segunda-feira, 29 de março de 2010

Até quando a poda dos ligustros?


Texto publicado no Correio do Povo - caderno Letras e Livros, em 12.03.83, e na antologia "As melhores crônicas do 5º Concurso Sérgio Porto", onde foi distinguido com o 2º lugar 


A poda dos ligustros que cercam a praça sempre marcou a proximidade do inverno. Todos os anos, um neurótico jardineiro municipal transforma dezenas de árvores, com frondosas e alegres copas, em estranhos cubos desfolhados. Despersonalizadas e ofendidas, as plantas escondem de nós a beleza de seu viço até a próxima primavera. Aceito o protesto do arvoredo, embora saiba que ele não se dirige a mim. Por meu turno, satisfaço-me em saber que neste ano o frio chegou antes do desbaste da galharia. Surpreendido pelo desrespeito deste outono fujão, o jardineiro roeu todas as suas unhas antes de poder roer a beleza da praça. É um consolo, embora não conserte esta indisfarçável teimosia do homem em querer subjugar a natureza; em tentar subvertê-la em respeito aos seus menores caprichos, travestidos de importância e interesse.
O cinzento toma conta das ruas, outrora salpicadas pelo colorido das roupas e das faces suarentas. O cheiro irritante das naftalinas empesta as lojas e repartições públicas, invade edifícios, supermercados e bares. São os jaquetões e as japonas, os sobretudos, palas, ponchos e "campeiras", todos abandonando os armários e baús e descolorindo a cidade. Os homens uniformizam-se e as ruas inundam-se de marrom, marinho e preto. Cores frias para aquecer homens frios nos dias gélidos deste inverno precoce.
Bonés, tocas e chapéus cobrem carecas e cabeleiras, indiscriminadamente. Mãos nos bolsos, crispadas, narizes vermelhos, fumegantes bocas de lábios partidos, joelhos trêmulos,... Assim o inverno nos domina. Muda nossos hábitos e nosso ânimo. A natureza golpeia-nos a cada esquina, com ventos gelados, carregados de rancor e umidade. As cerrações matinais tornam-nos apreensivos e humildes e as névoas do entardecer empurram-nos para a cela de nós mesmos, ensimesmados e tristes. Os ganidos do arvoredo, a balançar-se, falam de almas penadas e cemitérios. O véu branquicento das geadas asfixia nossas colheitas, na vã tentativa de dobrar-nos pela fome.
Mas o homem sobrevive e sai fortalecido da batalha. O castigo não diminui as suas forças nem seu ímpeto. Pelo contrário. É, agora, mais terrível do que antes. Imbatível! E a desforra nunca tarda. Rasgam-se coxilhas com arados e tratores, derrubam-se as matas e queimam-se os campos, envenenam-se os rios, córregos e lagos e dinamitam-se as montanhas. Empesta-se o ar, a terra e a água com a bestialidade do homem.
Mas ele que se cuide! A natureza em desacerto começa a perder o tino. E se antes contentava-se em mandar-nos julho e agosto, já hoje não se comove em chover fora de época, em secar fora de hora e apedrejar trigais maduros.
Cuidado! O revide vem aí! O inverno começou em maio. Até quando podaremos os ligustros?

                                                                             - Miguel da Costa Franco -

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