Cheguei à ilha, para morar, em 21 de abril
de 2004, exatos quarenta e quatro anos após o início de sua povoação massiva.
Era quase meio-dia e fazia um sol de rachar. O céu límpido e as nuvens de uma
verticalidade espantosa devolveram-me a consciência de pequenez que um ego
inflado pela perspectiva de ascensão profissional tentava apagar.
Havia conhecido a cidade vinte e tantos
anos antes e não guardava dela as melhores impressões. A visão ampla, desde a
janela do avião, permitiu verificar que o núcleo urbano crescera bastante neste
período. Embora ainda fosse perceptível o traçado de borboleta do projeto urbanístico
original, as habitações haviam se espalhado em todas as direções, tanto para
além do lago em forma de meia lua como para o lado oposto. Inúmeras aglomerações,
condomínios e bairros novos, uns poucos com espigões de altura considerável,
ocupavam a vista do observador privilegiado que eu era, a bordo de um avião, em
velocidade reduzida para o pouso.
Àquela época, a população da ilha já havia ultrapassado
em quatro vezes o imaginado inicialmente. Menos da metade era natural dali. Para
muitos, a ilha era só um lugar de passagem, e sempre haveria de sê-lo. Havia
uns poucos estrangeiros e uma maioria de pessoas vindas de todos os cantos do
país, especialmente das regiões nordeste e sudeste.
Na ilha, em si, os pobres circulavam apenas
durante o dia, ocupando os serviços menos cobiçados. À noite, a escassez de
transporte público e uma polícia truculenta se encarregavam de mantê-los
afastados, num proposital apartheid
rodo-ferroviário e militar.
De resto, os moradores, como regra, tinham
ocupações bem remuneradas frente à média nacional, muitos em posições de
destaque no serviço público ou nas grandes estatais do país, nas grandes
empresas, escritórios de advocacia e representação ou de intermediação
financeira, lobby e serviços em
geral. A ilha era um pequeno centro de poder, pois, o grande - o de verdade -, há
muito que morava nas grandes corporações.
Já para além da barreira que isolava a ilha
do resto do mundo, grassava uma pobreza aviltante, que se traduzia em ruas
poeirentas, com vegetação escassa, casas amontoadas e sem reboco, elevados
índices de criminalidade e violência, saúde precária e oportunidades reduzidas.
Vindo do outono do sul, a primeira surpresa
foi o vento morno que soprava na pista do aeroporto. Não sabia, então, que os
dias se repetiriam assim, de frescos a quentes, por toda a extensão dos anos,
com algumas raras noites frias que jamais exigiriam os blusões de lã, inevitáveis
na bagagem de um sulista.
De pronto, desconfiei da qualidade dos
serviços públicos. Havia duas filas de táxis à espera dos recém-chegados como
eu: uma, oficial, e outra, paralela, praticando tarifas bastante inferiores à
primeira. Era visível a animosidade e as disputas. Optei pela mais barata e,
ainda assim, paguei uma pequena fortuna para chegar ao meu destino, na ponta norte
da asa da borboleta, viajando num veículo em mau estado de conservação.
Minhas desconfianças iniciais ganharam
força com o passar dos dias. Ônibus insuficientes e com frequência imprevisível,
e uma única linha de metrô ainda em construção, abriam caminho para serviços
alternativos, à margem da lei. Vans piratas e veículos particulares se
digladiavam na caça a passageiros nas paradas dos coletivos, descumpriam, à
conveniência de seus motoristas e de seu faturamento, as rotas anunciadas e
ofereciam riscos diversos, de sequestros a acidentes. Três semanas de
transporte público foram suficientes para mim. Acabei providenciando um
automóvel para poder me deslocar pela ilha com segurança e agilidade, seguindo
a aspiração da maioria absoluta dos ilhéus.
Quando cheguei, já se prenunciava o período
da seca anual que, em breve, faria amarelecer todos os gramados e a vegetação
arbustiva. Apenas as árvores mais frondosas seguiriam em frente com seu verde
pálido e seu contorcionismo hidricamente orientado, até que as chuvas de
setembro as redimissem de seu calvário. Dentre uns parcos resquícios de grama
ressequida, a vermelhidão do solo desnudo, que pintava as meias dos caminhantes
como tinta inconveniente, brotaria por toda a ilha em extensas manchas
poeirentas e hostis. Nos longos meses de seca, aprendi a beber água a um ritmo ditado
pelo despertador.
