Acordou
com os galos, como se dizia no campo quando alguém madrugava. Agora poderia
dizer “acordou com os sabiás”, tal a gritaria fora de hora que faziam junto a
sua janela urbana esses bichos desambientados. Levantou-se protegendo as costas
e calçou os chinelos que sempre deixava rente à parede. Catou pela alça o
urinol, carregou-o com as duas mãos até o banheiro e livrou-se do peso da noite
despejando o seu conteúdo na privada. Achava indigno deixar esse serviço para a
pobre da Salete. Aproveitou o vaso aberto para uma nova urinada, pois velho nunca
pode perder uma chance dessas. Depois, lavou o rosto e voltou ao quarto. Pôs os
“ouvidos”, como costumava chamar o aparelho auditivo, e ouviu um zumbido
desagradável na orelha direita. Havia que aproveitar a visita de algum filho
para trocar as pilhas. Devolveu à caixa o aparelho incômodo.
Na
cozinha, tratou de preparar o mate, pois Salete ainda não chegara ao trabalho.
Precisou recorrer à tal chaleira elétrica, que nunca fizera funcionar, pois lhe
custaria muito achar a convencional. Assim que acomodou a erva na cuia, a
bandida se pôs a chiar. Desligou-a, encheu a garrafa térmica e levou os apetrechos
do mate ao escritório para entregar-se à crônica matinal, hábito cultivado desde a aposentadoria. A palavra escrita era a única arma de que dispunha para fazer-se
ouvir entre os seus pares sempre tão apressados.
Carminha
havia esquecido o split ligado ao se
retirar para dormir e o escritório amanhecera tão gelado quanto um freezer. O controle remoto do aparelho estava
em lugar incerto e, se o encontrasse, não saberia usá-lo. Abriu a janela para
suavizar a temperatura ambiente, mas a ventania lá fora o impediu de mantê-la
aberta.
Decidiu
levar as coisas do mate para a sala e carregar também para lá o computador, uma
ousadia que nunca tentava. Soltou os cabos do laptop e tirou-o da tomada. Para
evitar problemas, desligou o aparato cheio de luzinhas verdes - o tal modem - que se ligava a
ele e à tomada do telefone e transportou a besta para a sala de jantar.
Apoiou
o aparelho na mesa, plugou o fio na energia e conseguiu acertar a conexão do mouse já na terceira tentativa. Pronto.
Ligou o monstro e logo se abriu na tela uma daquelas caixas de letrinhas miúdas
que tanto o aterrorizavam. Como temia, a manobra não deu certo. Carminha, que
às vezes o ajudava com o computador, estava dormindo, melhor seria ligar para
um dos filhos. Júlio. Júlio já estaria acordado àquela hora. Se ainda usasse a velha Olivetti, nada disso
aconteceria.
Catou
a agenda dos telefones na gavetinha de Carminha, correu o dedo até o J e procurou
pelo nome do filho, com alguma dificuldade, pois não lembrava onde tinha
deixado os óculos.
Havia
lá três números, dois deles riscados. Fixou-se no terceiro, exercitando
distâncias para ajustar o foco, e anotou num papelucho os oito dígitos em letra bem grande, para facilitar. Encontrou sem sinal o telefone fixo, totalmente
mudo.
Voltou ao escritório e procurou pelo celular, que não costumava usar.
Encontrou-o também sem vida em sua caixa original. Ligou-o à tomada mais
próxima e deixou-o carregando. Tinha de esperar umas duas horas até poder
usá-lo. O Júlio havia ensinado assim: usar sempre até o final da carga e depois
recarregá-lo até o fim para preservar a bateria. Se é que não estava
confundindo tudo.
Retornou
à sala de jantar, encheu uma cuia de mate e tomou o primeiro junto à pia do
lavabo, cuspindo nela cada sorvo dado, pois não gostava de mate frio. Carminha
iria depois reclamar das manchas na bancada. Paciência. Serviu-se de um segundo
mate e topou com o que temia: estava desagradavelmente morno. Diabo de chaleira
elétrica!
Sem
Salete e sem Carminha, seria muito trabalho preparar um café. Resolveu calçar
os tênis e dar uma esticada nas pernas, aproveitando a rua a salvo da fumaceira
dos automóveis. Comeria mais tarde. Foi até o quarto para pegar os calçados e
uma jaqueta que o protegesse do frio, evitando olhar para a tevê que Carminha
deixara acesa e muda por toda a noite, como sempre fazia, pois àquela hora o noticioso
só falava de crimes, vendavais ou inundações.
O
relógio de parede, na cozinha, marcava sete horas. Na tabela na porta da
geladeira, conferiu o horário dos remédios, os dele em azul, os da velha em
vermelho. Logo seria a hora do diurético. Nunca lembrava se tomava inteiro ou só
a metade do comprimido. Resgatou a caixinha lilás da cesta dos remédios, tinha
quase certeza que era ela. Enfiou uma drágea na boca e engoliu-a em seco.
Apoiado
na bengala, sua aquisição mais recente, baixou ao térreo pelas escadas, pois não lembrava a senha do elevador. Cumprimentou
o porteiro do risinho irônico e saiu para a rua manquitolando um pouco. Nos
dias frescos, parecia que a prótese do joelho custava a engrenar.
Hora
dos outros irem para o trabalho: caixeiras arrumadinhas, barbados de terno e gravata,
homens com jaleco de empresas, garotos de bermudas caídas, mulheres protegendo
do vento as saias, servidores do hospital vizinho em uniforme verde-claro,
todos apressados para chegar ao serviço ou à escola. Ou fugir do trabalho, no
caso dos seguranças em final de turno.
A
rua ainda não estava trancada, mas os ônibus paravam lotados nos pontos de
embarque, levantando nuvens de poeira e folhas secas. Camionetes de entregas
eram carregadas. Carrinhos de mão cruzavam o caminho em frente ao prédio em
construção. Mangueiras lavavam a urina grudenta das calçadas. Os comerciantes preparavam-se
para a longa jornada do dia. Seria quarta ou quinta?
Apalpou
os bolsos e encontrou um pequeno maço de notas, a niqueleira de couro e a
carteira de identidade. Avaliou a distância do mercado público e resolveu tomar
café no bar do seu Onofre. Sentiu-se capaz. Pegar um táxi seria jogar dinheiro
fora. Então se misturou à fauna desatinada e se foi avenida abaixo, como se
fosse normal caminhar até o Centro. Para isso, não precisava apertar botões. Jogou-se
decidido e manco na correnteza do dia.
- Miguel da Costa Franco -
- Miguel da Costa Franco -
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