A falta de combustível forçou
Carlinhos e Eliana a cortarem a viagem e procurarem hotel. Havia uma greve de
caminhoneiros. Ou um estranho locaute.
Eliana afirmara que era mais um
movimento sem lideranças definidas, tão comuns no novo ambiente das redes
sociais e da ignorância política, onde massas tontas - sem saber bem o que
pedir -, esvoaçam para lá e para cá como acrobatas de circo, ora engordando os
bolsos de sempre, ora apoiando articulações desconhecidas.
À noite, alheios à política, jantaram
juntos, animaram-se com um bom vinho argentino, entre olhares gulosos e
oferecidos, num jogo de xadrez meticuloso e promissor.
Temos um bom álibi, ela sugeriu, com
sua retórica provocadora, não deixando claro se falava do trabalho ou de outras
tramóias.
Carlinhos não se deixou enganar.
Sabia que ela era uma mulher difícil, como se dizia no passado.
Dificílima.
Dito e feito. Mais uma vez despediram-se
no elevador, com beijos apertados e mãos insinuantes, mas sem convites explícitos
de parte a parte. Um aguardava o sinal do outro, que não veio. Ele desceu no
segundo andar, ela subiu para o terceiro.
Banharam-se os dois, cada um no seu
cantinho. Ele imaginou que poderia ter sido gostoso ensaboá-la e massagear seu
corpo alvo como a neve. Ela ensaiou ligar para o quarto dele quando saiu da
ducha, mas desligou antes que o ouvisse atender. Não se achava uma mulher difícil,
mas algumas coisas eram complicadas para ela.
Quando Carlinhos bateu à porta, Eliana
abriu-a, vestindo um sumário baby-doll
preto, que contrastava com sua pela clara. Mas, pudica, manteve o corpo
semi-oculto de olhares invasivos.
Ao longo da vida, ele havia aprendido
que um simples pijama de algodão pode esconder um erotismo furioso e
descabelado, ao passo que vestes provocantes podem guardar apenas timidez
e desejos sonegados. Precisaria submeter-se ao ritmo da colega que se
protegia do ataque difuso dos desejos escondida atrás da porta. Teria muitas
chances de reencontrá-la em situações confortáveis.
Estendeu-lhe o presente com que esperava
surpreendê-la: um livro de quadrinhos eróticos de Giovanna Casotto. Queria
estimulá-la a desfrutar de suas fantasias sexuais com menos sobressaltos.
O desenho é bom, as histórias são
meio clichê, advertiu.
Ela tomou o livro com curiosidade.
Folheou-o com interesse crescente e alguma lascívia. Por
fim, agradeceu, dando um sorrisinho maroto.
- Vou colocar na pilha - disse. -
Embaixo de uma revista que estou lendo sobre sistemas eleitorais, dos livros do
Jessé Souza e de uma novelinha chamada "Nada de novo no front".
Deu-lhe um beijinho na bochecha e fechou
a porta, sonegando de Carlinhos, mais uma vez, as ânsias que ele sabia existirem
por baixo daquele baby-doll
preto.
Nada de novo no front. Ele recebeu
aquilo como um balde de água fria. No mínimo, havia levado um tabefe.
Lembrou que as tais mulheres difíceis
costumavam casar virgens. Ou ficar solteironas. Teve ganas de alertá-la, mas se
refreou. Ele sabia que todos nós aprendemos mais com a vida e com nossos
tropeços. Nem sempre gostamos de ouvir conselhos.
Do lado de dentro, Eliana esperava - colada
à porta e abraçada ao livro -, uma segunda investida.
Carlinhos voltou para o seu quarto e ficou
imaginando se também ele, nos devaneios de Eliana, estaria colocado à
espera, em alguma espécie de pilha.
Pela janela do quarto, observou a
longa fila de automóveis que havia se formado no posto da esquina, aguardando para
abastecer. Pensou que seria prudente posicionar o carro na espera de modo a
seguirem viagem no dia seguinte. Mas ele odiava filas. Preferia sempre aguardar
pelos momentos mais propícios.
O universo lá de fora que esperasse. Sexo
e combustível moviam o mundo. E ambos haviam pedido uma trégua.
Ligou a tevê e atirou-se na cama, à
procura de notícias alentadoras sobre a greve dos caminhoneiros nos jornais da
noite. O governo interino anunciava redução de impostos e sessenta dias sem
aumentos no óleo diesel, mas a liderança difusa do movimento não garantia o fim
da paralisação.
Fez as contas, e achou que os
golpistas talvez estivessem preparando nova onda de protestos à boca da
eleição, após provocativo reajuste dos combustíveis, que incendiaria as ruas. Sessenta dias era também um prazo razoável
para aprovarem o projeto para eleições indiretas na vacância da Presidência.
Aí, teriam dois anos mais para seguir rifando o país, antes de devolvê-lo ao
seu povo.
O horizonte era confuso, o futuro
nada alvissareiro. De sua janela, já não dava mais para ver o final da fila de automóveis.
Resolveu tomar posição.
Lembrou que a chave do carro havia
ficado com Eliana.
Ergueu-se da cama, alisou os cabelos
em frente ao espelho de parede, escovou os dentes, colocou uma camisa limpa e
saiu do quarto.
Estava claro que não havia mais tempo
para protelações. Tinha um bom álibi.
- Miguel da Costa Franco -
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