sexta-feira, 21 de abril de 2017

Das razões para desejar ser bombeiro

          

   Quando eu era criança e morava junto à praça central de uma pequena cidade do interior, eu queria ser bombeiro. Gostava do sentido de urgência que cerca esta função, o heroísmo implícito, a doação ao outro, com risco à própria vida.

   Orgulho-me um pouco dessa aspiração, acho que esse desejo infantil depõe favoravelmente sobre o meu caráter. Mas só um pouco. (Talvez eu estivesse àquela época me excedendo nos bangue-bangues americanos).

   Aprendi com o tempo a valorizar a importância transformadora dos incêndios e a relativizar a deferência aos que se dedicam a extinguir labaredas. Às vezes, é preciso tocar fogo no circo.

   Mas, aos cinco ou seis anos, me atraía ser bombeiro. Mais do que tipógrafo, farmacêutico, lapidador de pedras preciosas, comerciante ou bancário, alternativas profissionais que prosperavam no quarteirão onde eu vivia e que se ofereciam nuas aos olhos do aprendiz de ser humano que eu era então. Com a curiosidade da minha pouca idade, eu podia frequentar sem maiores obstáculos a tipografia do seu Joca, aos fundos do meu prédio, a lapidadora dos pais do Ulisses, meu amigão, a loja de sapatos da esquina ou a farmácia do seu Jorge. E podia importunar com minhas brincadeiras a paciência dos bancários do piso inferior.

   As estantes da Drogaria Popular eram um atrativo misterioso, com suas fileiras de frascos e caixinhas e seus estranhos instrumentos em vidro ou borracha avermelhada, mas o farmacêutico em si não era um tipo muito inspirador. Ele exalava um ar de desesperança, embalado em gordura, éter e verbena, como se não acreditasse que haveriam de findar as longas e modorrentas tardes de verão que o amarravam àquela cadeira de lona, à frente do estabelecimento, suando rios sob a sombra de um cinamomo.

   Na lapidadora de pedras preciosas, eu não via sentido em trabalhar, pois joias em minha casa modesta não havia, e os lindos cristais e os brutos geodos com que era presenteado por lá acabavam sempre destinados a tarefas menos nobres, como segurar papéis sobre a escrivaninha do velho ou servirem de freio nas portas para defendê-las das ventanias inesperadas.

   Já o comércio, com sua ética singular, nunca me atraiu. Eu estranhava que se oferecesse pó-do-mico-de-Ganges tanto para combater vermes intestinais quanto para promover vinganças pessoais contra os oponentes em geral. Ou que se admitisse a venda de um mesmo produto por preços distintos, a depender da tolice do freguês.

   Na tipografia do seu Joca, eu me sentia importante produzindo panfletos e avisos, mas morria de medo de esquecer minhas mãos, num vacilo qualquer, no interior das prensas gigantescas que ele me deixava alimentar, num ritmo bem marcado, com folhas brancas de papel, impressas uma a uma. Havia uma nítida desproporção entre a força e a dureza das prensas e a fragilidade dos braços de um menino magrelo. Mal sabia então que eu haveria de crescer, embrutecer aos poucos o couro das mãos e apoiar a lenta extinção das tipografias ao adquirir sucessivas impressoras domésticas com menos de um quilo cada.

   Desculpa aí, seu Joca! Não foi por mal.

   Bancário, não. Eu não entendia bem o que faziam aqueles caras. Via-os como singelos e avaros guardadores de dinheiro, sempre rígidos e tristes. Entretanto, não foram poucas as vezes que fiquei com pena deles ao vê-los arder em chamas nas matinês do Cine Brasil, junto com os prédios de madeira em que trabalhavam naqueles vilarejos poeirentos do Colorado, do Arizona ou do Wyoming.

   Foram as visitas insistentes do gerente do Banco do Brasil, a reclamar das minhas pisadas vigorosas no chão de tábuas do quarto, no chão de tábuas do quarto, repito, logo acima do saguão de atendimento e da bateria dos caixas, que me fizeram ver o perigo que rondava minha família: morar no piso superior de um banco. Sobretudo porque eram outros tempos, e o que nos separava daquela mina de ouro, sempre apetitosa para qualquer ladrão, era um reles assoalho de tábuas, que seria facilmente devorado pelas chamas de um incêndio.

   Eu morava em frente ao Café Central, onde até suporte para amarrar cavalos havia, como em qualquer cidadezinha do velho oeste bravio. Da janela do meu quarto, costumava ver grupos de cavalarianos chegando à cidade, ocultos sob seus ponchos e chapéus nos dias invernais ou expondo displicentes os seus revólveres, coldres, facões e cartucheiras nos dias de clima menos hostil. As fronteiras do Arizona estavam no outro lado da rua.

   Cedo aprendi que coragem e covardia são irmãs siamesas e que medem forças, cúmplices e inimigas, em cada decisão que tomamos na vida.

   Mais tarde, já em tempos de armamentos pesados e criminalidade maior, a vida me tornou bancário. Alguns, sabedores de meus receios infantis, poderão dizer: quanta coragem! Mas só eu sei o tanto que isto representou também de covardia.

                                                                             - Miguel da Costa Franco -

Nenhum comentário:

Postar um comentário