Texto publicado no Pasquim Sul, em 05.02.87
Ele era uma presença
constante nos pensamentos de Flávia. Para dormir, ela acendia a luz do
corredor, de modo a poder vê-lo aproximar-se sorrateiro ou
espiar misterioso desde a porta do quarto ou dentre os trajes no cabide. Nunca
chegara a encará-lo. Mas tinha certeza de que ele a esperava no escuro da cozinha
ou detrás da coluna, no jardim. Distinguia seus contornos na aura que restava
colada como véu aos seus esconderijos temporários, após suas ágeis escapadas.
Escapadas, não. Ele não fugia. Quem o fazia era ela. Apenas uma vez tentara
alcançá-lo. Mas a deteve o barulho de ossos batendo que vinha da despensa, de
onde ele a espreitava. Sentia o esvoaçar de seus panos pelos corredores da
casa. Percebia-o por trás da cortina do box, quando se banhava à noite.
Eletrizavam-lhe os cabelos as setas pontudas de seu olhar escuso.
Por um tempo, chamara-o
apenas de ele. Depois, batizara-o de Rauard, pensando em exorcizá-lo pela
familiaridade. Por vezes, falava com ele, dizia-lhe palavrões, que se fosse, se
sumisse, se fodesse, mas ele estava sempre ali, por detrás de seus ombros,
exatamente no extremo limite de sua visão aterrada. Os amigos tentavam
convencê-la de sua paranoia, que se tratasse, deixasse de medos infantis,
crescesse, porra. Mas era inútil. Percebia seu hálito entre os cheiros do
jardim, o perfume de loção barata misturando-se ao fumacear das panelas, um
naco de franja sumindo pela porta ou plantas balançando quando por certo não
poderiam.
A mãe convidou-a a voltar
para casa, tão novinha era ela para morar sozinha, tanto bandido por aí, mas
ela pensou "tá doida", e agradeceu, alegando que ele já a visitava quando ela
morava lá.
Um dia encontrou-o nas
escadarias do prédio. Nunca o vira, é verdade, mas tinha certeza de que era
ele. Aqueles olhos densos. O andar deslizante. Recuou. Tentou fugir mais uma
vez, mas lembrou-se de que chaveara a porta do edifício. O Rauard a olhava
estranhamente, não sumira nem recuara, avançava lentamente, timidamente até.
Ela se viu encurralada pela primeira vez naqueles vinte anos de convivência:
contra a porta cerrada do prédio. As chaves, onde estariam? Ele aproximou-se,
ela tremia. Estendeu a mão molenga para ela, que fixara o teto com olhos turvos
de terror. A mão suspensa no ar, ele balbuciou:
- O-o-oi-i! Mu-muito
prazer. Meu nome é...
- RAUARD! - berrou ela,
histérica, aquele sopro de voz gelando-lhe os tornozelos.
- Ro-Romildo! -
completou, enrubescendo. - Po-Posso ajudá-la?
- Me deixa em paz, vive
me espionando, vê se te toca!
Ele deu mais um passo e
ela pôde sentir seu aterrador perfume de floresta, sua calma de jazigo, pôde ouvir
gemer a articulação de seu fêmur. Pensou que se derretia, mas era apenas a
urina empapando-lhe as meias de náilon.
- O que você quer, por
que não vai embora? - perguntou em desespero.
- Se ao menos você
livrasse a porta... - disse ele, com a voz sumida.
Ela escorregou rente à
parede do corredor, dando-lhe acesso à saída.
- A cha-chave... - pediu
ele, sestroso, enquanto a via disparar escada acima.
- Moça, a chave... -
ouviu-o berrar quando trancava a porta do apartamento. Ficou um tempo colada à
parede do hall ouvindo o próprio coração. Até pressentir que a observavam.
Voltou-se e ainda pôde perceber a carícia gelada do ar em movimento.
Arrepiou-se toda.
Romildo não era Rauard.
- Miguel da Costa Franco -
- Miguel da Costa Franco -
Nenhum comentário:
Postar um comentário