segunda-feira, 29 de março de 2010

Uma página do insólito romance entre a Laurinha e o Arnestor


Texto publicado no Pasquim Sul, em 07.01.87


A Laurinha debruçou-se no balcão da lancheria e pôs-se a pensar.
Quem era ele, afinal? Por que ia e vinha tanto, sumia e voltava, sempre a deixava só? Isso tudo a confundia: seu jeitão meio brega, a indiferença aparente. Além do mais, ele era tão machãozão, durão, bruto, mas ao mesmo tempo tão romântico e ingênuo. Será que gostava dela? Parecia que sim, mas como ter certeza? Lembrava ainda de sua última frase, ele era todo cheio de frases: se acordares e a saudade estiver contigo, dorme novamente e sonharás comigo. Então ela rira e ele soltara outra ainda melhor: segredo entre três, só matando dois, em tom de advertência, estavam se despedindo. E depois ele a beijara febrilmente e declarara com olhos furtivos e enevoados, o ar entre os rostos semi-colados rescendendo a sexo, o beijo é como o ferro elétrico: liga em cima, esquenta embaixo. E então se fora, a mãozona esfregando o desperto leopoldo, que era como ele chamava o tico, e ela ficara na maior tesão. O diabo é que depois ele não aparecera mais, merda. Agora estava ela ali, babaca, a sofrer por homem novamente. Merda de raça, essa, os homens! E droga de mulherzinha era ela que não se aguentava sozinha, sempre querendo a segurança ilusória de uma companhia. Ele, sim, parecia livre. Como daquela vez em que a mãe os pegara trepando e ele saíra com aquela ótima, que deixou a velha roxa: feliz foi Adão, que não teve sogra nem caminhão. Pensando bem, que tem a ver o caminhão? Talvez para rimar. Bem, está certo, um pouco foi grossura, mas essas coisas, nele, eu acho ótimas. Mas espera aí, houve outras vezes em que ele veio com esse papo de carro, caminhão, estrada. Quando se coheceram, ali no Luar, luar, ele lhe estendera uma cadeira e dissera se precisas de carinho, sobe aqui no mercedinho. E era isso mesmo que ela precisava àquela hora, já estava tarde e há meses não pintava nada interessante, e então ela topara e ele abrira um sorrisão por baixo daquela bigodeira espalhada e dissera seja bem-vinda mas limpe os pés. E esta fora apenas a primeira vez que ele a surpreendera. Houve ainda aquela vez em que ele lhe pegara os seios em pleno Vermelho23, enchera as mãos com eles, e ela reclamara e ele então soltara uma risadona de fazer virar-se todo o mundo e a tranquilizara, que isso é normal, bem, se seio fosse buzina, de noite ninguém dormia. Ou quando ela entrou em baixo astral, se achando feia e ele protestara, se me vires agarrado com mulher feia, aparta que é briga. Saudade desgraçada, essa! Onde anda esse cara? Sumiu há dias. Não se preocupa com ela? Não faz nada da vida? Será traficante ou algo assim?
Foi então que a pegaram por trás e quase a derrubaram da banqueta e ela pensou que eram aqueles punks de butique e já ia começar a putear quando sentiu o bafão de alho no pescoço e a voz agringalhada dele, vou rezar um terço para encontrar um meio de te levar para um quarto. E ela se derreteu toda mas arremeteu, brabona, onde é que tu andavas, seu bostão? E ele, então, caçoara dela, veio de novo com as frases prontas, aquela filosofia de almanaque que já lhe parecia tão familiar, não dirijo dormindo para não encontrar chorando quem me esperava sorrindo. E então lhe estendera o presente, que sarro!, uma camiseta branca com a conchinha da Shell no peito e Posto Serra Dourada escrito em arco. Uma gracinha, o Arnestor.
Daquela vez, saímos num caminhão, lembraria mais tarde. Ele tomou umas bolinhas azuis pois passara a noite anterior em claro e não se aguentava em pé. Sei lá onde arrumara o mercedão. Pura loucura.

                                                                             - Miguel da Costa Franco -

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