Texto premiado com o 1º lugar no gênero prosa no 1º Concurso Literário "O imaginário da cidade", promovido pelo Studio Clio.
Então aí estás outra vez,
Malaquias, com teu ar displicente e provocador!
Sim, eu sei como te
chamas. Vi teu nome na plaqueta de encarregado de expedição na agência dos
Correios e Telégrafos, na Praça da Alfândega. Te vejo por lá sempre que vou
mandar minhas cartinhas para tia Ercília, no Alegrete, ou para minha irmã
Clotilde, que mora no Rio.
Vês que já me permito
tratar-te por tu, são tantas as vezes que te paraste aí a saborear-me na
janela, enquanto esperas o bonde. Ui, já é tanta a minha vontade de que te
encorajes um dia e cruzes a rua marcialmente para fazer-me a corte, que até
minha linguagem escorrega para termos pouco apropriados como “saborear-me”! É
que falo só para mim, sabemos os dois, pois a distância da rua não te permite
ouvir-me os murmúrios ousados que escapam de minha boca ou os pensamentos
pecaminosos que me invadem sempre que me lembro de teu semblante austero, desse
teu porte empertigado, desse teu corpinho magro que, Deus há de saber, logo,
logo ajudaria a tornar mais saudável com meus bolos de milho e minhas figadas,
ou minhas galinhadas e minhas sopinhas de ossobuco com tutaninho para passar no
pão.
Um pouco disso tudo eu
sei que filtras por meus olhos, que não negam os teus, quando me espias
timidamente entre um bonde e outro. Já são tantos os pontos que refiz nesse
xale que ora teço! Tecer e flertar não são coisas que combinem bem para uma
viúva pouco dotada nessas prendas.
Em verdade, mais
desenvolta me verias pela janela dos fundos, mexendo em minhas panelas, ou
fazendo nhoques, ou sovando a massa do pão. Mas que fazer se é por esta janela
fronteira que me retorna esse mundo que eu sepultara e que agora inunda minha
imaginação, em bigodes fartos, chapéu desabado na testa e sapatos de bico fino,
com fragrâncias antigas de alfazema e espuma de barbear, de suores másculos e
fixadores de cabelo.
Perdão, Malaquias! Não posso
deixar de me lembrar do finado, único homem que conheci, e associar-te um pouco
aos odores dele. Afinal, não te aproximas o suficiente para que eu possa
aspirar os teus!
Tantos bolos já perdeste,
Malaquias!. Ou não sabes que todas as segundas, quartas e sextas – os dias em
que me espionas – te espero com um bolo recém-saído do forno e um bule de chá
ou café? E licores que eu mesma faço, para animar-te um pouquinho, pois vejo
que não tens a ousadia dos malandros, dos boêmios, dos falastrões. Gosto disso,
Malaquias. O que um homem precisa ter para satisfazer uma mulher de verdade –
não essas sirigaitas que se veem por aí - é a disposição para o encontro, para
a comunhão das almas.
Um certo traquejo com o
corpo é importante, sem dúvida. Mas, acaso sejas meio duro de queixo, bem sabe
o finado que aprendi tudo direitinho, homem escolado que ele era, e te asseguro
que aprenderias comigo do amor bem mais do que noutras escolas menos
recomendáveis.
Ih, que até me dá um
calorão falar destas coisas! Clotilde diz que é da idade, mas eu bem sei que
estes ardores sempre me acometem quando me metes esses teus olhos buliçosos de
turco, Malaquias.
Por que não vens, homem
de Deus? Anima-te! Está tão quente o sol! Não sentes o cheiro bom do café, não
vês o quanto me debruço nesta janela para que me percebas?
Os meninos do bairro
enticam comigo, me chamam de gordona, mas bem sei que eles adorariam poder
brincar novamente de bebezinhos na minha peitarra apetitosa.
