Em
criança, eu era calado e retraído, certo da pobreza do meu mundo interior e da
superioridade intelectual inconteste de meus maiores. Fechei-me em mim, num misto
de timidez e de responsabilidade com as palavras.
Então me
diziam: fala, tchê, todos têm algo a
dizer.
Aos
poucos, me solto. Observo. Percebo. Explicito.
Assim não
deves, me corrigiam. Assim não podes, me advertiam. Assim estragas tudo. Às
vezes, recebia estimulantes tapinhas nas costas, quando expressava emoções da minha
alma, melhor dizendo, da alma que queriam ver em mim. E eu correndo para atender
o outro, ciente, ainda, de trafegar no patamar inferior da sabedoria.
Mas a
maturidade – essa relativa segurança no avaliar e no agir – um dia vem. E a
dicotomia das almas vai se esfarelando. Virando pó as atitudes submissas.
Observar e perceber não são coisas administráveis. São, quiçá, fatalidades circunstanciais
neste universo tão vazio de substância. Explicitar conclusões é sempre uma escolha
associada ao tipo de mundo que se quer construir, às conveniências que se quer
preservar ou às inconveniências que se quer esconder.
Num lamaçal
onde predomina a hipocrisia, as verdades (sempre pessoais, é claro, como
versões do percebido) são incômodas. O que queriam de mim, lá atrás – coisa que
se repete agora -, era que absorvesse verdades exteriores. Mas a insinceridade sempre me incomodou.
Retorno,
então, à minha mudez infantil, que traduzo em solidão, eis que a palavra
aprisionada converte-se em outros manifestos. Escapo do convívio com os
desiguais para evitar suas reações agressivas ou dolorosas, como também eles se
afastam de mim por desagrado, cassando-me a palavra, ao seu modo.
Isolo-me. Desboto.
Um pouco, morro. Mas morrer também não é a resposta desejável.
Resta-me a
escrita, então, como consolo. Aberta a página em branco - e dispostos para o
trabalho os neurônios ávidos por comunicar-se -, vem de pronto, assustadora, a questão
indigesta: a quem minhas reflexões irão ferir agora?
O tempo é de
embates.
Tento
chamar o lobo salivoso de peludinho
faminto, a serpente venenosa de deslizante
criatura, o juiz cretino de maligna
excelência e o mentiroso contumaz de serzinho
criativo.
Descubro,
no trajeto, que desses meneios todos vive, em parte, também a literatura.
É óbvio
que me estrepo. Todos estão fartos dessas curvas. Vamos andando em espirais
cada vez mais estreitas, até desnudar-se, enfim, o lobo, a cobra, o pústula, a
mentira.
Enquanto
isso, a tevê e a imprensa das famiglias vomitam
números tortos ou precários, enxergando neles esperança infinita. A redenção. A
propósito, as mesmas famiglias chamavam
também de redentora a quartelada de
64, que nos legou centenas de desaparecidos, concentração de renda,
subserviência internacional e falta de oportunidades.
Enquanto
isso, safados conhecidos, sem dizer qualquer palavra, assassinam covardemente a
defensora dos direitos humanos Marielle Franco e o motorista Anderson Gomes.
Enquanto
isso, o ministro mais empolado, entre volteios pernósticos, bababás e bobobós, explicita,
insatisfeito – para não dizer puto da cara -, que o outro debatedor de capa
preta é uma pessoa horrível, uma mistura
de mal com o atraso e pitadas de psicopatia..
Enquanto
isso, o inescrupuloso cineasta José Padilha joga na boca de Lula as palavras de Romero Jucá, referindo-se à Lava-jato, é preciso estancar a sangria - parte do diálogo com Sérgio Machado, o mais esclarecedor sobre as origens do golpe
de 2016 (... a solução mais fácil era
botar o Michel (...) num grande acordo nacional (...) com o STF, com tudo...)
-, tentando, via ficção, fazer prosperar a verdade que lhe apetece. Um sinal
inequívoco de que os golpistas estão acuados no canto do ringue, resistindo na
estratégia parcialmente exitosa, mas já desmascarada, das fake news.
A luta é
pelo poder, mas as grandes batalhas serão sempre pelo discurso.
