um altar de macumba - ela
havia dito, antes de enlouquecer.
À beira de outra cama bem mais confortável
do que aquela, Januária posava de lado. Vestia um baby-doll transparente e
sapatos vermelhos. A coxa sólida e a nádega lisinha ocupavam o primeiro plano.
Os lábios em elipse e os olhos de gato do mato, ocultos pela franja à Farrah
Fawcett, ameaçavam devorar a câmera. Para além dos antebraços que os
comprimiam, os seios de mamilos globosos como feijões mulatinhos saltavam à dianteira
feito um estandarte libertino. Sobre a pele perfeita, sem marcas nem sinais, os
pelos loiros pareciam fios de areia iluminados pelo sol da manhã. Na mesa de
cabeceira, um copo de campari e cigarros. Numa gaveta aberta, cremes de beleza e
maços de cem dólares. O fotógrafo tinha feito um bom trabalho.
- Me custou bastante aquilo - ela confessou
no bar, quando já havia tomado o terceiro rab0 de galo. - De quem tu acha que
era aquela camona?
Ariovaldo baixou a cabeça. Não queria
confirmar desconfianças. Mas a pin-up
revivida e embriagada já não prestava atenção nele.
- E pra ficar na capa, então? O que
fizeram comigo eu não deixei ninguém fazer nunca mais. Nunquinha.
O cigarro queimou-lhe os dedos e ele
tratou de jogá-lo no vaso. Protegeu da brasa o membro murcho, que ela, no auge
do porre, depois de embrabecer, havia comparado ao caroço enrugado de um
pêssego. Às gargalhadas. Era de má bebida, a Januária. Mais ela desdenhava,
mais ele murchava.
O quarto ainda rescendia a vômito e
álcool, igual ao mau hálito que o tinha expulsado da cama estreita. No berço pobre
de Ariovaldo, a pinguça bufava. O desenrolar do encontro havia sido um
desastre.
O contorno escuro das pálpebras de
Januária estava meio borrado e o batom vermelho avançara para além da linha dos
lábios. Frisos negros desenhavam o trajeto das lágrimas sobre o rosto. Os
cabelos longos se haviam emaranhado com o furdunço da noite e a perna dobrada
deixava à mostra a perereca gorducha, sob o inacreditável bigodinho de Hitler a
que ela havia reduzido os seus pelos pubianos. Ariovaldo notou, sob o arco
inferior dos seios - pendentes para as laterais do corpo como pochetes vazias -,
uma cicatriz longa e sinuosa, razão, talvez, para que ela não o tivesse deixado
apalpá-los, beijá-los, nem nada.
Januária virou-se de lado e pôs em
foco o traseiro opulento, que havia alimentado fantasias desde a Cidade Baixa
até a Glória. Tinha ganhado volume e perdido em firmeza. Ariovaldo alçou a
vista para os dólares na fotografia de 97 e lembrou que Cinco Mil era um grande
filho da puta. Desviou o olhar outra vez para o corpo despido no quarto. A
perna da visitante livrou-se do lençol e a mesma coxa robusta ficou diante de
seus olhos, com vinte anos mais, sem retoques a ocultarem estrias e depressões,
marcas da vida e culotes.
Ariovaldo deu mais uma tragada no seu
cigarro. Havia entendido o porquê da insistência com a luz apagada. Comemorou
que o movimento de virada tinha levado para o escuro o bigodinho detestável,
que ela devia ter adotado para agradar ao ex-marido alemão.
Levantou-se do vaso com vagar. Não
queria correr o risco de acordá-la. Aproximou-se da cama, cuidando para não
pisar nos cacos do abajur que ela havia atirado ao chão.
- Essa daí não sou eu, seu bosta! –
ela tinha gritado.
No espelho manchado sobre a pia,
evitou fixar os olhos sobre a face cansada que ele devolvia. Recolheu os restos
do calendário espalhados sobre a louça rosa, jogou-os no vaso e puxou a
cordinha da descarga. Sem remorsos, despedia-se para sempre da pin-up da Azenha. Eu avisei, diria o
Gervásio, se assistisse ao sepultamento.
A loira remexeu-se na cama,
livrando-se do lençol barato. Ainda dormindo, murmurou um "vai te foder" bem
nítido e orientou para ele, outra vez, o bigodinho delator, tão mais negro que a cabeleira à
Farrah Fawcett. Ainda brigava com seus demônios.
Ariovaldo lavou o rosto e as mãos. O sábado,
para ele, era dia de trabalho, e este prometia ser longo, após a noite mal
dormida. No esforço de ajeitar os cabelos com seu pente banguela, achou que estava ficando
mais grisalho. Ele também já parecia mais com uma lanhada Kombi de carretos do
que com um carro de passeio. Entendeu que precisava livrar-se daquela velharia
de pente e do espelho borrado. Renovar o possível, pois os cabelos brancos ele
jamais pintaria. Não estava para falsificações. Pegou seu traje de mecânico,
pendurado no gancho atrás da porta, e vestiu. Sem cuecas, como preferia. Na
gaveta da mesinha de cabeceira, encontrou papel; no bolso do macacão, uma
caneta Bic. Deixou o bilhete sobre a tampa do vaso, pois ali era certo que ela
encontraria.
“Delurdes,
Fui comprar um pistão na Azenha. Na
volta, trago pão e neosaldina.
Ariovaldo”
Não sabia bem como escrever o nome
verdadeiro dela. Mas chamá-la de Januária era coisa do passado. Para amansar a
fera, desenhou, ao lado dele, um coraçãozinho. Talvez, ao acordar, ela nem se
lembrasse de nada.
Depois, acendeu um cigarro e saiu,
evitando ruídos. Pensou que aquele modelito nazistoide de pentelhos, ao seu
tempo, teria que ser negociado. Como aquele furor pela cachaça.
- Miguel da Costa Franco -
- Miguel da Costa Franco -
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