quarta-feira, 30 de maio de 2018

Um bom álibi



A falta de combustível forçou Carlinhos e Eliana a cortarem a viagem e procurarem hotel. Havia uma greve de caminhoneiros. Ou um estranho locaute.

Eliana afirmara que era mais um movimento sem lideranças definidas, tão comuns no novo ambiente das redes sociais e da ignorância política, onde massas tontas - sem saber bem o que pedir -, esvoaçam para lá e para cá como acrobatas de circo, ora engordando os bolsos de sempre, ora apoiando articulações desconhecidas.

À noite, alheios à política, jantaram juntos, animaram-se com um bom vinho argentino, entre olhares gulosos e oferecidos, num jogo de xadrez meticuloso e promissor.

Temos um bom álibi, ela sugeriu, com sua retórica provocadora, não deixando claro se falava do trabalho ou de outras tramóias.

Carlinhos não se deixou enganar. Sabia que ela era uma mulher difícil, como se dizia no passado. Dificílima. 

Dito e feito. Mais uma vez despediram-se no elevador, com beijos apertados e mãos insinuantes, mas sem convites explícitos de parte a parte. Um aguardava o sinal do outro, que não veio. Ele desceu no segundo andar, ela subiu para o terceiro.

Banharam-se os dois, cada um no seu cantinho. Ele imaginou que poderia ter sido gostoso ensaboá-la e massagear seu corpo alvo como a neve. Ela ensaiou ligar para o quarto dele quando saiu da ducha, mas desligou antes que o ouvisse atender. Não se achava uma mulher difícil, mas algumas coisas eram complicadas para ela.

Quando Carlinhos bateu à porta, Eliana abriu-a, vestindo um sumário baby-doll preto, que contrastava com sua pela clara.  Mas, pudica, manteve o corpo semi-oculto de olhares invasivos.

Ao longo da vida, ele havia aprendido que um simples pijama de algodão pode esconder um erotismo furioso e descabelado, ao passo que vestes provocantes podem guardar apenas timidez e desejos sonegados. Precisaria submeter-se ao ritmo da colega que se protegia do ataque difuso dos desejos escondida atrás da porta. Teria muitas chances de reencontrá-la em situações confortáveis.

Estendeu-lhe o presente com que esperava surpreendê-la: um livro de quadrinhos eróticos de Giovanna Casotto. Queria estimulá-la a desfrutar de suas fantasias sexuais com menos sobressaltos.

O desenho é bom, as histórias são meio clichê, advertiu.

Ela tomou o livro com curiosidade. Folheou-o com interesse crescente e alguma lascívia. Por fim, agradeceu, dando um sorrisinho maroto.

- Vou colocar na pilha - disse. - Embaixo de uma revista que estou lendo sobre sistemas eleitorais, dos livros do Jessé Souza e de uma novelinha chamada "Nada de novo no front".

Deu-lhe um beijinho na bochecha e fechou a porta, sonegando de Carlinhos, mais uma vez, as ânsias que ele sabia existirem por baixo daquele baby-doll preto.

Nada de novo no front. Ele recebeu aquilo como um balde de água fria. No mínimo, havia levado um tabefe.

Lembrou que as tais mulheres difíceis costumavam casar virgens. Ou ficar solteironas. Teve ganas de alertá-la, mas se refreou. Ele sabia que todos nós aprendemos mais com a vida e com nossos tropeços. Nem sempre gostamos de ouvir conselhos.

Do lado de dentro, Eliana esperava - colada à porta e abraçada ao livro -, uma segunda investida.

Carlinhos voltou para o seu quarto e ficou imaginando se também ele, nos devaneios de Eliana, estaria colocado à espera, em alguma espécie de pilha.

Pela janela do quarto, observou a longa fila de automóveis que havia se formado no posto da esquina, aguardando para abastecer. Pensou que seria prudente posicionar o carro na espera de modo a seguirem viagem no dia seguinte. Mas ele odiava filas. Preferia sempre aguardar pelos momentos mais propícios.

O universo lá de fora que esperasse. Sexo e combustível moviam o mundo. E ambos haviam pedido uma trégua.

Ligou a tevê e atirou-se na cama, à procura de notícias alentadoras sobre a greve dos caminhoneiros nos jornais da noite. O governo interino anunciava redução de impostos e sessenta dias sem aumentos no óleo diesel, mas a liderança difusa do movimento não garantia o fim da paralisação.

Fez as contas, e achou que os golpistas talvez estivessem preparando nova onda de protestos à boca da eleição, após provocativo reajuste dos combustíveis, que incendiaria as ruas.  Sessenta dias era também um prazo razoável para aprovarem o projeto para eleições indiretas na vacância da Presidência. Aí, teriam dois anos mais para seguir rifando o país, antes de devolvê-lo ao seu povo.

O horizonte era confuso, o futuro nada alvissareiro. De sua janela, já não dava mais para ver o final da fila de automóveis. Resolveu tomar posição.

Lembrou que a chave do carro havia ficado com Eliana.

Ergueu-se da cama, alisou os cabelos em frente ao espelho de parede, escovou os dentes, colocou uma camisa limpa e saiu do quarto.


Estava claro que não havia mais tempo para protelações. Tinha um bom álibi.


                                                     - Miguel da Costa Franco -

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