Às
vezes, me perco. Saio sem rumo e encontro apenas estranhezas, desconfortos.
Antes,
bastava vestir-me com simplicidade. Agora, não mais. A guerra espalhou-se para
todos os lados e a perda de rumos fez de todos inimigos entre si. O indivíduo
venceu, nós perdemos.
Nos
bairros hostis que cercam a cidadela dos nobres, as ruelas escuras reservam
armadilhas. O medo não dá mais trégua. Eu, um homem socialmente remediado que
odeia muros, um reles aspirante a visconde – ou pelo menos barão -, sou aqui
fora um mero objeto de caça. Um ser desencontrado e insosso, filhote das sombras
que a própria muralha cria. Por isso, me armo com o que tenho: soqueiras,
pistolas, canivetes, gás de pimenta. Olhos atentos, espírito alerta, assim me
ensinaram no treinamento. Se bobear, já era. C’est fini. Bye bye.
Desvio
dos agrupamentos humanos, dos peões de guarda nas esquinas, dos Balas na Cara,
dos Manos, dos Amigos dos Amigos. Evito olhar nos olhos de quem seja. Guardo
distância das mulheres para evitar disputas possessórias e dos bares com
televisão ligada, onde sei que não te encontrarás. Não peço informações a
ninguém, pois não quero acentuar meu caráter forasteiro. Entro apenas em
estabelecimentos vazios, com as mãos limpas à mostra.
Quando
pergunto por ti, evito declinar teu nome verdadeiro. Mostro apenas tua foto, já
amarrotada pelo tempo ou por lapsos periódicos de desespero. A quem insiste em saber
mais detalhes, te batizo Esperança. Às vezes, em espanhol: Esperanza. Isso enobrece
o significado da minha busca e gera mais empatia (por aqui, valorizamos os
estrangeirismos, os Wellingtons, os Pablos, os Wesleys, as Nicoles.)
Digo
sempre que sumiste sem deixar rastros. Que teus filhos ainda te esperam
ansiosos, tantos anos depois. Que tínhamos uma vida tranquila e organizada. Que
tua partida foi, para nós, um golpe. Que nosso lar foi atacado por lobos e
destroçado. Digo, também, que não anseio
por vinganças, mas, sim, por um pouco da paz do Senhor. Soa bem aos ouvidos crentes
que abundam do lado de fora da cidadela, para além das barreiras de segurança.
Prometo refazer o que foi desfeito e aceno com mais. Escolados na miséria,
alguns perguntam: e as novidades?
É normal
que te reconheçam na foto estragada que carrego comigo. Tens traços bem simples,
um sorriso largo e olhos de anunciação.
É a
Esperança, dizem.
Vi num
ônibus, outro dia, anunciou um velhote. Ela estava de verde.
Acho
que trabalha no shopping, falou uma cabeleireira, ante meu olhar descrente.
Cuida
de crianças num lar da zona norte, arriscou um pastor.
Faz a
vida numa boate da Avenida Farrapos, não titubeou um taxista.
É caixa
numa lotérica, disse outro qualquer, associando teu nome ao tilintar de moedas.
Segui
cada uma dessas pistas e outras centenas mais. A tudo dou ouvidos. Bem podes
ter preferido as desventuras de puta à normalidade opaca que eu te oferecia. Ter
optado por uma vida mais simples e avessa à promiscuidade da nossa área vip. Também podes ter usado tua imensa
capacidade de doação para cuidar de velhos ou de crianças. Vá que tenhas me
trocado por outro, ou mesmo por outras utopias, para saciar teus apetites vários!
Podes ter fugido, ter sido raptada, abduzida ou morta.
Procuro
não pensar em destinos, apenas nos caminhos que percorro por ti.
Velo
por meus passos nas calçadas irregulares por onde transito, nas ruas
esburacadas e sujas e nos hospitais, mesmo que tua presença ali, Esperança,
seja um tanto improvável. Também passeio pelas avenidas poluídas por placares
chamativos, mas nunca te vejo.
Trato
de conter os ódios e as dúvidas, ainda que mantenha os dedos firmes no cabo da
pistola.
Tento
emprenhar-me de amor. A vida tem de ser mais do que esse fosso que se agiganta entre
nós, todo o santo dia. Estou armado até os dentes e tenho fome. Eu tenho
múltiplas fomes.
O quê,
em verdade, tu representas, Esperança, minha falsa Esperança? Vivo me
perguntando.
Sei que
eras muito importante para nós como comunidade. Para mim, a única coisa que
importava. Quando te encontrar, talvez sejamos apenas uma sombra débil do que
fomos, mas sei que haverá um sopro de vida no teu olhar assustado. Uma chama
breve. Um braseiro por reavivar. Por isso persisto com a minha busca esfaimada.
Pego uma rua, outra rua, um bairro antigo, um loteamento que surge, uma favela
que é expulsa, outra que se instala. Em algum lugar do lado de fora das
muralhas da cidadela, eu sei que vou te achar. (Lá dentro, não te esconderias.)
Temo te
encontrar em situação imprópria, seduzida ou sufocada por interesses outros,
fragilizada ou agonizante. E torço para dominar meu ciúme, meu desânimo, minha
raiva, meu rancor, meu exagero, minhas ânsias.
Sempre
soube que a vida é uma batalha perdida. Todos nós temos data de vencimento. O
que nos resta é lutar até o fim. Deixar algo de bom. Fazer desse mundo um lugar
melhor. Sermos lembrados como indivíduos úteis e solidários.
Por
desígnio pessoal, toca a mim não desistir, como a ti, talvez, caiba fugir para
longe desse passado que te quer manter cativa. Minha jornada pode já não ser a
tua, Esperança, e nosso mundo há de ser sempre a soma desse contraponto de
interesses e visões. Mas quero que me digas isso tudo, face a face. Sem fugas, pedaladas
ou desvios.
Agora,
ando com fé. Fez sol durante a tarde e a noite é fresca. Ouço sons de grilos e
de gatos que alegremente copulam. A lua crescente me acompanha, aos sorrisos, refletindo-se
nas poças d’água. Os telhados cintilam. Uma criança cega correu até mim e contou-me,
entusiasmada, que hoje te viu passar. Balbuciava, excitada e rouca, quase
gania. Senti o cheiro, dizia, ainda sinto.
De
pronto, confiei nela. Aspirei com fervor religioso a brisa suave. Renovei as
minhas forças. Amanhã, de olhos
vendados, vou sair bem cedo para te procurar.
- Miguel da Costa Franco -
- Miguel da Costa Franco -
Triste. Mas vou compor uma resposta no meu blog. Muito triste.
ResponderExcluirPodes postar aqui tua resposta. Ou me envia o link para eu ler, se puderes. Grato.
Excluir