Nacho
Balduíno era um homem solitário. Ganhava a vida como posteiro na Estância Santa
Eulália, na fronteira sul do Brasil. Poucas vezes havia ido até a cidade. Que
lembrasse, só umas quatro ou cinco.
Sua
casinha de pedra ficava num lugar bonito e ventoso, na invernada mais distante
da sede. Do alto da coxilha, tinha vista para a boca da lagoa Mirim e para toda
a extensão da planura, mais além do rio Jaguarão, já no lado uruguaio. Mesmo quando
ficava mateando à sombra do cinamomo vizinho a sua morada tosca, Nacho
Balduíno podia vigiar de lá os pescadores acampados na Ilha Rasa, que, às
vezes, por mal-agradecidos, sentiam a comichãozinha de carnear uma ovelha sem a
licença do patrão.
A sua
vida era a de um peão qualquer. Tratar ferimentos e curar as bicheiras do gado.
Proteger dos zorros os cordeiros recém-nascidos. Verificar a integridade das
cercas. Levar a boiada até as mangueiras para marcar, castrar, vermifugar e
aplicar banhos carrapaticidas. Vigiar os intrusos e o paiol de feno. Tosquiar
as ovelhas nas proximidades do verão. Nisso, gastava o tempo.
Como posteiro, o patrão lhe
garantia o de viver. A cada quinzena, despejava no postinho um rancho simples,
mas suficiente para suas necessidades: café, açúcar, galletitas uruguaias, arroz, feijão, azeite, farinha, um bom pedaço
de carne de ovelha, sabão de glicerina e querosene. Trazia também um pouco de
milho e suplemento mineral para a vaca de leite e para o zaino, que Nacho
Balduíno cuidava como se fossem seus. Contava ainda com uma dezena de galinhas
e um cusco companheiro chamado Balão, uns pés de fruta, abóbora, batata-doce e
água boa de poço.
O salário modesto servia apenas
para algum apetrecho novo, para renovar o solado das botas ou tomar um trago de
pinga escondido nas quermesses da igreja. Também para o desafogo
mensal de alguns minutos na casa da Chininha, onde entrava mudo e saía calado.
Não era de danças, nem de paixonites.
A única extravagância que cometeu
na vida foi a compra de um potente rádio Phillips para poder ouvir os jogos da
Copa de 70, entre chiados intermináveis. Era fã de futebol e torcedor fanático
do Colorado, afeto dividido com o patrão, seu Glênio. Antes de comprar o precioso
aparelho, movido a seis pilhas das grossas, era forçado a longas cavalgadas até
a Vila Matadouro para acompanhar a jornada esportiva da Rádio Guaíba no bolicho
do Anaurelino. Fizesse chuva ou fizesse sol.
Reagia junto com o locutor, quando
este era avisado pela voz grave e pausada do seu colega de emissora: tem gol,
Ranzolin! Onde, Antônio Augusto?, se apressava a perguntar o Nacho, repetindo a
entonação vibrante do narrador. Sintonizava com as expressões divertidas do
comentarista Lauro Quadros, quando queria elogiar a maestria de algum jogador ou
o melhor jeito de furar a defesa adversária. “Esse conhece o rengo sentado e o
cego dormindo.” “É ali pela esquerda o caminho da roça”.
Para coroá-lo de alegria, desde
que havia comprado o rádio, o seu querido Colorado ganhava todas as competições. Já era octacampeão gaúcho, enterrando de vez o rival tricolor. Conquistara
o campeonato nacional, matando com um testaço do Figueroa o Cruzeiro dos
perigosos Palhinha, Nelinho e Wilson Piazza. Agora, disputaria com o
Corinthians outra vez o título maior, podendo tornar-se bicampeão brasileiro no
próximo domingo, um feito inédito. Tinha time para isso: Manga, Cláudio, Don
Elias Figueroa, Marinho, Vacaria, Caçapava, Batista, Falcão, Paulo César Carpegiani,
Jair, Valdomiro, Dario, Escurinho e Lula, uma verdadeira coleção de craques.
A semana anterior à final do
campeonato foi de grande lida com o rebanho, a peonada de todos os recantos da
fazenda reunida perto da sede. Nacho Balduíno não se aguentava, só
falava disso o tempo todo: a grande final. Que além de tudo, poderia dar-lhe o
título como presente de aniversário de quarenta anos, pois era nascido no mesmo
dia do jogo, doze de dezembro. Ouvindo isso, seu Glênio, pelejando de igual
para igual com os empregados, anunciou: então te levo comigo no domingo.
Foi a notícia do ano na Estância
Santa Eulália: Nacho Balduíno vai ao futebol.