Como a maior parte das paisagens
construídas pelo homem - já que muito do ambiente natural havia perdido espaço
para grandes núcleos habitacionais, ruas e avenidas -, o cenográfico ainda
parecia predominar sobre o espontâneo. Até as plantas espalhadas por todo o lado
tinham um quê de floricultura. Faltavam-lhes apenas os vasos para sustentá-las.
Imaginei, então, que a costumeira rebeldia dos vegetais e a crônica falta de
verbas públicas haveriam de subverter, no futuro, essa impressão tão marcante para
mim.
A mesma rebeldia que eu esperava viesse a
subverter aquela paisagem cheia de falcatruas não se associava à maior parte
dos seus moradores. O acesso a cargos públicos e a mamatas funcionais seria,
para todo o sempre, o sonho de estabilidade da maioria dos ilhéus ou dos migrantes
aventureiros. A arrogância, a pompa, o oportunismo e a desmedida competição, de
um lado, eram as mais visíveis contribuições humanas ao conjunto da obra. De
outro, a subserviência, o escapismo, o cinismo e a hipocrisia. Uma boa dose de
talento alimentava os dois lados, é forçoso admitir. Não fosse assim, o castelo
de cartas se desmancharia num toque.
Ateu que sou, sem qualquer vergonha de
sê-lo, lembro que reinava por lá uma religiosidade absurda e preconceituosa,
mas também iconoclasta e empreendedora: quem não se encaixava nas seitas
pré-existentes tratava de inventar logo outra para si.
A amplitude dos espaços e o clima ameno,
pouco sujeito a eventos imprevisíveis, favorecia a realização de festas ao ar
livre, mas as pessoas sumiam nos finais de semana. Havia um monte de bares com
cadeiras espalhadas pelas calçadas, nas áreas comerciais, e ótimos
restaurantes, de gastronomia variada. Difícil, sempre, era guardar na memória a
sua localização precisa numa cidade que, afora sua parcela inquietante de
monumentos e palácios singulares, mostrava nos bairros uma arquitetura
repetitiva e despersonalizada. Mais trabalhoso ainda era decifrar os seus
endereços, tão amigáveis quanto senhas de caixa eletrônico: SQS414, SGAN902,
CLS205, SHCGN710, SRTVS.
Com o tempo, adotei um mantra interior para
conseguir transitar incólume pelos variados ambientes da ilha, todos não muito diferentes entre si. Recitava para mim mesmo uma antiga canção de sucesso do
final dos anos 70: “Tudo é uma questão de manter a mente quieta, a espinha
ereta e o coração tranquilo.” Funcionou pelos quatro anos que fiquei por lá.
Guardo boas lembranças da natureza do entorno, com rios cristalinos e cachoeiras volumosas. De um velhinho chinês que ensinava, a quem se atrevesse, a fazer tai chi chuan no começo da manhã. De uma programação cultural tão variada quanto o era a matriz de seus habitantes. De um ar cosmopolita que lhe traziam as gentes de distintas procedências.
Guardo boas lembranças da natureza do entorno, com rios cristalinos e cachoeiras volumosas. De um velhinho chinês que ensinava, a quem se atrevesse, a fazer tai chi chuan no começo da manhã. De uma programação cultural tão variada quanto o era a matriz de seus habitantes. De um ar cosmopolita que lhe traziam as gentes de distintas procedências.
Fiz alguns bons amigos, que gente boa
sempre há em qualquer lugar. Mas sofri por solidões prolongadas e penosas, até
encontrar, bem longe dali, um amor transformador.
Quando me recordo da ilha e da vulgaridade
de seus luxos, a imagem maior que me invade será sempre a mesma da minha
chegada, em abril de 2004: imensas nuvens verticais, num céu profundo e azul,
avisando aos homens que por lá transitam de sua pequenez transcendental.
- Miguel da Costa Franco -
- Miguel da Costa Franco -
Miguel, não conhecia teus escritos, adorei este texto: forte, sensível, delicioso. Parabéns! Vou virar tua seguidora. Um grande beijo,
ResponderExcluirSonia Carbonell
Obrigado, Sônia. Fico feliz que gostaste. Abraço.
ExcluirExcelente, Miguel!
ResponderExcluirObrigado, mas quem é esse tal unknown?
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