A cidade se
verticaliza velozmente. As indústrias migraram para o entorno. Condomínios
gradeados, ruas vazias, sombra de árvores e de espigões: em regra, a cidade é
assim. Gente nas calçadas é coisa das ruas centrais, do Bonfim, da Cidade Baixa
e dos subúrbios. Mas resta a zona sul, com seu casario espalhado, seu ar
interiorano e vadio: Assunção, Tristeza, Conceição, Jardim Isabel, Ipanema,
Guarujá, Belém Novo. Tem também a zona norte, ainda com casarios, mais populosa
e árida, com menos atrativos.
Da cidade açoriana,
restam apenas traços. A cidade alemã deixou alguns prédios de relevo. De resto,
também foi engolida pela renovação urbana. As obras da Copa de 2014, um dia,
serão terminadas, e as bicicletas pedem passagem segura na tranqueira
progressiva das vias.
Nossos parques seguem
lotados de crianças de apartamento, com autonomia de escassos vinte ou trinta metros.
A juventude tenta retomar terrenos perdidos para o medo e para o escuro da
noite com suas serenatas iluminadas. Artistas suam em bicas para catar migalhas
do suor alheio. Famílias aproveitam o sol, junto a desportistas de fim de semana
e vendedores de todo o tipo. Contemplativos, tradicionalistas, libertários, inocentes
úteis, amigos do alheio, uma variedade de gente divide os espaços públicos: batuca-se,
namora-se, brinca-se, reivindica-se, assalta-se, ocupa-se.
O costume do chimarrão
se preserva, seja pela manhã, seja pela tarde. O gauchismo, de alma ou de
almanaque, se concentra no parque Harmonia em setembro. Entre eles,
farroupilhas conservados no tempo como mantas de charque, revolucionários da
mesmice.
Jovens mulheres
ativistas mostram que não vieram ao mundo a passeio. Mexeu com uma, mexeu com
todas. É o seu lema. Enquanto As Batucas e o Bloco da Laje invadem espaços
masculinos, saudosistas de recentes intercâmbios com o exterior importam homenagens
a São Patrício, tanto para as ruas
chiques do vale do silicone – Padre Chagas e arredores - como para as outrora
transgressoras ruazinhas do Bonfim. O Berlim-Bonfim do Nei Lisboa, dos anos 80,
migrou, aos pedaços, para a Cidade Baixa e para a região central. E os velhos traillers de cachorro-quente ou cheeseburger perderam espaço para as
vans coreanas e para os food-trucks, como
o halloween quase venceu os
festejos de São João. Impávidos e estoicos,
seguem ativos o bar Ocidente e a Lancheria do Parque.
As classes emergentes
motorizadas invadiram as praias de Ipanema e arredores, com suas cores e seus
aparelhos de som. O Guaíba segue pouco recomendável para banhos, mas ótimo para
esportes náuticos e para a fotografia. A
qualquer tempo, o pôr do sol será lindo e variado.
O samba, o funk e o
pagode se espalham pelos guetos, de sul a norte, de leste a oeste. Mas nem todos
sabem disso, seguem sendo “coisa de negros”. O rock perdeu um pouco da força
que teve e o Auditório Araújo Vianna, agora, tem dono. A exógena música
sertaneja desafia os Fagundes, o Borghettinho e o Paixão Côrtes. Os cinemas de
rua migraram para os shoppings e os teatros perderam viço e orçamento. Os
órgãos de imprensa viraram panfletos. Perdemos o Scliar, o Érico e o Quintana,
mas ainda temos o Luis Fernando, o Santiago, a Zorávia e o Jorge Furtado, o
Unimúsica e a Orquestra Villa-lobos, o Teatro São Pedro e o Cine Guion. Brotou
das sombras, com ânimo e vigor, a Cinemateca Capitólio. O novíssimo Iberê, em bela
obra de Álvaro Siza, agora só abre aos finais de semana. Que fim levou a OSPA?
No primeiro escalão do
futebol nacional, ficou apenas o Grêmio. O estádio Beira-Rio avançou sobre o
leito da avenida, como antes havia se apropriado das margens do Guaíba, e
vielas estreitas e esburacadas ainda são o contorno da moderna Arena do Humaitá,
fruto de um negócio para lá de estranho.
Ainda se come bem no
quarto distrito. Na Floresta, os bons restaurantes minguaram. Muitos insistem. Experimentam-se
novidades gastronômicas nos bairros Moinhos de Vento e Auxiliadora. Também na Cidade
Baixa, Bonfim e Rio Branco.
Não sei bem de onde
surgiram tantos veganos e vegetarianos, mas a cidade ainda cheira,
ameaçadoramente, à carne assada nos domingos. E à descarga de automóveis
durante a semana. Nos dias de vento sul, relembramos, às vezes, nosso nefasto
passado borregardiano.
Nossos governos
instituídos têm qualidade bastante duvidosa e a água de beber, também. Há muito
ela deixou de ser inodora, insípida e incolor, como se definia nos livros
escolares do passado. Nossa democracia concentrou-se nos sopapos e abandonou os
ouvidos. Nas vilas populares, vingaram ameaçadores governos paralelos. Nos
copos, aportaram as cervejas artesanais.
As ruas mantêm-se, em
maioria, arborizadas, ainda que a vegetação tenha as copas esquálidas
esculpidas em V, à conveniência da rede elétrica. Ainda, assim, nos tingimos de
amarelo e roxo na primavera e temos boa sombra no verão.
Somos um povo bonito e
diverso. Tatuagens, muitas delas de aspecto vulgar, se espalharam por todos os recantos
corporais. A noite está cheia de pernas expostas, barbas estilizadas, músculos
e decotes, mas nós seguimos, como povo, engordando inapelavelmente.
A população cresce,
mas diminuem os espaços públicos e pipocam os cercados privados, com porteiros,
seguranças e comandas. O viaduto Otávio Rocha e as ruínas do Estádio Olímpico viraram
albergue de mendigos. Uma nova geração de meninos de rua acaba de nascer. O
celular é o melhor companheiro de muitos e a única coisa certa é que haverá um
malabarista nativo ou castelhano, em toda e qualquer sinaleira, em busca da
escassa solidariedade que resta.
O porto já nem é mais
porto, os barracões amarelos que tão bem retratavam a cidade estão perdendo sua
alegria e cais é palavra morta, à espera de rimas novas.
O melhor de tudo, por
aqui, era termos as quatro estações bem definidas. Havia um cíclico renovar-se,
em comunhão com a natureza. Esqueça. Estamos em julho, e a temperatura do dia
beira os 30°C. Fez muito frio no outono. Morremos de medo do calor do verão. O
que será da primavera?
Já não se sabe mais
quando rebrotaremos.
- Miguel da Costa Franco -
- Miguel da Costa Franco -
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