sexta-feira, 12 de maio de 2017

Nacho Balduíno vai ao futebol


   Nacho Balduíno era um homem solitário. Ganhava a vida como posteiro na Estância Santa Eulália, na fronteira sul do Brasil. Poucas vezes havia ido até a cidade. Que lembrasse, só umas quatro ou cinco.

   Sua casinha de pedra ficava num lugar bonito e ventoso, na invernada mais distante da sede. Do alto da coxilha, tinha vista para a boca da lagoa Mirim e para toda a extensão da planura, mais além do rio Jaguarão, já no lado uruguaio. Mesmo quando ficava mateando à sombra do cinamomo vizinho a sua morada tosca, Nacho Balduíno podia vigiar de lá os pescadores acampados na Ilha Rasa, que, às vezes, por mal-agradecidos, sentiam a comichãozinha de carnear uma ovelha sem a licença do patrão.

   A sua vida era a de um peão qualquer. Tratar ferimentos e curar as bicheiras do gado. Proteger dos zorros os cordeiros recém-nascidos. Verificar a integridade das cercas. Levar a boiada até as mangueiras para marcar, castrar, vermifugar e aplicar banhos carrapaticidas. Vigiar os intrusos e o paiol de feno. Tosquiar as ovelhas nas proximidades do verão. Nisso, gastava o tempo.

   Como posteiro, o patrão lhe garantia o de viver. A cada quinzena, despejava no postinho um rancho simples, mas suficiente para suas necessidades: café, açúcar, galletitas uruguaias, arroz, feijão, azeite, farinha, um bom pedaço de carne de ovelha, sabão de glicerina e querosene. Trazia também um pouco de milho e suplemento mineral para a vaca de leite e para o zaino, que Nacho Balduíno cuidava como se fossem seus. Contava ainda com uma dezena de galinhas e um cusco companheiro chamado Balão, uns pés de fruta, abóbora, batata-doce e água boa de poço.

   O salário modesto servia apenas para algum apetrecho novo, para renovar o solado das botas ou tomar um trago de pinga escondido nas quermesses da igreja. Também para o desafogo mensal de alguns minutos na casa da Chininha, onde entrava mudo e saía calado. Não era de danças, nem de paixonites.

   A única extravagância que cometeu na vida foi a compra de um potente rádio Phillips para poder ouvir os jogos da Copa de 70, entre chiados intermináveis. Era fã de futebol e torcedor fanático do Colorado, afeto dividido com o patrão, seu Glênio. Antes de comprar o precioso aparelho, movido a seis pilhas das grossas, era forçado a longas cavalgadas até a Vila Matadouro para acompanhar a jornada esportiva da Rádio Guaíba no bolicho do Anaurelino. Fizesse chuva ou fizesse sol.

   Reagia junto com o locutor, quando este era avisado pela voz grave e pausada do seu colega de emissora: tem gol, Ranzolin! Onde, Antônio Augusto?, se apressava a perguntar o Nacho, repetindo a entonação vibrante do narrador. Sintonizava com as expressões divertidas do comentarista Lauro Quadros, quando queria elogiar a maestria de algum jogador ou o melhor jeito de furar a defesa adversária. “Esse conhece o rengo sentado e o cego dormindo.” “É ali pela esquerda o caminho da roça”.

   Para coroá-lo de alegria, desde que havia comprado o rádio, o seu querido Colorado ganhava todas as competições. Já era octacampeão gaúcho, enterrando de vez o rival tricolor. Conquistara o campeonato nacional, matando com um testaço do Figueroa o Cruzeiro dos perigosos Palhinha, Nelinho e Wilson Piazza. Agora, disputaria com o Corinthians outra vez o título maior, podendo tornar-se bicampeão brasileiro no próximo domingo, um feito inédito. Tinha time para isso: Manga, Cláudio, Don Elias Figueroa, Marinho, Vacaria, Caçapava, Batista, Falcão, Paulo César Carpegiani, Jair, Valdomiro, Dario, Escurinho e Lula, uma verdadeira coleção de craques.

   A semana anterior à final do campeonato foi de grande lida com o rebanho, a peonada de todos os recantos da fazenda reunida perto da sede. Nacho Balduíno não se aguentava, só falava disso o tempo todo: a grande final. Que além de tudo, poderia dar-lhe o título como presente de aniversário de quarenta anos, pois era nascido no mesmo dia do jogo, doze de dezembro. Ouvindo isso, seu Glênio, pelejando de igual para igual com os empregados, anunciou: então te levo comigo no domingo.

