quinta-feira, 13 de maio de 2010

Flerte


Texto premiado com o 1º lugar no gênero prosa no 1º Concurso Literário "O imaginário da cidade", promovido pelo Studio Clio.
Livremente inspirado no quadro "Gordona na janela" de José Lutzenberger, abaixo anexado.



Então aí estás outra vez, Malaquias, com teu ar displicente e provocador!
Sim, eu sei como te chamas. Vi teu nome na plaqueta de encarregado de expedição na agência dos Correios e Telégrafos, na Praça da Alfândega. Te vejo por lá sempre que vou mandar minhas cartinhas para tia Ercília, no Alegrete, ou para minha irmã Clotilde, que mora no Rio.
Vês que já me permito tratar-te por tu, são tantas as vezes que te paraste aí a saborear-me na janela, enquanto esperas o bonde. Ui, já é tanta a minha vontade de que te encorajes um dia e cruzes a rua marcialmente para fazer-me a corte, que até minha linguagem escorrega para termos pouco apropriados como “saborear-me”! É que falo só para mim, sabemos os dois, pois a distância da rua não te permite ouvir-me os murmúrios ousados que escapam de minha boca ou os pensamentos pecaminosos que me invadem sempre que me lembro de teu semblante austero, desse teu porte empertigado, desse teu corpinho magro que, Deus há de saber, logo, logo ajudaria a tornar mais saudável com meus bolos de milho e minhas figadas, ou minhas galinhadas e minhas sopinhas de ossobuco com tutaninho para passar no pão.
Um pouco disso tudo eu sei que filtras por meus olhos, que não negam os teus, quando me espias timidamente entre um bonde e outro. Já são tantos os pontos que refiz nesse xale que ora teço! Tecer e flertar não são coisas que combinem bem para uma viúva pouco dotada nessas prendas.
Em verdade, mais desenvolta me verias pela janela dos fundos, mexendo em minhas panelas, ou fazendo nhoques, ou sovando a massa do pão. Mas que fazer se é por esta janela fronteira que me retorna esse mundo que eu sepultara e que agora inunda minha imaginação, em bigodes fartos, chapéu desabado na testa e sapatos de bico fino, com fragrâncias antigas de alfazema e espuma de barbear, de suores másculos e fixadores de cabelo.
Perdão, Malaquias! Não posso deixar de me lembrar do finado, único homem que conheci, e associar-te um pouco aos odores dele. Afinal, não te aproximas o suficiente para que eu possa aspirar os teus!
Tantos bolos já perdeste, Malaquias!. Ou não sabes que todas as segundas, quartas e sextas – os dias em que me espionas – te espero com um bolo recém-saído do forno e um bule de chá ou café? E licores que eu mesma faço, para animar-te um pouquinho, pois vejo que não tens a ousadia dos malandros, dos boêmios, dos falastrões. Gosto disso, Malaquias. O que um homem precisa ter para satisfazer uma mulher de verdade – não essas sirigaitas que se veem por aí - é a disposição para o encontro, para a comunhão das almas.
Um certo traquejo com o corpo é importante, sem dúvida. Mas, acaso sejas meio duro de queixo, bem sabe o finado que aprendi tudo direitinho, homem escolado que ele era, e te asseguro que aprenderias comigo do amor bem mais do que noutras escolas menos recomendáveis.
Ih, que até me dá um calorão falar destas coisas! Clotilde diz que é da idade, mas eu bem sei que estes ardores sempre me acometem quando me metes esses teus olhos buliçosos de turco, Malaquias.
Por que não vens, homem de Deus? Anima-te! Está tão quente o sol! Não sentes o cheiro bom do café, não vês o quanto me debruço nesta janela para que me percebas?
Os meninos do bairro enticam comigo, me chamam de gordona, mas bem sei que eles adorariam poder brincar novamente de bebezinhos na minha peitarra apetitosa.
É verdade que ganhei uns quilos desde a juventude. Vivi sempre na abundância e tratamos - o finado e eu -, de espantar a tísica com muito sol nas peças da casa e com nossa fortaleza corporal. O finado precisou de oito parentes para levar-lhe o caixão.
Mas sei que sou agora o melhor vinho dessa pipa, Malaquias. Sou fornida de carnes, sim, Malaquias, mas sei usá-las direitinho para os exercícios do amor e do pecado, que Deus não me ouça!.
Perdeste outro bonde, Malaquias, e ainda pensas que me enganas! Se todos os bondes que passam por aqui te levariam direto ao Abrigo, na praça Quinze... Se todos fazem o mesmo trajeto... Por quem me tomas, varapau?
Por que não te encorajas? Não vês esse sim escancarado em meus olhos? Não vês que me canso assim em pé por tanto tempo? Que fico a trocar de apoios a cada tanto? Que tenho de por os pés inchados em água morna quando te vais? De que tens medo, Malaquias?
Às vezes, com essas tuas delongas, fantasio que eu seria tua primeira mulher... Será verdade, Malaquias? Não acredito... Outras vezes penso que esse teu bigodinho lustroso já roçou a pele de todas as raparigas desde o Alto da Bronze até a Cabo Rocha e sinto um calafrio. Que essa tua cara triste e esse teu corpo sequeta não sejam heranças desse tempo de perversões!
Imaginar-te na esbórnia, Malaquias, me fez perder outro ponto. Deste jeito, vou ter que presentear este xale aos órfãos do Pão dos Pobres.
Enfim, te moves, Malaquias! Que ânsia! Olha para mim, Malaquias, vê como arfa por ti o meu peito indócil! Olha para mim, Malaquias! Um passo a mais. É tão bom já te sentir mais perto que desata um formigamento terrível em minha panturrilha. Estou suando como menina-moça, Malaquias. Meu corpo se liquefaz, Malaquias, sinto calafrios, mal te movimentas. Cristo, como me deixas frouxa das pernas, Malaquias! Por isso me apóio mais no marco da janela, Malaquias, por isso cresce meu busto sobre a balaustrada. Não me ofereço, sabes? Mas te quero do fundo da minha alma.
Vem, Malaquias, mais uns passos. Mas, cuidado,... olha o bonde, Malaquias! Que não te deixes estropiar, meu vetusto galanteador! Espera! Para!
Onde estás, Malaquias? Que foi feito de ti, criatura? Já são dois meses que me provocas, bandido! Tomaste o bonde de novo, seu medroso?
Malaquias Sampaio de Assis, eu não acredito que fizeste isso outra vez!
E uma janela se fecha de um só golpe numa casinhola da Cidade Baixa.

                                                                             - Miguel da Costa Franco -

6 comentários:

  1. Parabéns Migui.
    Gostei muito. Não sabia que eras escritor.
    Vou dar o endereço de teu blog para a Lili, que também é blogueira.
    Um grande e forte abraço
    Saloca

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  2. Mig Malaquias Migalhas,
    Parabéns pelo merecido prêmio, uma prosa de deliciosa leitura.

    De quebra li também A irmã do Nogueira, adorei.
    Vou virar tua blogueira.
    Beijo,
    Sagar.

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  3. Grande Mig,
    Parabéns pelos premios...que nos concedes !!!
    Grande abraço,
    Guima

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  4. Parabéns Miguel, adorei teu texto machadiano. Nele se percebe bem teu vetusto estilo aposentado, imginando uma estória escusa em cada janela deste nosso bairro riobranco

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  5. Alô, Jura, gracias! Ainda ontem lembrei de ti, grato à escolha que me permitiste fazer, e que me põe hoje a poder bisbilhotar janelas impunemente. Abraço.

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  6. Muito bom, Miguel! Prêmio merecido.

    Sérgio Saraiva

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