quinta-feira, 18 de maio de 2017

Sim, eu já fui à Bahia (uma carta ao seu Dorival)


   Sim, eu já fui à Bahia, seu Dorival.

   Já fui à Ribeira, ao Pelourinho, à Baixa do Sapateiro e ao Mercado Central. Assisti um mestre de capoeira repassando seus saberes ancestrais a um jovem discípulo, sob os coqueiros do Jardim de Alah. Também fui ao Campo Grande e ao Teatro Castro Alves para ver um show do Tom Zé. Tomei banho de mar junto ao Farol da Barra e varei todas as praias para além da Boca do Rio e Piatã.

   Segui os trios elétricos e os blocos de carnaval, e me encantei com os Filhos de Gandhi.

   Provei os acarajés do Rio Vermelho, longe da praia fedorenta de esgoto e sargaços. Fui ver os orixás plantados no Dique do Tororó e as lavadeiras na lagoa   do Abaeté, pertinho de Itapoã. Achei meio mórbida a saleta forrada de pernas, braços e outros cotocos, na Igreja do Bonfim. Visitei as catedrais douradas da cidade alta e o elevador Lacerda, o mosteiro do Carmo e a Ilha de Itaparica.

   Da arquitetura, me perdoe. É claro que tem coisas lindas, muitos prédios centenários, mas o que mais vi foram favelas, favelas, favelas, com espigões altos brotando do meio, como espinhas purulentas numa pele cor de tijolo.

   Gostei da confusão religiosa e do poder imenso do legado africano.

   Passei mal de tanto comer vatapá e preciso provar mais vezes o bendito caruru. Munguzá me apetece, se não tiver muito cravo. Adorei as cocadas e o bobó de camarão, o caldinho de sururu e a moqueca de peixe do tabuleiro da Yayá. Sofri também as inevitáveis diarreias após os acarajés de esquina.

   Tudo isso só em Salvador.

   Também já percorri o litoral, desde o sul até Sergipe, desfrutando a sombra alegre dos coqueirais e as praias lindas de mar verde. Passei três verões em Barra Grande, onde se pode ver o pôr do sol e o nascer da lua em simultâneo, em lados opostos, na Ponta do Mutá. Conheci a indústria química que matou Arembepe, paraíso da ripongada nos anos setenta. Mais além, a Praia do Forte, um símbolo na preservação da natureza. Acompanhei a ocupação exagerada e destrutiva do Morro de São Paulo, de Porto Seguro, Trancoso e Arraial da Ajuda. Vi plataformas de petróleo ou gás na Baía de Camamu.

   Já cruzei o mar tempestuoso desde a Ilha de Boipeba até a Bahia de Todos os Santos, a bordo de um saveiro daqueles dos romances de Jorge Amado.

   Também atravessei a Bahia de ponta a ponta, no sentido leste-oeste. Percorri mais de mil quilômetros de estradas. Fui do litoral ao agreste, do agreste ao sertão, do sertão às serras e chapadas, cruzei o rio São Francisco nas alturas de Bom Jardim da Lapa, capital da fé, seja lá o que isso seja. Comi carne de bode e macaxeira. Nadei junto às cachoeiras da Chapada Diamantina.

   Invadi o verde contínuo das cercanias de Barreiras, a fronteira agrícola mais linda e devastada que conheci. Uma planura imensa, sem um pé de árvore da mata original, apenas soja, soja, soja. As nuvens altíssimas davam ao céu maciçamente azul uma profundidade nunca vista.

   Essa travessia foi das viagens mais lindas que já fiz. Sim, eu já fui à Bahia, seu Dorival.

   Vi os jegues e os carregadores de coco. Os dendezeiros e os pescadores. As plantações de cacau em Valença e a opulência decadente de São Jorge dos Ilhéus. Os manguezais e as praias protegidas por recifes.  A molecada esperta e viril, nadando como peixes, soltando pipas, vendendo picolés caseiros.

   De tudo isto, o que mais gostei foi da gente simples que mora nesses lugares. Da negritude intensa e altiva, da malemolência e do gingado, de sua índole violentamente doce e cativante. Da beleza dos corpos, ora atléticos e esculturais, ora carnudos e dadivosos.

   Não gostei da elite branca. Salvam-se uns poucos exemplares. A maioria parece não se importar nem um pouco com a brutal diferença de oportunidades que os distancia dos demais. Vivem como gringos da Fordlândia, em seus condomínios cercados e restaurantes caros.

   Quando conheci a Bahia em 1979, seu Dorival, eu era um jovem esperançoso. Vinte aninhos, somente. Como todos os que me cercavam, queria ter vez e voz, acabar com a ditadura opressiva que abafava o país, fazer amor e poesia. E, naquele ano específico, queria ajudar a reerguer a União Nacional dos Estudantes. Embarquei no ônibus com a roupa do corpo e pouco dinheiro, pois só havia ido ao ponto de embarque da caravana estudantil me despedir de uma loira apaixonante. Resolvi, num repente de ousadia, ocupar um assento que sobrava no ônibus de excursão contratado pelo Diretório Acadêmico da faculdade que eu cursava. A viagem tinha lá seus perigos, eram tempos bicudos, houve algumas desistências.

   Lembro que a polícia fez de tudo para não chegarmos a Salvador: revistas, barreiras, desvios de rota. Na chegada, batedores fardados, em motocicletas, nos guiaram até o meio de uma imensa favela nos fundões de Amaralina. Coisa parecida com o que está fazendo a Polícia Federal com os que chegam à Curitiba para apoiar o depoimento do ex-presidente Lula contra seu inquisidor Sérgio Moro, neste emblemático dez de maio de 2017.

   Em 1979, o povo da favela sabia dos nossos bons propósitos, ninguém buliu conosco, como se diria por lá. Eu cogitei à época, na euforia revolucionária juvenil, que isso fosse um retrato da pura identificação entre dois pólos de oprimidos. Hoje avalio que nos safamos de um saque, em razão do medo imposto por nossos batedores. Quando eles nos abandonaram ali, ninguém ousou se aproximar, o ônibus deu meia-volta e nos escapulimos sem baixas.

   Ainda na viagem, minha inadequada calça de veludo, antecipando-se ao clima tropical de Salvador, rasgou de fora a fora na traseira. Colei o rasgão com a mesma fita crepe que usávamos para afixar nossos cartazes e estandartes. Nada nos segurava.

   Hospedamo-nos, a loira apaixonante e eu, numa casa de família. Deram-nos uma cama de casal, comida e indicações. Na saída, ganhamos calorosos abraços e um casaco de couro que um deles havia comprado uma vez que fora à Feira de Santana, a brutais e assustadores duzentos metros acima do nível do mar. Esperava um frio de matar e encontrou apenas uma brisa mais fresca. (Até hoje não tenho a menor ideia de quem seria aquela boa gente). O casaco tinha um elefante ridículo desenhado nas costas, e franjas nas mangas, à la Daniel Boone, personagem de um seriado americano da época. Presenteei-o a uma estudante de Direito que passava frio nas serras cariocas durante a viagem de volta.

   A Bahia, seu Dorival, é tudo isso para mim: um coquetel de cores, desejos, gentes, cheiros, paisagens, medos, gentilezas, juventude, desigualdade e lembranças.

                                                                              - Miguel da Costa Franco -

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