quinta-feira, 13 de março de 2014

Oooo-uuuun-í


 
Lucinha e Jairo estavam casados há sete anos. Para o poeta Vinicius de Moraes, cujos inúmeros casamentos nunca haviam chegado a tal marca, estaria o casal curtindo o que ele chamaria de suas bodas de tédio.
Foi por essa época – talvez uns seis meses antes - que Jairo observara em Lucinha um novo hábito: fazia sempre um ruído suave e afirmativo, traduzível para a escrita como “oooo-uuuun-í”, quando se sentia satisfeita após o jantar.
Como rotina, o casal sentava frente a frente para comer, com a farta miscelânea de comidas que costumava compor a mesa da família distribuída em potes de plástico, travessas ou panelas entre os dois. E, em geral, comiam em silêncio (os filhos preferiam comer junto à tevê, hábito que a dupla nunca conseguiu dissipar).
Vez ou outra trocavam comentários sobre os afazeres do dia. Ela lhe perguntava o que fizera à tarde, e ele respondia bobagens como “o de sempre”, ou “nada de especial” ou apenas dava de ombros, como quem diz “isso importa?”.
E assim ficavam os dois jantando silenciosamente até sobrevir o tal “oooo-uuuun-í”. Ela então se levantava, começava a recolher os pratos sujos, despejando os restos de comida na pequena lixeira sobre a pia, enquanto João guardava os potes na geladeira.
Para ele, o som emitido diariamente por Lucinha após a refeição representava uma espécie de final feliz. Como se ela demonstrasse satisfação por sentir-se farta de um bom manjar e, com aquele sibilo original, encerrasse em êxtase um momento particular de prazer.
Por vezes, nos dias em que estava meio irritado, parecia a Jairo que aquele “oooo-uuun-í” – semelhante ao ruído de um programa de seu computador – era, em verdade, a representação de uma enferrujada dobradiça de porta se fechando naquele estômago feminino já tão acostumado a sofrer gastrites recorrentes.
Mas preferia pensar na versão mais simpática, na qual o sibilo de Lucinha mostrava apenas prazer.  Lembrando do programa do computador, Jairo brincava com ela:
- Conectou?
Ela sorria, embora achasse a piada tão sem graça quanto repetitiva e enfadonha. Lucinha era um doce de pessoa. Todo o mundo dizia para Jairo: "Como conseguiste arrumar uma mulher tão boa?".
Por um lado, Jairo ficava feliz. Mas, por outro, percebia a maldade do comentário. Todos achavam que no fundo, no fundo, ele não a merecia. Tão casmurro! Tão bronco! Tão antissocial! E ela tão amistosa com todos, tão querida, tão atenciosa, tão... fofa! E com ele também, ora essa. Por isso ele tinha certeza que ela o amava.
- Ela me ama – respondia.
E seguiam seu caminho rumo à velhice ainda distante, mas irremediavelmente mais próxima a cada dia.
- Oooo-uuuun-í!
- Conectou?
Risada.
- Oooo-uuuun-í!
- Conectou?
Risada.
- Oooo-uuuun-í!
- Conectou?
Pequenos movimento de canto de boca.
- Oooo-uuuun-í!
- Conectou?
Rápida mirada para o teto.
- Oooo-uuuun-í!
- Conectou?
Longo suspiro de Lucinha.
- Jairo, você pode recolher tudo hoje? Preciso ir um instantinho lá dentro...
- Claro, Lucinha, deixa tudo aqui comigo.
Jairo tratou de arrumar a cozinha. Recolheu os pratos e os copos, colocou-os na máquina de lavar. Ouviu Lucinha cantando lá no quarto e ficou feliz: de longe, não desafinava muito. Distribuiu a comida em potes apropriados e guardou-os na geladeira. Passou a migalheira na toalha e, sem dar-se por satisfeito, sacudiu-a na janela. Lavou algumas panelas, acionou a máquina de lavar e, então, ouviu Lucinha dizer lá da sala:
- Tô saindo.
Ainda pôde ver Lucinha pelo vão da porta de saída, carregada de malas e mochilas. Desesperou-se. Para onde estava indo, assim, sem lhe dizer nada? Estava sendo abandonado? Não, não podia ser.
Jairo, coitado, sempre esperançoso...  Correu até ela, atrapalhou-se com a maçaneta – um dia teria que consertá-la, Lucinha já lhe pedira tantas vezes! – e então ribombou do outro lado da porta o mais sonoro “oooo-uuuun-í” que já ouvira. 
Depois, só o barulho das correias do elevador descendo.

                                                                             - Miguel da Costa Franco -

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