quinta-feira, 25 de maio de 2017

Sobre o direito à escolha



Texto publicado na Revista Sepé, nº 2, de maio/20 (https://revistasepe.art.br)



  O núcleo urbano de Jaquirana, com pouco mais de duas mil pessoas, fica escondido no centro de um triângulo imaginário formado por Bom Jesus, Cambará do Sul e São Francisco de Paula, todas elas cidadezinhas pouco habitadas e de pequena expressão econômica. Persiste até hoje naquelas paragens, os chamados Campos de Cima da Serra - região de coxilhas, campos grossos e matas de araucárias, sobre solos rasos e pedregosos -, um grande vazio populacional. 

   Nos anos setenta, isso era ainda mais agudo. Jaquirana era, então, um vilarejo de três ou quatro ruas, com no máximo duzentas casas de madeira, grande parte delas sem pintura nem luxos maiores do que um fogão à lenha e paredes com as juntas calafetadas de piche para enfrentar os dias gélidos, tão comuns por ali.

   Talvez, àquela época, os habitantes não passassem de mil, uma gente soturna e pouco acostumada com os forasteiros. Eram famílias de trabalhadores dos cultivos de Pinus elliotis que começavam a invadir os campos desmatados da região, de uns poucos mecânicos e ferreiros, de pequenos comerciantes de produtos agrícolas ou de gêneros de primeira necessidade. Também se haviam fixado por lá um que outro servidor da prefeitura, encarregado de reparar as estradas pedregosas e esburacadas, professoras primárias semi-analfabetas e um solitário agente de saúde local. Polícia não havia. Cada um que cuidasse de si. A televisão ainda não tinha chegado e um padre vinha aos domingos para rezar missa no pequeno salão de baile mandado construir por uma empresa para distrair seus funcionários.

   A aparência do povoado não era das melhores. Um casario sem pintura, com ruas lamacentas e pisoteadas por tropas de animais, espremidas por calçadas de tábuas brutas, quando havia. Uma dúzia de postes oferecia iluminação precária à noite. O vento gelado levantava poeira e aguçava solidões. Quem esperasse achar por lá uma praça, algum jardim florido, ou mesmo a sombra de uma árvore, não encontraria. Era um cenário nada aprazível.

  Ali desembarcamos rumo à fazenda do "tio" Amadeu num entardecer de julho, no pico do inverno, após quatro cansativas horas de viagem num ônibus pinga-pinga, que até um rio sem ponte teve de atravessar. Éramos seis magricelos cabeludos, vestindo roupas chamativas. As calças de cintura alta, com larguíssimas bocas-de-sino, arrastavam-se pelo chão. Carregávamos mochilas coloridas e instrumentos musicais.

   O ônibus deixou-nos na avenida central, como pedíramos, pois não havia rodoviária ou coisa parecida. Nosso encontro com o empregado do “tio” Amadeu, que nos buscaria, estava marcado simplesmente para Jaquirana. Uma rápida olhadela para o entorno já nos permitiu entender por quê: não havia como extraviar-se.

   Depositamos as mochilas junto à loja “A Preferida”, após verificarmos não haver nos arredores sequer uma marquise para nos proteger da noite que se avizinhava e do nevoeiro que começava a tingir tudo de cinza. Também não vimos botequins abertos ou qualquer simulacro de restaurante onde pudéssemos nos abrigar ou fazer um lanche. Nem mesmo um estabelecimento concorrente que justificasse o pretensioso nome da loja que havíamos escolhido para nos aquerenciar.

   Danton, recostado sobre a mochila, começou a soprar o Carnavalito em sua flautinha peruana (talvez tenha sido a coisa mais alegre que aconteceu em Jaquirana naquela década.) Belini acocorou-se sob o poncho multicolorido, à moda mexicana, para resguardar-se do frio. Samir deu de mão numa garrafa de conhaque que trouxera e Bebeto propôs um carteado, usando o violão como apoio para as cartas. Escova. Íamos jogar escova.

   Os primeiros olhares que se debruçaram sobre nós foram fugazes e caninos. Cinco vira-latas interromperam sua perseguição a uma esquálida cadelinha preta, que mantinha o rabo colado na traseira para proteger-se do assédio da matilha, e puseram em nós seus olhos de estranhamento, antes de retomarem, apressados, sua esperançosa empreitada rua afora.

   Depois dos cães, foi a vez das crianças que retornavam da escola. Uma a uma, foram se postando pelos arredores, olhos fixos em nós, num silêncio constrangedor. Devíamos ser muito estranhos. O maior sucesso fazia o cabelo black power de Danton, uma esfera negra de quase meio metro de diâmetro. Competia com a longa cabeleira de Bebeto, que beirava a cintura das calças. As pantalonas vermelhas de Samir provocavam visível polêmica entre os que apontavam o dedo para ele desde a dobra da esquina, mas os colares de Pedro Paulo também causavam incômodo. Amador, constrangido, escondeu no bolso a faixa larga de crochê que usava como tiara, pois desconfiou ser essa a causa de uns risinhos abafados. Quanto a mim, estava me lixando. O chapéu coco e o fraque do meu avô eram escolhas minhas. E ponto.

   Um cavaleiro que passava reduziu o trote de seu cavalo para poder avaliar aquela estranha tropilha com mais cuidado. Mal se dignou a bater o dedo na aba do chapéu, como cumprimento. Cabeças surgidas do nada despontavam entre uma casa e outra, inexpressivas. Vultos nos espiavam pelas frestas das janelas ou através das cortinas de tecido barato.

   A tarde foi se esvaindo, mas a criançada não arredava o pé dali. Bicos de luz - um deles em frente à “A Preferida” - foram se acendendo pela rua, deitando sobre ela pequenos círculos de uma claridade esmaecida e triste. Ficamos como no picadeiro esfumaçado de um circo. Não havia outro espetáculo, além da visão que representávamos. O jogo de escova tinha perdido a graça. Danton havia parado de soprar sua flauta e tudo caíra num silêncio profundo. Apenas adivinhávamos a fieira de olhos que nos observavam. Ninguém nos dirigiu uma palavra. Ninguém forçou algum aceno. Ninguém tentou uma aproximação.

   Em meio aquele ambiente pesado, a picape da fazenda acercou-se e fez uma meia-volta completa um pouco adiante de nós, iluminando com uma oscilante língua de luz a pequena platéia que nos avaliava. O motorista estacionou a camionete em frente à loja “A Preferida”. Bebeto identificou-se como o sobrinho de Amadeu Barbosa. Ganhou, por isso, lugar no banco da cabine, juntamente com Amador, que foi mais esperto. O restante de nós apinhou-se no compartimento de cargas, entre sacos de adubo, latas de pesticida e um botijão de gás. Por sorte, o conhaque havia ficado conosco.

   Quando a picape deu a partida rumo à fazenda, para uma hora mais de estrada, nevoeiro e frio cortante, a criançada despediu-se de sua apoplexia e saiu correndo atrás do carro, numa gritaria infernal. Jaquirana, enfim, falava. E atirava pedrinhas.

   A cidade foi desaparecendo num rastro de poeira e névoa avermelhada pelas luzes traseiras da picape. O vozerio da gurizada foi sumindo aos poucos. Imagino que todos retornaram para suas casas e o povoado foi devolvido aos grilos e ao mutismo habitual. Restaram, ao longe, os rosnados da cachorrada, incitando a luxúria. Ao que parecia, a desmilinguida cadela preta seguia lutando pelo nosso direito à escolha em meio à noite escura e fria.

                                                                           - Miguel da Costa Franco -

6 comentários: