Todos
aqui na Vila Chica acham que ele é um perdedor. Dizem que Torquato Moreno foi
para a capital tentar a sorte e voltou sem nada. Falam que se mandou de bolsos
vazios, mas alegre e cheio de esperanças, e que voltou pelado, doente e de mal
com a vida. É verdade. A cidade grande o atraiu como um banho de açude no verão.
Diziam que lá se podia ser qualquer coisa. Tudo balela, ele viu depois, era
apenas uma frase bonita. A lagoa estava cheia de sanguessugas.
Quando agora
ele diz cidade grande, depois de alguns anos por lá, não fala só das belezas e
da variedade de coisas, do amontoado de edifícios e fábricas ou de avenidas
iluminadas, mas também de formigueiros humanos e favelas esparramadas, dos
perdidos e safados que brotam por todos os cantos, da poluição e da falta de esgotos
e do reinado furioso das máquinas sobre as pessoas. Fala de sofrimentos e de
carências, de gente apartada em bretes. Se refere à montoeira de relações miúdas
e mesquinhas que se estabelece entre os homens acuados que habitam por lá. Fala de enormes teias de exploração, que
ninguém se junta para desatar.
- A
cidade grande é para os ricos e para os sobreviventes.
É o que
ele diz agora.
Na Vila
Chica, só estudou até o terceiro ano primário. Depois, a escola fechou. Em
casa, ninguém sabia ler. Só lhe ensinaram a cuidar das vacas e dos porcos, alimentar
as galinhas, plantar mandioca e milho e semear capim. Matar gambás e correr
tatu. Que empregos ele poderia disputar numa cidade grande? Agora já sabe: somente
os piores. Com carteira assinada, não foi aceito nem para limpar fossas. Só ganhou
uns trocados fazendo bicos.
Tentou
vender as porcarias da máfia dos camelôs e jamais conseguiu o bastante para pagar
para eles o aluguel do rancho que dividia com uns nigerianos. Saiu fugido e
fugido está. Na zona central, Torquato Moreno não pisará mais, até o final dos
tempos. Ou se ferra.
Escapando
deles, foi contratado como porteiro avulso de uma boate suburbana, para auxiliar
nos dias de pico. Escapou de morrer, por sorte. Um balaço cruzou, fora a fora,
o vazio das suas costelas. Guarda uma marca redonda na barriga e outra
igualzinha nas costas. Elas coçam, às vezes, para lembrá-lo do seu infortúnio.
Carregou
a bandeira de candidatos picaretas em campanhas eleitorais, segurou faixas nas
esquinas como se fosse um poste, defendendo, a soldo, interesses estranhos e o
consumo de bobagens ou safadezas. Para que serve um espelho retrovisor para
computadores? Alguém leva fé em bíblias autografadas?
Suas pernas
doem só de lembrar desses dias cansativos. Uma vez, exausto e faminto, desmaiou
em pleno canteiro central do acesso norte, distribuindo folhetos de um cabaré.
Acordou com uma jamanta debruçada sobre ele, soltando fiu-fius de ar comprimido
dos freios.
Jardineiro, ele achou que poderia ser. Lá se foi, Torquato Moreno, carteira do trabalho no
bolso, tentar emprego nas floriculturas. Mas o que sabia ele de filodendros e
camélias, de begônias e orquídeas, de antúrios e parasitas? Fartou-se de
misturar esterco, areia e terra preta, ganhando um quase nada por tarefa.
Catou
latinhas e vendeu papelão. Aparou gramados e matou morcegos, que lá tem à reviria.
Sim, ele
fracassou. Foi e voltou, e não juntou nenhum tostão furado. O maior
sucesso que alcançou foi como varredor de rua, filiado a uma cooperativa cuja
sede jamais conheceu e cujos sócios nunca tinham ouvido falar de uma assembléia.
Ganhava quase, quase, o salário mínimo, e podia passar as noites na garagem dos
ônibus velhos que, bem cedinho, o levavam, mal alimentado e encolhido de frio,
para uma rua suja qualquer. E dá-lhe varrer! Banho, só com água de mangueira,
mas lixo e sobras nunca faltavam.
Amores,
Torquato não conheceu. (Há, sim, quem os encontre por lá.) Pagou meia dúzia de
pilas por algum alívio para o corpo, isso ele não pode negar.
Pegou
sarna, gonorreia e tuberculose, teve bronquite e churrios impressionantes. Estouraram
varizes nas suas pernas, por trabalhar só de pé. Os piolhos infernizavam de
coceira a raiz dos seus cabelos. Dormiu em cama de albergue e de hotel barato,
em dormitório coletivo ou embaixo de viadutos, coberto com trapos. Enfrentou
chuva e frio ou solaços de respeito.
- A
cidade e o tempo não deixam os miseráveis escolher o traje nem a loja - ele diz.
Teve
alegrias, também. Num dia que nunca vai esquecer, entrou na Arena do Grêmio para
limpar a fuzarca de um show. Achou tudo uma lindeza, ainda que não fosse dia de
jogo. Noutras tardes, assistiu as corridas de cavalo, empoleirado num andaime
que ficava na murada da pista, no Hipódromo do Cristal. Se divertia, no mais, trocando
ideias com a companheirada, fodida como ele. Nos dias de passe livre, viajava
por todos os bairros. Tomava um ônibus para cá, outro para lá, e assim conheceu
a cidade toda. Viu bairros grã-finos e malocais de dar medo, viu gente bonita e
muito farrapo humano. Andou por jardins cuidadinhos e por charcos fedorentos. Conheceu
palácios e palafitas. Para ele, a cidade grande é essa misturama de loucuras e
extremos. Menos do pouco, mais do muito.
O que
dizem dele é verdade. Rolou pela vida, extraviou-se, quase morreu, trabalhou
feito um cão, só recebeu migalhas. Passou por dor e desespero, por injustiças e
desrespeito e recebeu mais promessas do que recompensas. Também não encontrou
alguém para dividir a má sorte. Em duas palavras, curto e grosso: se fodeu.
Se
envergonha? Ele não, que não é besta.
– Vergonha eu teria se desistisse de tentar – costuma dizer.
Quando
se foi, levava só esperanças. Voltou cheio de conhecimentos. O que perdeu foram
as ilusões. Hoje sente de longe o cheiro dos exploradores, dos sem-vergonha.
Aprendeu o viés das coisas. As curvas e os atalhos. Sabe que nem tudo o que se
quer, se pode alcançar. Que cabe um céu entre a sabedoria e a força bruta. Que
entre a santidade e a cretinice, muitas vezes, tem apenas um porém. Que trabalho
e falcatrua se confundem a toda hora. Que o dinheiro que premia é o mesmo que
corrompe. Que o bem e o mal vestem roupas parecidas. Que bandidos também moram nos condomínios de gente
bem e que as cracolândias, para muitos, são apenas locais de moradia. Confirmou
que dignidade não se leva na carteira. Não reconhece mérito algum nas molezas
herdadas. Perdas e ganhos: aprendeu que disso é feita a trajetória da maioria. Ele,
de sua parte, não teve nenhuma chance.
Os
outros é que o veem como um derrotado. Ri deles. Acha besteira. A eles, pergunta:
– O que
vale mais? Ilusão ou experiência? Esperança ou conhecimento? Se atirar no sonho ou se afundar na mesmice?
E ele
mesmo responde:
– Somos
todos lutadores, alguns, como eu, meio desarmados. Que cada um faça a sua
aposta e aponte o seu troféu. Eu não me arrependi. Voltei escolado.
Para
nada é um perdedor o tal Torquato Moreno. Também aprendeu na cidade grande a
lidar melhor com a foice, com os porcos e com os tatus.
– Miguel da Costa Franco –
– Miguel da Costa Franco –
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