   Foi a notícia do ano na Estância Santa Eulália: Nacho Balduíno vai ao futebol.

   O peão felizardo nem dormiu mais. Não era só pelo jogo que morria de excitação. Além de ir pouco à cidade, jamais havia passado das fronteiras de Jaguarão, asfalto não conhecia, nunca viajara de carro, nem havia assistido de corpo presente a uma partida de futebol.

   Apresentou-se na casa do patrão na madrugada de domingo de banho tomado, vestindo sua melhor bombacha e cheirando à Acqua velva, a guaiaca forrada com os restos do salário e um vistoso lenço vermelho ao pescoço, contrastando com a camisa branca quarada de sol. Embarcaram na Chevrolet Caravan, último tipo, o seu Glênio, o patrãozinho Daniel e ele. O menino desfraldou a bandeira colorada na janela do carro e ganharam a estrada de terra aos buzinaços.

   A viagem foi longa e assustadora para Nacho Balduíno. Seu Glênio corria muito e a rodovia estava cheia de automóveis. Colorados de toda a fronteira, com seus decalques e bandeiras, dirigiam-se a Porto Alegre para ver o jogo. A cada cidade que passavam – Arroio Grande, Pelotas, São Lourenço, Camaquã - aumentava o fluxo de veículos. Nas alturas do delta do Jacuí, a coisa encrespou. Volta e meia, parava tudo. O pastel que Nacho Balduíno comera no caminho revirava-se no seu estômago com aquele arranca-e-para. Os pés imóveis formigavam dentro das botas. Quando chegaram à ponte do Guaíba, o tráfego foi interrompido e ele pôde assistir, maravilhado, um naco de estrada se despregar do chão e subir aos céus para dar passagem, pelas águas, a um cargueiro monumental. Depois, seu olhar se perdeu na cidade imensa, uma montoeira de edifícios de um tamanho inacreditável, um encaixadinho no outro. Costeando a margem do rio, a vista também se espichava pelos armazéns amarelados  à beira do cais do porto, com seus inúmeros navios atracados e guindastes enormes.

   O seu Glênio provocava o peão embasbacado: já tinha visto uma coisa dessas, Balduíno?

   Pararam para almoçar numa galeteria perto da ponte. Viram-se imersos na balbúrdia domingueira, com garçons ágeis e persistentes voejando entre as mesas lotadas, quase coladas umas nas outras.

   Na Avenida Borges, já próximo do estádio, toparam com um engarrafamento gigantesco, carros buzinando por todo o lado. Tiveram de enfrentar um empurra-empurra tremendo e uma massa de gente se acotovelando para finalmente conseguirem entrar no afamado Gigante da Beira Rio.

   Lá dentro, a multidão vermelha embandeirada, a pular e entoar hinos, era como uma grande plantação de sorgo por colher, balançando com o vento. O povaréu fazia tremer as arquibancadas. Será que aquele estádio novinho aguentaria o tranco?, perguntava-se o peão. Estaria firme nos palanques?

   Assistiu, amedrontado, a vitória do Internacional. Passou boa parte da partida meio mareado, de olhos fechados, oitenta e quatro mil viventes urrando como uma boiada enlouquecida. Abraçou seu Glênio pela primeira vez no gol do Dario e abraçou de novo quando Valdomiro fez o segundo. Achava uma figura buenaça o seu Glênio. Ao final do jogo, já bicampeão brasileiro, segurou o choro que lhe veio como labareda no feno. Seja homem, Balduíno, reprimiu-se a tempo.

   Enfiaram-se num cortejo de buzinas e de cantorias desde a saída do estádio até quase as portas da cidade. Exausto de tantas emoções, Nacho Balduíno roncava forte ao pegarem novamente a estrada, enquanto seu Glênio ouvia no rádio os comentários entusiasmados do Ruy Ostermann e do Lauro Quadros e a volúpia estatística do tal Antonio Augusto.

   De volta à paz do campo, uma única resposta lhe saía quando perguntado sobre a experiência na cidade. Arregalava os olhos, torcia a cabeça de lado e exclamava: ô, louco, seu!

                                                                             - Miguel da Costa Franco - 

4 comentários:

  1. Conseguiste retratar a emoção fielmente, acho que deves trocar de time! Tens muito mais de colorado do que de gremistas gélidos e opacos imperialistas kkkkk. Grande abraço!

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  2. Esperando ansioso um do meu Grêmio mas, confesso, tá buenacho demás este daqui!

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  3. Gracias. Do Grêmio, tem o "Obrigado, Olímpico". Procura pelo índice à direita. Abraço.

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