É verdade que ganhei uns
quilos desde a juventude. Vivi sempre na abundância e tratamos - o finado e eu
-, de espantar a tísica com muito sol nas peças da casa e com nossa fortaleza
corporal. O finado precisou de oito parentes para levar-lhe o caixão.
Mas sei que sou agora o
melhor vinho dessa pipa, Malaquias. Sou fornida de carnes, sim, Malaquias, mas
sei usá-las direitinho para os exercícios do amor e do pecado, que Deus não me
ouça!.
Perdeste outro bonde,
Malaquias, e ainda pensas que me enganas! Se todos os bondes que passam por
aqui te levariam direto ao Abrigo, na praça Quinze... Se todos fazem o mesmo
trajeto... Por quem me tomas, varapau?
Por que não te encorajas?
Não vês esse sim escancarado em meus olhos? Não vês que me canso assim em pé
por tanto tempo? Que fico a trocar de apoios a cada tanto? Que tenho de por os
pés inchados em água morna quando te vais? De que tens medo, Malaquias?
Às vezes, com essas tuas
delongas, fantasio que eu seria tua primeira mulher... Será verdade, Malaquias?
Não acredito... Outras vezes penso que esse teu bigodinho lustroso já roçou a
pele de todas as raparigas desde o Alto da Bronze até a Cabo Rocha e sinto um
calafrio. Que essa tua cara triste e esse teu corpo sequeta não sejam heranças
desse tempo de perversões!
Imaginar-te na esbórnia,
Malaquias, me fez perder outro ponto. Deste jeito, vou ter que presentear este
xale aos órfãos do Pão dos Pobres.
Enfim, te moves,
Malaquias! Que ânsia! Olha para mim, Malaquias, vê como arfa por ti o meu peito
indócil! Olha para mim, Malaquias! Um passo a mais. É tão bom já te sentir mais
perto que desata um formigamento terrível em minha panturrilha. Estou suando
como menina-moça, Malaquias. Meu corpo se liquefaz, Malaquias, sinto calafrios,
mal te movimentas. Cristo, como me deixas frouxa das pernas, Malaquias! Por
isso me apóio mais no marco da janela, Malaquias, por isso cresce meu busto
sobre a balaustrada. Não me ofereço, sabes? Mas te quero do fundo da minha
alma.
Vem, Malaquias, mais uns
passos. Mas, cuidado,... olha o bonde, Malaquias! Que não te deixes estropiar,
meu vetusto galanteador! Espera! Para!
Onde estás, Malaquias?
Que foi feito de ti, criatura? Já são dois meses que me provocas, bandido!
Tomaste o bonde de novo, seu medroso?
Malaquias Sampaio de Assis,
eu não acredito que fizeste isso outra vez!
E uma janela se fecha de
um só golpe numa casinhola da Cidade Baixa.
- Miguel da Costa Franco -
- Miguel da Costa Franco -
Parabéns Migui.
ResponderExcluirGostei muito. Não sabia que eras escritor.
Vou dar o endereço de teu blog para a Lili, que também é blogueira.
Um grande e forte abraço
Saloca
Mig Malaquias Migalhas,
ResponderExcluirParabéns pelo merecido prêmio, uma prosa de deliciosa leitura.
De quebra li também A irmã do Nogueira, adorei.
Vou virar tua blogueira.
Beijo,
Sagar.
Grande Mig,
ResponderExcluirParabéns pelos premios...que nos concedes !!!
Grande abraço,
Guima
Parabéns Miguel, adorei teu texto machadiano. Nele se percebe bem teu vetusto estilo aposentado, imginando uma estória escusa em cada janela deste nosso bairro riobranco
ResponderExcluirAlô, Jura, gracias! Ainda ontem lembrei de ti, grato à escolha que me permitiste fazer, e que me põe hoje a poder bisbilhotar janelas impunemente. Abraço.
ResponderExcluirMuito bom, Miguel! Prêmio merecido.
ResponderExcluirSérgio Saraiva