segunda-feira, 29 de março de 2010

Chuvaradas e chuvisqueiros


Crônica publicada no Correio do Povo, caderno Letras e Livros, em 30.04.83


Gosto que as garoas se abriguem nos meus ombros e escorram por meus braços. E que me encharquem os cabelos e rebrotem de minha pele como uma interminável cordilheira de arrepios. Assim, sinto de corpo inteiro o que me cerca. As chuvas brandas devolvem-me a calma que nos faz amar e forjar beleza nas coisas do dia-a-dia. Gosto de descer as avenidas, namorando as marcas dos pneus a se desmanchar em salpicos no asfalto molhado. E ver as luzes da cidade duplicando-se em reflexos nas lajotas das calçadas ou formando desenhos móveis sob as luminárias de mercúrio.
Trazem melancolia e saudade os chuvisqueiros. Organizam os pensamentos, lavam as dores e os medos.
Inseguros, os carros passam chiando sua potência, espirrando longas névoas de umidade. Os paralelepípedos vingam-se, sebentos, do passa-passa dos passantes. Rio sozinho nas passarelas públicas. E dá-me pena ver as gravuras tristes dos motoristas em sua molduras metálicas, o olhar ritmado pelo vaivém dos limpadores, insistindo em apagar dos para-brisas a causa do engarrafamento.
Poemas mal formados resolvem-se pouco a pouco. E vou desviando das poças e das lajes mal compostas, que respondem ao nosso pisoteio com cusparadas certeiras. Não descuido dos drenos das sacadas. (Sorrateiros, eles atiram pingos gelados por trás das golas das camisas). Às vezes, penso na florista cega do Chaplin. Ou em avassaladoras paixões surgidas num abrigo ocasional, instigadas mansamente pelo desvario do chuvisqueiro.
As chuvas torrenciais, prefiro vê-las de longe, com as mãos aquecidas pela cuia do mate, num mochinho de galpão. Ou tomando chocolate quente numa mesinha de bar, com toalha de xadrez miúdo e paredes forradas com madeira compensada. Fico admirando os relâmpagos e os raios e contando os segundos entre o clarão e o estrondo para descobrir onde caíram. Outras vezes, tento decifrar a conversalhada que escorre pelas calhas das casas velhas. Gosto das chuvaradas rápidas e firmes. Sem repetições. Choveu e fim. Nada de dilúvios ou cataclismas, que há muita gente pendurada pelos morros dessa cidade.
Mas poucos reagem como eu às choradeiras do tempo. Há quem se incomode com os aguaceiros, para alegria dos fabricantes de guarda-chuvas – esse impermeável morcego de varetas quebradiças que a gente esquece pelos bares e cinemas. São esses os que pisam nas pedras soltas dos passeios e tomam duchas barrentas nas esquinas. Um tênue chuvisco sempre engrossa quando eles saem às ruas.
Outros se divertem. Ora sacodem os galhos que se debruçam nos caminhos, fazendo dos abrigos um chuveiro improvisado, ora apontam o fio d’água que escorre do guarda-chuva para dentro do sapato do vizinho. Adoram entrar de capa plástica encharcada nos coletivos lotados ou nas lojas abarrotadas de curiosos. (Curiosos, sim, pois comprar já não é mais possível).
Há ainda quem se resfrie, há também os que se escondem, há os táxis, que se recolhem. Há sombrinhas pelo avesso nos golpes de ventania, há ladeiras enlameadas e vestidos que encolhem. Das roupas molhadas brotam nádegas e seios inesperados e pessoas escorregam na calçada do “Sulacap”. Descobrem-se goteiras no travesseiro ao lado e que era muito melhor não ter saído de alpargatas. Percebe-se que a gabardine nova e barata não era exatamente um autêntico impermeável dos filmes de detetive. Aparecem infiltrações nas paredes da cozinha e os cálculos mal feitos dos engenheiros derramam-se pelas avenidas.
Mas se descobre também o farfalhar das sarjetas apressadas e a candura dos arco-íris riscando o espaço gris. Torna-se fascinante a limpidez dos pingos sobre as folhas, a balançar-se, e estas tão mais verdes. Agita-se a inocência dos românticos em beijos ensopados. E me ponho a rir da indústria química: o inimitável perfume da terra molhada não se encontra nas farmácias.
Os aguaceiros são, para mim, como as repreensões pretensamente sérias. As garoas são como os amigos: pacientes companheiros de viagem. Mantenho-me em paz nas chuvaradas e chuviscos. A mim, não fazem mal.

                                                                             - Miguel da Costa Franco -

Um comentário:

  1. óóó pai, aprendeu direitinho a usar o blog hein! agora só falta eu me aposentar tb pra ter tempo de ler isso tudo.. beijão

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