Volto às
minhas reflexões infanto-juvenis. Afinal, este país – como muitos de nós - ainda
não soube tornar-se adulto. Há muitas nuances entre vermelhos e amarelos, como
há muitas maneiras de nos expressarmos. O discurso é linguagem e o discurso mentiroso
se esboroa com o tempo.
No duro
embate pela palavra precisa e certeira, não vejo opção mais simples do que voltarmos
a encarar verdades incômodas de frente. Quais são elas? As que jorram dos fatos
cotidianos e corroem o discurso dominante.
Nossa vida
piorou, sem sombra de dúvida. Nosso patrimônio comum está sendo roído e dilapidado.
Corporativa
e excludente, a Justiça optou pela política e a política – também povoada de famiglias - optou escancaradamente pelo particular.
O
trabalhador viu minguarem seus direitos, os salários perderam substância e o
consumo reduzido prejudicou as empresas. Aumentou o desemprego, mas os
privilégios para poucos se mantêm. As ruas estão cheias de mendigos, as crianças
carentes voltaram a povoar os semáforos.
Firma-se o
poder paralelo das gangues. Milícias e esquadrões da morte estão novamente à
solta. As polícias, mal instrumentadas e forjadas no arbítrio ou na
autopreservação, defendem mais o partido no poder do que os interesses difusos
da cidadania. Nossa guerra civil mata mais de sessenta mil cidadãos por ano, em
sua maioria, jovens pretos. Todos já fomos roubados ou conhecemos pessoalmente
uma vítima de violência.
Perdeu
recursos a educação pública e a escola privada reclama por subsídios que já teve
um dia.
Não são as
necessidades coletivas que determinam o planejamento urbano ou econômico, mas o
interesse das empreiteiras ou das corporações. O caos nos transportes prospera,
o tempo gasto até o trabalho aumenta, as passagens encarecem.
Insistindo
na falácia de extinguir a fome do mundo, o latifúndio sufoca a diversidade natural
e restringe o acesso a terra.
Permeia o nosso
cotidiano a violência contra a mulher e a fobia aos diferentes se escancara. O
racismo, violento ou cordial, transborda de sua carapaça translúcida, mata,
aprisiona e cria percalços, fomentando barreiras que nossa bagagem genética
mestiça não avalizaria.
O país
reclama mais investimento em ética, cultura e democracia. Anteontem, ricos
ignorantes, espumando bílis num estádio de futebol, mandaram nossa autoridade
máxima tomar no fiofó. Ontem, remediados acéfalos fardados de azul mandaram chorar o macaco imundo, ou, vestindo
vermelho, prometeram matar um puto tricolor.
Hoje, atentam a pedradas e tiros contra o presidente Lula.
A
desigualdade, raiz de quase todos os problemas, só aumenta. A elite econômica acha legítimo querer enriquecer ainda mais, desconsiderando não haver crescimento da
renda que permita tal proeza sem prejudicar alguém. As classes médias sonham
com viagens à Disneylândia, Miami ou Cancún, enquanto vendem parte das férias
para desfrutar o restante numa casinha modesta em Cidreira ou Curumim. Clamam
por soluções as massas despossuídas, porque a fome dói mais do que a ganância.
Somos
governados por quadrilhas, o presidente está nu, na linha de tiro, e a
corrupção segue firme e forte. Nosso processo eleitoral não assegura
representatividade. Esquerda e direita, muitas vezes, são vizinhas no Leblon,
nos Jardins, na Bela Vista ou no Montserrat.
O ódio viceja
por todos os lados. As pedras e o relho – e agora também as balas -,
argumento final dos fascistoides, substituem o diálogo e a tolerância, enquanto
os bem-intencionados se retraem. Num cenário desses, é cada dia mais difícil dormir
tranquilo ou ficar calado.
Crianças
parvas que somos como sociedade, precisamos todos vencer a letargia e os medos
e, cada vez mais, mostrar responsabilidade com as palavras.
- Miguel da Costa Franco -
- Miguel da Costa Franco -
Gracias, excelente
ResponderExcluirMais uma pérola, desta vez bem incisiva e contundente! Parabéns e obrigado, Mig!
ResponderExcluirExcelente Miguel, um texto de lavar a alma, parabéns.
ResponderExcluirMuito massa, Miguel
ResponderExcluirObrigado, amigos Jorge, Teresa, Hélio e Sérgio.
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