O
semáforo da Avenida Osvaldo Aranha fechou. Os carros bloqueados foram compondo,
como de costume, duas longas filas pela Rua Fernandes Vieira. No pelotão da
frente, uma Kombi azul e um Fiat Uno; depois, um furgão de entregas de uma
lavanderia e um Honda Civic branco; na terceira posição, um táxi e a Tucson
prata. Atrás dela, um velho Chevette preto e uma carroça cheia de entulhos.
Mais adiante, outros automóveis foram se achegando, pouco a pouco. Motoboys enfiaram-se entre eles.
Uma
viatura da Brigada Militar, indo em direção ao centro pela mão direita da
avenida, aportou ao cruzamento e freou
de chofre, somando-se ao sinal vermelho para impedir o avanço de quem vinha da
Independência. Soldados desceram da camioneta atravessada na esquina, armas em
punho, escondendo-se entre os carros estacionados.
Os
rapazes desmazelados, que desciam a rua correndo, viram-se forçados a recuar.
Espalharam-se como ratos assustados entre os veículos inermes, protegendo-se dos
policiais. Então se ouviram os primeiros tiros.
Motoristas
e passageiros, represados pela sinaleira e pelo camburão, abaixaram-se acuados.
Soaram buzinas nervosas. Pedestres protegeram-se dentro das lojas abertas, espremeram-se
atrás dos postes ou ocultaram-se ao lado de automóveis estacionados. Uma
velhota, talvez já meio surda, não entendeu a aflição de seu cachorrinho,
pegou-o no colo e seguiu trotando rumo ao parque, indiferente às balas que
continuavam a zunir.
Dois
policiais, em motocicleta, desceram velozes pelas calçadas, cercando por trás
os fugitivos. Um deles, à direita dos carros enfileirados, afrontou o
brigadiano recém-chegado, dirigindo-lhe um ou dois tiros. O soldado esquivou-se
com desenvoltura, freou de lado, fazendo deitar-se a motocicleta. Do chão, sacou
o revólver e desferiu um balaço certeiro na perna do agressor, que caiu aos
gritos.
Outros
tiros foram ouvidos em sequência, vindos de um lado e de outro. Dos demais
rapazes, um ergueu as mãos pedindo clemência e se entregou ao brigadiano mais
próximo. O outro subiu a rua ziguezagueando entre os carros, perseguido, desde
a calçada, pelo segundo motociclista.
As
buzinas insistiam em espalhar mais e mais nervosismo. O carroceiro
esforçava-se, sem muito sucesso, em manter o controle de seu cavalo assustado.
Todas
as atenções nas proximidades da esquina se voltaram para o homem baleado. O
oficial em comando, babando adrenalina, aproximou-se dele e desferiu-lhe
sucessivos chutes na perna ferida. De alguma loja, alguém gritou “pra quê
isso?”
Um
subordinado adiantou-se e conteve o chefe agressivo. Depois, dedicou-se a
algemar o jovem caído, enquanto outro colega seu tratava de catar a arma que se
havia extraviado pela sarjeta.
Os
presos foram carregados para o camburão que aferrolhava a boca da rua. Numa
manobra rápida, a camionete virou a sua esquerda e tomou o rumo do Pronto
Socorro, seu destino provável, as sirenes gritando, alucinadas.
Os
motoristas, retidos em suas celas sobre rodas, demonstravam ansiedade, acelerando
os motores e fazendo ribombar as buzinas entre a fileira de edifícios baixos.
Pessoas
foram surgindo pelas portas do comércio local. Grupos se formaram nas calçadas,
conversando sobre o ocorrido, sobre a insegurança intolerável em que vivemos.
A
senhora do cachorrinho perguntava ao pipoqueiro da esquina o que havia
acontecido.
O
sinal abriu.
O
som das buzinas, mais e mais desesperadas, espalhava-se ao longo da rua.
Assim
que pôde, o Fiat saiu zarpando, logo atrás das motos, mas a Kombi, também em
primeiro na fila, não se moveu. Custou a pegar. As buzinas altearam-se. Logo se
ouviu o ruído acelerado do motor, e ela arrancou deixando no ar rolos de fumaça
preta. Avançaram em sequência o furgão da lavanderia e o Honda Civic. Também o
táxi moveu-se apressado e parou no outro lado da avenida para receber um
passageiro. O cavalo animou o trote, meio descontrolado, levando consigo o
carroceiro e seus trastes.
A
vida retomava seu curso normal.
O
motorista do Chevette preto, assim que pôde, contornou a Tucson parada,
gritando obscenidades. O duplo fluxo de veículos afunilava-se em um,
alternando-se pelo lado esquerdo da camionete.
Aos
poucos, todos começaram a achar estranho que a Tucson prata não avançava.
Permanecia parada à direita da rua, sem ânimo de movimentar-se. Sua buzina
seguia soando e soando e soando, sem intervalos.
Quem
se aproximou dela, percebeu um pequeno furo, com estrias concêntricas, na parte
superior da janela lateral. Semi-oculto pelos vidros fumê, emborcado sobre o
volante, o motorista seguiu pressionando com o seu corpo pesado aquela buzina angustiante
até a chegada tardia da perícia técnica.
“Tiroteio
complica o trânsito no Bonfim” seria a manchete do jornal da noite.
- Miguel da Costa Franco -
- Miguel da Costa Franco -
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