O
núcleo urbano de Jaquirana, com pouco mais de duas mil pessoas, fica escondido
no centro de um triângulo imaginário formado por Bom Jesus, Cambará do Sul e
São Francisco de Paula, todas elas cidadezinhas pouco habitadas e de pequena
expressão econômica. Persiste até hoje naquelas paragens, os chamados Campos de
Cima da Serra - região de coxilhas, campos grossos e matas de araucárias, sobre
solos rasos e pedregosos -, um grande vazio populacional.
Nos
anos setenta, isso era ainda mais agudo. Jaquirana era, então, um vilarejo de
três ou quatro ruas, com no máximo duzentas casas de madeira, grande parte
delas sem pintura nem luxos maiores do que um fogão à lenha e paredes com as
juntas calafetadas de piche para enfrentar os dias gélidos, tão comuns por ali.
Talvez,
àquela época, os habitantes não passassem de mil, uma gente soturna e pouco
acostumada com os forasteiros. Eram famílias de trabalhadores dos cultivos de Pinus elliotis que começavam a invadir os
campos desmatados da região, de uns poucos mecânicos
e ferreiros, de pequenos comerciantes de produtos agrícolas ou de gêneros de
primeira necessidade. Também se haviam fixado por lá um que outro servidor da
prefeitura, encarregado de reparar as estradas pedregosas e esburacadas, professoras
primárias semi-analfabetas e um solitário agente de saúde local. Polícia não havia.
Cada um que cuidasse de si. A televisão ainda não tinha chegado e um padre
vinha aos domingos para rezar missa no pequeno salão de baile mandado construir por uma empresa para distrair seus funcionários.
A
aparência do povoado não era das melhores. Um casario sem pintura, com ruas lamacentas
e pisoteadas por tropas de animais, espremidas por calçadas de tábuas brutas, quando
havia. Uma dúzia de postes oferecia iluminação precária à noite. O vento gelado
levantava poeira e aguçava solidões. Quem esperasse achar por lá uma praça,
algum jardim florido, ou mesmo a sombra de uma árvore, não encontraria. Era um
cenário nada aprazível.
Ali
desembarcamos rumo à fazenda do "tio" Amadeu num entardecer de julho, no pico
do inverno, após quatro cansativas horas de viagem num ônibus pinga-pinga, que
até um rio sem ponte teve de atravessar. Éramos seis magricelos cabeludos,
vestindo roupas chamativas. As calças de cintura alta, com larguíssimas
bocas-de-sino, arrastavam-se pelo chão. Carregávamos mochilas coloridas e
instrumentos musicais.
O
ônibus deixou-nos na avenida central, como pedíramos, pois não havia rodoviária
ou coisa parecida. Nosso encontro com o empregado do “tio” Amadeu, que nos
buscaria, estava marcado simplesmente para Jaquirana. Uma rápida olhadela para
o entorno já nos permitiu entender por quê: não havia como extraviar-se.
Depositamos
as mochilas junto à loja “A Preferida”, após verificarmos não haver nos
arredores sequer uma marquise para nos proteger da noite que se avizinhava e do
nevoeiro que começava a tingir tudo de cinza. Também não vimos botequins
abertos ou qualquer simulacro de restaurante onde pudéssemos nos abrigar ou
fazer um lanche. Nem mesmo um estabelecimento concorrente que justificasse o pretensioso
nome da loja que havíamos escolhido para nos aquerenciar.
Danton,
recostado sobre a mochila, começou a soprar o Carnavalito em sua flautinha peruana (talvez tenha sido a coisa
mais alegre que aconteceu em Jaquirana naquela década.) Belini acocorou-se sob
o poncho multicolorido, à moda mexicana, para resguardar-se do frio. Samir deu
de mão numa garrafa de conhaque que trouxera e Bebeto propôs um carteado,
usando o violão como apoio para as cartas. Escova. Íamos jogar escova.
