sexta-feira, 7 de julho de 2017

Curvas e atalhos de Torquato Moreno


   Todos aqui na Vila Chica acham que ele é um perdedor. Dizem que Torquato Moreno foi para a capital tentar a sorte e voltou sem nada. Falam que se mandou de bolsos vazios, mas alegre e cheio de esperanças, e que voltou pelado, doente e de mal com a vida. É verdade. A cidade grande o atraiu como um banho de açude no verão. Diziam que lá se podia ser qualquer coisa. Tudo balela, ele viu depois, era apenas uma frase bonita. A lagoa estava cheia de sanguessugas.
   
   Quando agora ele diz cidade grande, depois de alguns anos por lá, não fala só das belezas e da variedade de coisas, do amontoado de edifícios e fábricas ou de avenidas iluminadas, mas também de formigueiros humanos e favelas esparramadas, dos perdidos e safados que brotam por todos os cantos, da poluição e da falta de esgotos e do reinado furioso das máquinas sobre as pessoas. Fala de sofrimentos e de carências, de gente apartada em bretes. Se refere à montoeira de relações miúdas e mesquinhas que se estabelece entre os homens acuados que habitam por lá.  Fala de enormes teias de exploração, que ninguém se junta para desatar.  

   - A cidade grande é para os ricos e para os sobreviventes.

   É o que ele diz agora.

   Na Vila Chica, só estudou até o terceiro ano primário. Depois, a escola fechou. Em casa, ninguém sabia ler. Só lhe ensinaram a cuidar das vacas e dos porcos, alimentar as galinhas, plantar mandioca e milho e semear capim. Matar gambás e correr tatu. Que empregos ele poderia disputar numa cidade grande? Agora já sabe: somente os piores. Com carteira assinada, não foi aceito nem para limpar fossas. Só ganhou uns trocados fazendo bicos.

   Tentou vender as porcarias da máfia dos camelôs e jamais conseguiu o bastante para pagar para eles o aluguel do rancho que dividia com uns nigerianos. Saiu fugido e fugido está. Na zona central, Torquato Moreno não pisará mais, até o final dos tempos. Ou se ferra.

   Escapando deles, foi contratado como porteiro avulso de uma boate suburbana, para auxiliar nos dias de pico. Escapou de morrer, por sorte. Um balaço cruzou, fora a fora, o vazio das suas costelas. Guarda uma marca redonda na barriga e outra igualzinha nas costas. Elas coçam, às vezes, para lembrá-lo do seu infortúnio.

   Carregou a bandeira de candidatos picaretas em campanhas eleitorais, segurou faixas nas esquinas como se fosse um poste, defendendo, a soldo, interesses estranhos e o consumo de bobagens ou safadezas. Para que serve um espelho retrovisor para computadores? Alguém leva fé em bíblias autografadas?  

   Suas pernas doem só de lembrar desses dias cansativos. Uma vez, exausto e faminto, desmaiou em pleno canteiro central do acesso norte, distribuindo   folhetos de um cabaré. Acordou com uma jamanta debruçada sobre ele, soltando fiu-fius de ar comprimido dos freios.

   Jardineiro, ele achou que poderia ser. Lá se foi, Torquato Moreno, carteira do trabalho no bolso, tentar emprego nas floriculturas. Mas o que sabia ele de filodendros e camélias, de begônias e orquídeas, de antúrios e parasitas? Fartou-se de misturar esterco, areia e terra preta, ganhando um quase nada por tarefa.

   Catou latinhas e vendeu papelão. Aparou gramados e matou morcegos, que lá tem à reviria.

   Sim, ele fracassou. Foi e voltou, e não juntou nenhum tostão furado. O maior sucesso que alcançou foi como varredor de rua, filiado a uma cooperativa cuja sede jamais conheceu e cujos sócios nunca tinham ouvido falar de uma assembléia. Ganhava quase, quase, o salário mínimo, e podia passar as noites na garagem dos ônibus velhos que, bem cedinho, o levavam, mal alimentado e encolhido de frio, para uma rua suja qualquer. E dá-lhe varrer! Banho, só com água de mangueira, mas lixo e sobras nunca faltavam.