O peão felizardo nem dormiu mais. Não era só pelo jogo que morria de excitação. Além de ir pouco à cidade, jamais havia passado das fronteiras de Jaguarão, asfalto não conhecia, nunca viajara de carro, nem havia assistido de corpo presente a uma partida de futebol.
Apresentou-se na casa do patrão
na madrugada de domingo de banho tomado, vestindo sua melhor bombacha e
cheirando à Acqua velva, a guaiaca
forrada com os restos do salário e um vistoso lenço vermelho ao
pescoço, contrastando com a camisa branca quarada de sol. Embarcaram na
Chevrolet Caravan, último tipo, o seu Glênio, o patrãozinho Daniel e ele. O
menino desfraldou a bandeira colorada na janela do carro e ganharam a estrada
de terra aos buzinaços.
A viagem foi longa e
assustadora para Nacho Balduíno. Seu Glênio corria muito e a rodovia estava cheia
de automóveis. Colorados de toda a fronteira, com seus decalques e bandeiras,
dirigiam-se a Porto Alegre para ver o jogo. A cada cidade que passavam – Arroio
Grande, Pelotas, São Lourenço, Camaquã - aumentava o fluxo de veículos. Nas
alturas do delta do Jacuí, a coisa encrespou. Volta e meia, parava tudo. O
pastel que Nacho Balduíno comera no caminho revirava-se no seu estômago com
aquele arranca-e-para. Os pés imóveis formigavam dentro das botas. Quando
chegaram à ponte do Guaíba, o tráfego foi interrompido e ele pôde assistir,
maravilhado, um naco de estrada se despregar do chão e subir aos céus para dar
passagem, pelas águas, a um cargueiro monumental. Depois, seu olhar se perdeu
na cidade imensa, uma montoeira de edifícios de um tamanho inacreditável, um
encaixadinho no outro. Costeando a margem do rio, a vista também se espichava
pelos armazéns amarelados à beira do cais do porto, com seus inúmeros navios
atracados e guindastes enormes.
O seu Glênio provocava o peão
embasbacado: já tinha visto uma coisa dessas, Balduíno?
Pararam para almoçar numa
galeteria perto da ponte. Viram-se imersos na balbúrdia domingueira, com
garçons ágeis e persistentes voejando entre as mesas lotadas, quase coladas
umas nas outras.
Na Avenida Borges, já próximo
do estádio, toparam com um engarrafamento gigantesco, carros buzinando por todo
o lado. Tiveram de enfrentar um empurra-empurra tremendo e uma massa de gente
se acotovelando para finalmente conseguirem entrar no afamado Gigante da Beira
Rio.
Lá dentro, a multidão vermelha
embandeirada, a pular e entoar hinos, era como uma grande plantação de sorgo
por colher, balançando com o vento. O povaréu fazia tremer as arquibancadas.
Será que aquele estádio novinho aguentaria o tranco?, perguntava-se o peão.
Estaria firme nos palanques?
Assistiu, amedrontado, a
vitória do Internacional. Passou boa parte da partida meio mareado, de olhos
fechados, oitenta e quatro mil viventes urrando como uma boiada enlouquecida.
Abraçou seu Glênio pela primeira vez no gol do Dario e abraçou de novo quando
Valdomiro fez o segundo. Achava uma figura buenaça
o seu Glênio. Ao final do jogo, já bicampeão brasileiro, segurou o choro que
lhe veio como labareda no feno. Seja homem, Balduíno, reprimiu-se a tempo.
Enfiaram-se num cortejo de
buzinas e de cantorias desde a saída do estádio até quase as portas da cidade.
Exausto de tantas emoções, Nacho Balduíno roncava forte ao pegarem novamente a
estrada, enquanto seu Glênio ouvia no rádio os comentários entusiasmados do Ruy
Ostermann e do Lauro Quadros e a volúpia estatística do tal Antonio Augusto.
De volta à paz do campo, uma
única resposta lhe saía quando perguntado sobre a experiência na cidade.
Arregalava os olhos, torcia a cabeça de lado e exclamava: ô, louco, seu!
- Miguel da Costa Franco -
- Miguel da Costa Franco -
Conseguiste retratar a emoção fielmente, acho que deves trocar de time! Tens muito mais de colorado do que de gremistas gélidos e opacos imperialistas kkkkk. Grande abraço!
ResponderExcluirPura piedade, Ivan.
ExcluirEsperando ansioso um do meu Grêmio mas, confesso, tá buenacho demás este daqui!
ResponderExcluirGracias. Do Grêmio, tem o "Obrigado, Olímpico". Procura pelo índice à direita. Abraço.
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