Crônica publicada no Correio do Povo, caderno Letras e Livros, em 30.04.83
Gosto que as garoas se
abriguem nos meus ombros e escorram por meus braços. E que me encharquem os
cabelos e rebrotem de minha pele como uma interminável cordilheira de arrepios.
Assim, sinto de corpo inteiro o que me cerca. As chuvas brandas devolvem-me a
calma que nos faz amar e forjar beleza nas coisas do dia-a-dia. Gosto de descer
as avenidas, namorando as marcas dos pneus a se desmanchar em salpicos no
asfalto molhado. E ver as luzes da cidade duplicando-se em reflexos nas lajotas
das calçadas ou formando desenhos móveis sob as luminárias de mercúrio.
Trazem melancolia e
saudade os chuvisqueiros. Organizam os pensamentos, lavam as dores e os medos.
Inseguros, os carros
passam chiando sua potência, espirrando longas névoas de umidade. Os
paralelepípedos vingam-se, sebentos, do passa-passa dos passantes. Rio sozinho
nas passarelas públicas. E dá-me pena ver as gravuras tristes dos motoristas em
sua molduras metálicas, o olhar ritmado pelo vaivém dos limpadores, insistindo
em apagar dos para-brisas a causa do engarrafamento.
Poemas mal formados
resolvem-se pouco a pouco. E vou desviando das poças e das lajes mal compostas,
que respondem ao nosso pisoteio com cusparadas certeiras. Não descuido dos
drenos das sacadas. (Sorrateiros, eles atiram pingos gelados por trás das golas
das camisas). Às vezes, penso na florista cega do Chaplin. Ou em avassaladoras
paixões surgidas num abrigo ocasional, instigadas mansamente pelo desvario do
chuvisqueiro.
As chuvas torrenciais,
prefiro vê-las de longe, com as mãos aquecidas pela cuia do mate, num mochinho
de galpão. Ou tomando chocolate quente numa mesinha de bar, com toalha de
xadrez miúdo e paredes forradas com madeira compensada. Fico admirando os
relâmpagos e os raios e contando os segundos entre o clarão e o estrondo para
descobrir onde caíram. Outras vezes, tento decifrar a conversalhada que escorre
pelas calhas das casas velhas. Gosto das chuvaradas rápidas e firmes. Sem
repetições. Choveu e fim. Nada de dilúvios ou cataclismas, que há muita gente
pendurada pelos morros dessa cidade.
Mas poucos reagem como eu
às choradeiras do tempo. Há quem se incomode com os aguaceiros, para alegria
dos fabricantes de guarda-chuvas – esse impermeável morcego de varetas
quebradiças que a gente esquece pelos bares e cinemas. São esses os que pisam
nas pedras soltas dos passeios e tomam duchas barrentas nas esquinas. Um tênue
chuvisco sempre engrossa quando eles saem às ruas.
Outros se divertem. Ora
sacodem os galhos que se debruçam nos caminhos, fazendo dos abrigos um chuveiro
improvisado, ora apontam o fio d’água que escorre do guarda-chuva para dentro
do sapato do vizinho. Adoram entrar de capa plástica encharcada nos coletivos
lotados ou nas lojas abarrotadas de curiosos. (Curiosos, sim, pois comprar já
não é mais possível).
Há ainda quem se resfrie,
há também os que se escondem, há os táxis, que se recolhem. Há sombrinhas pelo
avesso nos golpes de ventania, há ladeiras enlameadas e vestidos que encolhem.
Das roupas molhadas brotam nádegas e seios inesperados e pessoas escorregam na
calçada do “Sulacap”. Descobrem-se goteiras no travesseiro ao lado e que era
muito melhor não ter saído de alpargatas. Percebe-se que a gabardine nova e
barata não era exatamente um autêntico impermeável dos filmes de detetive.
Aparecem infiltrações nas paredes da cozinha e os cálculos mal feitos dos
engenheiros derramam-se pelas avenidas.
Mas se descobre também o
farfalhar das sarjetas apressadas e a candura dos arco-íris riscando o espaço
gris. Torna-se fascinante a limpidez dos pingos sobre as folhas, a balançar-se,
e estas tão mais verdes. Agita-se a inocência dos românticos em beijos
ensopados. E me ponho a rir da indústria química: o inimitável perfume da terra
molhada não se encontra nas farmácias.
Os aguaceiros são, para
mim, como as repreensões pretensamente sérias. As garoas são como os amigos:
pacientes companheiros de viagem. Mantenho-me em paz nas chuvaradas e
chuviscos. A mim, não fazem mal.
- Miguel da Costa Franco -
- Miguel da Costa Franco -
óóó pai, aprendeu direitinho a usar o blog hein! agora só falta eu me aposentar tb pra ter tempo de ler isso tudo.. beijão
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