Os
primeiros olhares que se debruçaram sobre nós foram fugazes e caninos. Cinco
vira-latas interromperam sua perseguição a uma esquálida cadelinha preta, que
mantinha o rabo colado na traseira para proteger-se do assédio da matilha, e
puseram em nós seus olhos de estranhamento, antes de retomarem, apressados, sua
esperançosa empreitada rua afora.
Depois
dos cães, foi a vez das crianças que retornavam da escola. Uma a uma, foram se
postando pelos arredores, olhos fixos em nós, num silêncio constrangedor. Devíamos
ser muito estranhos. O maior sucesso fazia o cabelo black power de Danton, uma esfera negra de quase meio metro de
diâmetro. Competia com a longa cabeleira de Bebeto, que beirava a cintura das
calças. As pantalonas vermelhas de Samir provocavam visível polêmica entre os
que apontavam o dedo para ele desde a dobra da esquina, mas os colares de Pedro
Paulo também causavam incômodo. Amador, constrangido, escondeu no bolso a faixa
larga de crochê que usava como tiara, pois desconfiou ser essa a causa de uns
risinhos abafados. Quanto a mim, estava me lixando. O chapéu coco e o fraque do
meu avô eram escolhas minhas. E ponto.
Um
cavaleiro que passava reduziu o trote de seu cavalo para poder avaliar aquela
estranha tropilha com mais cuidado. Mal se dignou a bater o dedo na aba do
chapéu, como cumprimento. Cabeças surgidas do nada despontavam entre uma casa e
outra, inexpressivas. Vultos nos espiavam pelas frestas das janelas ou através
das cortinas de tecido barato.
A tarde
foi se esvaindo, mas a criançada não arredava o pé dali. Bicos de luz - um
deles em frente à “A Preferida” - foram se acendendo pela rua, deitando sobre
ela pequenos círculos de uma claridade esmaecida e triste. Ficamos como no
picadeiro esfumaçado de um circo. Não havia outro espetáculo, além da visão que
representávamos. O jogo de escova tinha perdido a graça. Danton havia parado de
soprar sua flauta e tudo caíra num silêncio profundo. Apenas adivinhávamos a
fieira de olhos que nos observavam. Ninguém nos dirigiu uma palavra. Ninguém
forçou algum aceno. Ninguém tentou uma aproximação.
Em meio
aquele ambiente pesado, a picape da fazenda acercou-se e fez uma meia-volta completa
um pouco adiante de nós, iluminando com uma oscilante língua de luz a pequena platéia
que nos avaliava. O motorista estacionou a camionete em frente à loja “A
Preferida”. Bebeto identificou-se como o sobrinho de Amadeu Barbosa. Ganhou,
por isso, lugar no banco da cabine, juntamente com Amador, que foi mais esperto.
O restante de nós apinhou-se no compartimento de cargas, entre sacos de adubo, latas
de pesticida e um botijão de gás. Por sorte, o conhaque havia ficado conosco.
Quando
a picape deu a partida rumo à fazenda, para uma hora mais de estrada, nevoeiro
e frio cortante, a criançada despediu-se de sua apoplexia e saiu correndo atrás
do carro, numa gritaria infernal. Jaquirana, enfim, falava. E atirava
pedrinhas.
A
cidade foi desaparecendo num rastro de poeira e névoa avermelhada pelas luzes
traseiras da picape. O vozerio da gurizada foi sumindo aos poucos. Imagino que
todos retornaram para suas casas e o povoado foi devolvido aos grilos e ao
mutismo habitual. Restaram, ao longe, os rosnados da cachorrada, incitando a
luxúria. Ao que parecia, a desmilinguida cadela preta seguia lutando pelo nosso
direito à escolha em meio à noite escura e fria.
- Miguel da Costa Franco -
- Miguel da Costa Franco -
Que bom ter escolhido ler este texto!
ResponderExcluirDeu sorte.
ExcluirGostei, Mig!
ResponderExcluirAmoretti, seu anônimo, gracias!
ExcluirDelícia, Mig!
ResponderExcluirObrigado, Paim.
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