   Amores, Torquato não conheceu. (Há, sim, quem os encontre por lá.) Pagou meia dúzia de pilas por algum alívio para o corpo, isso ele não pode negar.

   Pegou sarna, gonorreia e tuberculose, teve bronquite e churrios impressionantes. Estouraram varizes nas suas pernas, por trabalhar só de pé. Os piolhos infernizavam de coceira a raiz dos seus cabelos. Dormiu em cama de albergue e de hotel barato, em dormitório coletivo ou embaixo de viadutos, coberto com trapos. Enfrentou chuva e frio ou solaços de respeito.

   - A cidade e o tempo não deixam os miseráveis escolher o traje nem a loja - ele diz.

   Teve alegrias, também. Num dia que nunca vai esquecer, entrou na Arena do Grêmio para limpar a fuzarca de um show. Achou tudo uma lindeza, ainda que não fosse dia de jogo. Noutras tardes, assistiu as corridas de cavalo, empoleirado num andaime que ficava na murada da pista, no Hipódromo do Cristal. Se divertia, no mais, trocando ideias com a companheirada, fodida como ele. Nos dias de passe livre, viajava por todos os bairros. Tomava um ônibus para cá, outro para lá, e assim conheceu a cidade toda. Viu bairros grã-finos e malocais de dar medo, viu gente bonita e muito farrapo humano. Andou por jardins cuidadinhos e por charcos fedorentos. Conheceu palácios e palafitas. Para ele, a cidade grande é essa misturama de loucuras e extremos. Menos do pouco, mais do muito.

   O que dizem dele é verdade. Rolou pela vida, extraviou-se, quase morreu, trabalhou feito um cão, só recebeu migalhas. Passou por dor e desespero, por injustiças e desrespeito e recebeu mais promessas do que recompensas. Também   não encontrou alguém para dividir a má sorte. Em duas palavras, curto e grosso: se fodeu.

   Se envergonha? Ele não, que não é besta.

    Vergonha eu teria se desistisse de tentar – costuma dizer.

   Quando se foi, levava só esperanças. Voltou cheio de conhecimentos. O que perdeu foram as ilusões. Hoje sente de longe o cheiro dos exploradores, dos sem-vergonha. Aprendeu o viés das coisas. As curvas e os atalhos. Sabe que nem tudo o que se quer, se pode alcançar. Que cabe um céu entre a sabedoria e a força bruta. Que entre a santidade e a cretinice, muitas vezes, tem apenas um porém. Que trabalho e falcatrua se confundem a toda hora. Que o dinheiro que premia é o mesmo que corrompe. Que o bem e o mal vestem roupas parecidas.  Que bandidos também moram nos condomínios de gente bem e que as cracolândias, para muitos, são apenas locais de moradia. Confirmou que dignidade não se leva na   carteira. Não reconhece mérito algum nas molezas herdadas. Perdas e ganhos: aprendeu que disso é feita a trajetória da maioria. Ele, de sua parte, não teve nenhuma chance.

   Os outros é que o veem como um derrotado. Ri deles. Acha besteira. A eles, pergunta:

   – O que vale mais? Ilusão ou experiência? Esperança ou conhecimento?  Se atirar no sonho ou se afundar na mesmice?

   E ele mesmo responde:

   – Somos todos lutadores, alguns, como eu, meio desarmados. Que cada um faça a sua aposta e aponte o seu troféu. Eu não me arrependi. Voltei escolado.

   Para nada é um perdedor o tal Torquato Moreno. Também aprendeu na cidade grande a lidar melhor com a foice, com os porcos e com os tatus.

                                                                          – Miguel da Costa Franco  –
  

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