Texto publicado no Pasquim Sul, em 20.11.86
Dona Eulália adorava
bichos. Aliás, só ela, não. Toda a família: o Neco, o Júnior e as três gurias.
A casa era um mini-zoológico: gato, cachorro, passarinho, coelho, papagaio, até
macaco. Havia também uns filhotinhos de jacaré que o Juninho tentava criar na
piscina. Sem falar nas araras.
Por isso, Dona Eulália
não relutara em aceitar mais um na tropa quando a Fafá lhe oferecera o afegan.
- Pode mandar o bicho
amanhã mesmo, Fafá.
E veio: grandalhão mas
elegante, uma graça. Tinha o pelo comprido e liso, num tom
castanho-avermelhado., o focinho e as patas longas. Cachorro de butique.
- E o nomezinho dele? -
perguntou Dona Eulália, exultante com o presente da amiga.
A empregada da Fafá, que
viera trazê-lo, estendeu-lhe uma carta:
- Taí nesse envelope.
Tudinho: nome, sobrenome, aniversário...
Abriu-o: pedigree,
registro, essas coisas. No espaço para o nome, leu:
- Havensbruck of
Mitendorff!
- Quê? - fez a outra. -
Acho que não. As crianças chamavam ele de Sujeira.
- Sujeira? - espantou-se
a nova dona. - Nome gozado.
- É, Sujeira.
- ...
- Bom, é isso, vou indo.
- Lembranças para a Fafá.
O Sujeira sentiu-se logo
em casa. Dona Eulália brincou um pouco com ele e depois deixou-o explorar o pátio,
que era grande, o jardim, a piscina, tudo. Voltou então às costuras e ficou a
ouvir a gritaria alegre das crianças. Amigona a Fafá, pensou.
O Neco acordou da sesta e
vinha entrando na sala quando Dona Eulália derrubou a caixinha de linhas e
agulhas. Puseram-se os dois de quatro a juntar os carretéis. Imediatamente,
entrou o Sujeira flechado e crã na Dona Eulália. O Neco, enciumado, correu-o a
pontapés, depois de retirá-lo a custo de cima da mulher.
- Cusco sem-vergonha!
- É o Sujeira, bem. É que
eu estou menstruada, sabe como é, os animais sentem...
- Bodosinho tarado!
O Neco saiu brabo e foi
lavar o carro. Esguicha água daqui, limpa de lá, abaixou-se para esfregar o aro
do pneu. Em dois segundos, veio o Sujeira e encestou o Neco.
A casa virou um inferno.
Bunda para cima o Sujeira não perdoava. Foi pegar o chinelo embaixo da cama:
pimba. Plantar mudinha no jardim: ugh. Buscar o carrinho embaixo do sofá: crã.
Uma semana e o terror
estava instaurado. Até a faxineira tinha se ido embora indignada. O cachorro
era completamente tarado.
- Pai, pega ali pra mim?
- Então fecha a porta!
Pois morava na casa ao
lado uma viúva com a filha. A velha tomou-se de encantos pelo afegan e volta e
meia pendurava-se na cerca a namorá-lo. Tanto eleogiou, tanto elogiou, que acabou
encorajando Dona Eulália a oferecer-lhe o desgraçado.:
- Se quiseres é teu,
Maria. O Neco já anda por aqui com a bicharada da casa, diz especialmente que
há cachorros demais.
A vizinha delirou. E eles
se livraram do Sujeira.
Passados uns quinze dias,
o Júnior chegou anunciando tê-lo visto uns dois quarteirões acima, com uma
cachorrada vadia, seguindo uma cadelinha preta.
Dona Eulália não se
conteve e sondou a vizinha:
- E o Sujeira, Maria,
como está?
- Pois olha, Eulália, dei
para o seu Chico, do Armazém Progresso, lá da esquina...
E completou, maliciosa,
olhos enviesados, mãos à cintura:
- Credo! Aquele danado
até parecia gente!
- Miguel da Costa Franco -
- Miguel da Costa Franco -
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