quinta-feira, 20 de dezembro de 2018

A fronteira do esquecimento


   Cizinho abandonou a cama, de chofre, às cinco horas da manhã, com a clara sensação de ter atingido o cume de uma montanha sem nome, cuja escalada roubara-lhe o tempo de vida: sessenta e oito anos, dez meses e catorze dias. Restava-lhe cumprir a inevitável descida, falseando o pé por ladeiras escorregadias e cascalho traiçoeiro. Jamais retornaria ao topo. O que poderia haver galgado já o fizera. Atravessara, em meio àquela madrugada úmida, os umbrais do esquecimento.

   Do ponto em que se encontrava, podia avistar toda a amplitude do vale imerso na neblina. Tinha a imagem de um céu nebuloso invertido ao rés do chão, como se essa agora fosse a única visão plausível: a mirada de quem desce. Postes frágeis qual moirões no pântano pintavam pequenos círculos de luz boiando no cinzento da noite esfumaçada. Esta colcha irregular, pontuada por falsas estrelas, formava um claro/escuro tão desproporcional quanto a razão entre o vivido e os anos restantes. Confirmavam-lhe o sentimento a importuná-lo em meio à madrugada. Havia, sim, uma fronteira para as possibilidades.

   Vistos do alto, cada facho de luz formava uma aréola prateada em cima dos postes, com limites claros. Eram as mesmas manchas que, mais de perto, se perderiam numa transição gradual e imprecisa. Mas sua visão se tornara, agora, elucidativa. A existência humana, encarnada em sua própria trajetória terrena, se esfarelava como a luz freada pela névoa, sem apelação, e mostrava um corte seco. Percebia ter alcançado seu próprio Himalaia e restava-lhe resignar-se pelos sonhos não cumpridos.

   Ao cruzar o maldito portal, a passagem se fechara. Tudo o que fizesse pela vida afora, na melhor das hipóteses, esgarçaria um pouco a crueza demarcada atrás de si. O pior haveria de ser, dali para frente, admitir-se incapaz de fazer jus ao tamanho dos seus sonhos.

   Felícia diria em seu socorro: “relaxa, foi um ano ruim”. A eterna otimista. Hoje daria plena razão a ela, coisa que não lhe era comum. Poderia ser bom o último degrau da escada, se ele não lhe dera acesso ao terraço pretendido?

   Não voltou a tentar o sono. Felícia dormia com a boca aberta, o queixo retraído, num ressonar profundo e tranquilo. Justo ela, que sempre gostava de saber tudo. Mal sonhava com a importância aterradora do momento vivido pelo companheiro.

   Ele não fantasiava. Achava inatingível um grau de entendimento entre duas pessoas que permitisse acompanhar, pari passu, as profundezas da mente do outro, comunhão que acaso existisse a faria despertar-se num zás. Não, hoje ela não acordaria para consolá-lo. Cizinho sabia ser esse desejo apenas uma parte do rol infindável de sonhos inconclusos que haveriam de importuná-lo pelo resto dos dias.

   Sete anos haviam transcorrido da sua despedida do conglomerado. Jamais se arrependera, mas sua carta de adeus, tão esperançosa, já não podia ser reescrita. Ao moço da Previdência a lhe perguntar a idade, dissera, brincando, “a idade do esquecimento”. Percebia ter antecipado em muito, naquele momento distante, a travessia do portal apenas vencido nesta madrugada fria.

   Convidativo como uma cama elástica, era o céu invertido ao rés do chão. Na gaveta da mesa de cabeceira, estava a cartela com os antidepressivos. Vinte e quatro pílulas vermelhas alinhadas feito um exército de joaninhas prontas para enfrentar, uma a uma ou agrupadas, as ondas de desespero. Convincente, a água fresca de moringa prometia empurrar-lhe pela goela, sem espasmos, as desviantes pastilhas de felicidade.

   Mas o velho insone, estrangeiro de seus sonhos, não quis estreá-las. Era tão viva a fronteira que o atormentava quanto o sol que se anunciava no horizonte. Seguia considerando a lucidez a melhor droga do mundo. Espreguiçou-se, moveu os ombros em círculo, alongou os braços. Não havia vento para aplacar a umidade e ele cogitou o aconchego de um mate.

   Felícia ronronava de leve sob os cobertores.


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