segunda-feira, 29 de março de 2010

Sujeira


Texto publicado no Pasquim Sul, em 20.11.86


Dona Eulália adorava bichos. Aliás, só ela, não. Toda a família: o Neco, o Júnior e as três gurias. A casa era um mini-zoológico: gato, cachorro, passarinho, coelho, papagaio, até macaco. Havia também uns filhotinhos de jacaré que o Juninho tentava criar na piscina. Sem falar nas araras.
Por isso, Dona Eulália não relutara em aceitar mais um na tropa quando a Fafá lhe oferecera o afegan.
- Pode mandar o bicho amanhã mesmo, Fafá.
E veio: grandalhão mas elegante, uma graça. Tinha o pelo comprido e liso, num tom castanho-avermelhado., o focinho e as patas longas. Cachorro de butique.
- E o nomezinho dele? - perguntou Dona Eulália, exultante com o presente da amiga.
A empregada da Fafá, que viera trazê-lo, estendeu-lhe uma carta:
- Taí nesse envelope. Tudinho: nome, sobrenome, aniversário...
Abriu-o: pedigree, registro, essas coisas. No espaço para o nome, leu:
- Havensbruck of Mitendorff!
- Quê? - fez a outra. - Acho que não. As crianças chamavam ele de Sujeira.
- Sujeira? - espantou-se a nova dona. - Nome gozado.
- É, Sujeira.
- ...
- Bom, é isso, vou indo.
- Lembranças para a Fafá.
O Sujeira sentiu-se logo em casa. Dona Eulália brincou um pouco com ele e depois deixou-o explorar o pátio, que era grande, o jardim, a piscina, tudo. Voltou então às costuras e ficou a ouvir a gritaria alegre das crianças. Amigona a Fafá, pensou.
O Neco acordou da sesta e vinha entrando na sala quando Dona Eulália derrubou a caixinha de linhas e agulhas. Puseram-se os dois de quatro a juntar os carretéis. Imediatamente, entrou o Sujeira flechado e crã na Dona Eulália. O Neco, enciumado, correu-o a pontapés, depois de retirá-lo a custo de cima da mulher.
- Cusco sem-vergonha!
- É o Sujeira, bem. É que eu estou menstruada, sabe como é, os animais sentem...
- Bodosinho tarado!
O Neco saiu brabo e foi lavar o carro. Esguicha água daqui, limpa de lá, abaixou-se para esfregar o aro do pneu. Em dois segundos, veio o Sujeira e encestou o Neco.
A casa virou um inferno. Bunda para cima o Sujeira não perdoava. Foi pegar o chinelo embaixo da cama: pimba. Plantar mudinha no jardim: ugh. Buscar o carrinho embaixo do sofá: crã.
Uma semana e o terror estava instaurado. Até a faxineira tinha se ido embora indignada. O cachorro era completamente tarado.
- Pai, pega ali pra mim?
- Então fecha a porta!
Pois morava na casa ao lado uma viúva com a filha. A velha tomou-se de encantos pelo afegan e volta e meia pendurava-se na cerca a namorá-lo. Tanto eleogiou, tanto elogiou, que acabou encorajando Dona Eulália a oferecer-lhe o desgraçado.:
- Se quiseres é teu, Maria. O Neco já anda por aqui com a bicharada da casa, diz especialmente que há cachorros demais.
A vizinha delirou. E eles se livraram do Sujeira.
Passados uns quinze dias, o Júnior chegou anunciando tê-lo visto uns dois quarteirões acima, com uma cachorrada vadia, seguindo uma cadelinha preta.
Dona Eulália não se conteve e sondou a vizinha:
- E o Sujeira, Maria, como está?
- Pois olha, Eulália, dei para o seu Chico, do Armazém Progresso, lá da esquina...
E completou, maliciosa, olhos enviesados, mãos à cintura:
- Credo! Aquele danado até parecia gente!

                                                                             - Miguel da Costa Franco -




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